A Pedra de Roseta

Pedra de Roseta
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Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*

Segundo o Museu Britânico, a Pedra de Roseta, ora reivindicada pelos egípcios, é o objeto mais visitado da ilustre casa em toda a sua história

Quem disse que o bom exemplo não frutifica? A descolonização progride: após a volta do dinossauro Ubirajara a seus pagos, a Dinamarca devolveu um manto cerimonial tupinambá de plumas vermelhas de guará, o mesmo que deslumbrou a Exposição dos 500 Anos, no Ibirapuera.

Vamos a outros casos na mira da descolonização.

Hiram Bingham, o “descobridor” americano de Machu Picchu, depenou a cidadela e levou embora tudo o que se mexia, num total de 40 mil peças. Algumas para a Universidade de Yale, onde estão até hoje, mas muitas mais para particulares que financiaram suas expedições. Há tempos o Peru procura reaver seus tesouros.

Segundo o Museu Britânico, a Pedra de Roseta, ora reivindicada pelos egípcios, é o objeto mais visitado da ilustre casa em toda a sua história. E isso apesar de ficarem ali ao lado os Mármores Elgin, extraídos do Partenon a serrote, com cerca de 200 estátuas em tamanho natural. O suficiente para lotar 22 navios. E objeto de pedidos de retorno, há tempos.

A Pedra de Roseta foi encontrada na cidade portuária epônima, no delta do Nilo. Quem a achou foram os franceses da invasão napoleônica, logo derrotados pelos ingleses, que a arremataram no butim da vitória. Traz uma inscrição tríplice, em hieróglifos, em egípcio demótico e em grego: um “Abre-te. Sésamo” para a decifração.

Foi baseado nessas inscrições que o francês Jean-François Champollion, hoje enterrado no Panthéon e considerado o Pai da Egiptologia, levou a cabo a missão, pois intuíra serem os hieróglifos uma mistura de ideogramas com alfabeto fonético – empreitada de importância gigantesca. Só a partir daí é que a história milenar do Egito começou a ser compilada, pois apenas se conhecia o que diziam viajantes e cronistas estrangeiros. E é uma história que ultrapassa os 5 mil anos. Outras decifrações se seguiram, como a da escrita maia, tirando do olvido uma das mais notáveis civilizações do mundo. Os maias eram tão avançados em astronomia e matemática que inventaram o zero, façanha exclusiva de apenas dois povos, eles e os hindus.

O relatório que Champollion, poliglota das línguas da Antiguidade, escreveu em forma de Lettre à M. Dacier, minuciosamente esquadrinhando todo o processo, felizmente para nós está online.

Quando se pensa em tantos retornos em curso, e tão discutidos no momento, vem à mente o vocábulo “nostalgia”, inventado em 1688 por um médico suíço. Palavra “artificial”, isto é, inventada com um certo propósito, e que “pegou”. Muitas não pegam, como aquelas que, numa investida em prol de uma língua pura, sem nódoas forasteiras, levou gramáticos e filólogos do Brasil a criarem várias palavras, em geral horríveis e que não vingaram.

Mas os estrangeirismos foram se disseminando a tal ponto que se tornaram palavras legitimamente brasileiras e expulsaram os neologismos patrióticos. Monteiro Lobato gostava de zombar da empreitada – veja-se Emília no País da Gramática – pois sabia muito bem que a língua é imprevisível, não adiantando impor padrões a ela. Entre esses neologismos estava ludopédio para substituir futebol, que então ainda se escrevia grifado e em inglês (football). Ou então lucivelo, para substituir o francês abat-jour, mas o que pegou foi abajur.

A palavra nostalgia, que é novíssima mas juraríamos ser grega da época clássica, tem sua entrada no léxico português datada de 1838 pelo Dicionário Houaiss. O vocábulo é um neologismo que juntou nostos (= regresso, ou viagem de regresso) a algos (=dor), resultando mais ou menos em “a dor do regresso”. Nostos, dos quais poucos chegaram até nós, mas são atestados na Antiguidade, era um gênero literário dedicado aos muitos regressos ao lar dos heróis da coligação grega que lutaram na Guerra de Troia, evento maior que marcou toda a literatura e as demais artes na Grécia. O grande exemplo, é claro, é a Odisseia, narrando tudo o que aconteceu nos 10 anos que durou a viagem de volta de Ulisses a Ítaca – dez anos em contagem mítica, é claro.

Mas a descolonização tem seus desdobramentos imprevisíveis. Por estes dias, o rei do povo bamum, da República dos Camarões, circundado por seu séquito, entrou no Museu Etnológico de Berlim e sentou-se acintosamente no trono que fora roubado de seu bisavô há mais de um século. Testemunhado e fotografado, o gesto sobranceiro foi executado pelo rei em toda a majestade de seus paramentos realengos.

*Walnice Nogueira Galvão é professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Sesc\Ouro sobre Azul).


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