O mito Segall

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Por CELSO FAVARETTO*

A construção pela crítica brasileira de uma imagem do pintor Lasar Segall

O livro Lasar Segall, de Cláudia Valladão de Mattos, trata de uma questão espinhosa, pouco evidenciada no Brasil: até que ponto a importância atribuída a um artista e a significação de sua obra provêm não apenas de critérios especificamente estéticos, mas, em boa parte, de pressupostos e interesses da recepção do público e da crítica? Seguindo princípios da estética da recepção de Hans Robert Jauss, Cláudia V. de Mattos investiga a constituição de uma imagem de Lasar Segall, construída pela crítica brasileira do período 1913-43 e que teria sido alimentada pelo próprio artista. Examina as razões pelas quais Segall foi tomado como figura legitimadora da estratégia modernista, tanto por ser considerado paradigma de artista moderno, quanto por sua personalidade marcante.

Apoiado nas críticas surgidas desde as exposições de 1913 em São Paulo e Campinas, em textos e declarações do artista, o livro relata os momentos da constituição de uma imagem homogênea na crítica. “Um Pintor de Almas”, artigo de Abílio Álvaro Miller surgido em Campinas por ocasião da exposição de 1913, teria determinado tal imagem. Mesmo que o artigo não tenha repercutido imediatamente, o que lá está não difere essencialmente das críticas de Mário de Andrade, Milliet, Geraldo Ferraz e outros, pois elas estão centradas na mesma tradição crítica e nas mesmas questões fundamentais, referidas ao que a autora debita à concepção estética do romantismo alemão. A crítica, com exceção de Mário de Andrade, parecia desconhecer o expressionismo alemão. Atraso, sem dúvida, mas questão intrigante, pois a unanimidade na consideração da imagem de Segall incidia mais na personalidade que na obra.

Cláudia Valladão de Mattos age com cuidado, contextualizando a crítica e remontando a formação de Segall, não só a artística, para justificar a constituição da imagem do artista como gênio. Empreendimento que é contribuição para a história da cultura e sociologia da arte, procede pelo rastreamento de fatos e acontecimentos documentados; explora, ainda que rapidamente, problemas e tensões do processo de rotinização do modernismo brasileiro; desidealiza as construções críticas.

Mostra que a constituição do artista em ícone da modernidade não exclui mistificações e nem sempre provém de uma posição moderna quanto ao sentido da arte. Assim, como podem críticos reconhecidamente empenhados na efetivação do moderno no Brasil subscrever a prevalência da personalidade sobre a obra do artista? Bastaria dizer que isto provinha da necessidade imperiosa de afirmar o moderno? A legitimação do que poderia ser um projeto moderno é razão suficiente? Ou o fascínio do artista é algo que extrapola tais questões contextuais?

Não se flagra no livro uma atitude genérica para desmontar um mito Segall negando sua importância no modernismo brasileiro; o ponto crítico está na tentativa de inventariar a recepção pública de Segall, em especial os critérios de recepção atualizadora. O empenho de Segall em afirmar uma imagem, gerindo-a junto a críticos e instituições, e o tratamento homogêneo da crítica centrada na unidade obra-artista, não encontra outras justificativas que não sejam a do descompasso da modernização brasileira e a total dedicação de Segall à arte. Porém, a ênfase nos pressupostos românticos poderia justificar o descompasso da crítica, mas não, provavelmente, a atitude do artista.

Em Segall, a crítica vê o primeiro indício de arte moderna no Brasil e, além disso, a “ponte” entre vanguarda europeia e modernismo brasileiro. Mário de Andrade, embora responsável pela reativação da crítica de Miller, nunca concordou com o primado de Segall, insistindo no pioneirismo de Anita Malfatti; isto não o impediu, contudo, de valorizar a contribuição de Segall para a formulação das “questões culturais brasileiras” na pintura.

Mário ressalta na fase inicial de Segall no Brasil uma contribuição ao tema da “brasilidade”, pois a “conquista plástica” desta fase resultaria da composição de “alma eslava” e “vivacidade” brasileira, em que a personalidade “profunda”, “sintética”, “altamente humana” e “dramática” suplantava a “superficialidade brasileira”, lançando-a na universalidade.

Se a crítica acentua o “realismo sintético” de Segall ao lado da sua preocupação social e política, além obviamente da existencial, é fato que a figura humana pensada em moldura romântica destaca-se, propondo a confluência de intenção, expressão e vida. O percurso de Cláudia V. de Mattos pelos pressupostos do romantismo alemão, especialmente Schelling, e por fundamentos de certa história da arte, especialmente Wõrringer, é convincente, já que ela não se detém nas obras (pois, senão, seria mais complicado).

Seja enfatizando a história da descoberta do talento precoce, seja considerando a atividade artística como predestinação; evidenciando a ideia de arte como revelação ou ressaltando a importância do sofrimento na criação, tal como fazem os críticos, o ideal romântico é adequação pertinente ao mito gerado. A consagração de Segall pela crítica seguiria, assim, as formas típicas, já antigas. O pintor é referido a uma origem, como no mito; a sua personalidade está na obra como expressão da alma; a arte é necessidade interior, a forma gera emoção e empatia.

Até aí, tudo bem. Mas como fica a composição desta unanimidade crítica respaldada pelo artista e o quadro das intencionalidades e interferências na orquestração de uma imagem, como sugere a autora? Parece que ela detectou sinais claros de um sistema cultural brasileiro – a necessidade de ícones fortes, inclusive estrangeiros, para dar corpo a uma espécie de consciência nacional –, muito apropriados para se ultrapassar traçados amplos de nossa modernização e possibilitar o acesso a uma história feita de tramas, de casualidades e interesses de grupos.

Mas, ao tentar, no final do livro, responder à questão da convergência entre as ideias da crítica e as de Segall, Cláudia inflete a discussão, justificando-a por uma vaga “pertença à modernidade”. E, mais ainda: levanta a hipótese de que a construção da imagem de Segall como artista-gênio serviu “para garantir a preservação de uma arte do tipo aurático, em meio à rápida transformação sofrida com o ingresso definitivo do Brasil na modernidade”, de modo que “existindo o mito Segall, a arte aurática poderia permanecer a salvo”. O argumento muda de plano, desviando o rumo da discussão.

*Celso Favaretto é crítico de arte, professor aposentado da Faculdade de Educação da USP e autor, entre outros livros, de A invenção de Helio Oiticica (Edusp).

Publicado originalmente no Jornal de Resenhas, no. 32, em novembro de 1997.

Referência


Lasar Segall. Cláudia Valladão de Mattos. Edusp, 196 págs.

 

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