Por MARCELO GUIMARÃES LIMA*
O Brasil de Bolsonaro uniu, de modo supreendentemente original, o trágico e o ridículo
Se um escritor publicasse um romance com os fatos cotidianos que vemos nos jornais no Brasil, seria acusado pelos críticos e especialistas de literatura de inventor de tramas inverossímeis. O espetáculo diário de absurdos promovidos pelo desgoverno do Inominável é tal que desafia a capacidade imaginativa de qualquer um e mesmo dos ficcionistas profissionais como, por exemplo, os roteiristas de novelas vespertinas.
Quem produziu o governo Bolsonaro, de fato criou um péssimo enredo com personagens grotescos e tramas francamente absurdas. E quem foi o autor deste exemplo de subliteratura, por demais medíocre sob qualquer ponto de vista, o qual chamamos de “dia-a-dia” brasileiro ou de “as instituições que trabalham normalmente” entre outras designações gentilmente falsas e normativas? Entre outros, a Globo, representante maior do Partido da Imprensa Golpista. Junto “com o Supremo e com tudo”.
Enredo estrelado inicialmente pelo canastrão Beócio Neves, que foi logo substituído na novela do golpe por sua instabilidade emocional e péssimos hábitos profissionais, como faltar ao trabalho repetidamente e, diziam as más línguas, por abusar de café e outras substâncias performativas. Como protagonistas foram então promovidos juízes do Supremo e procuradores e policiais obscuros e de formação profissional duvidosa, mas de atuação obstinada apesar do enredo previsível e repetitivo da novela do golpe. Deixemos de lado o papel de Conde Drácula e Judas Iscariotes que teve no (interminável) golpe de 2016 o Vampirão do MDB, o Temeroso Timorato, valentão de porta de cadeia, quem se lembra dele? Passou como “pum do palhaço”, para citar outra breve coadjuvante hoje devidamente esquecida.
Certo é que a continuidade da novela golpista e a aparente estabilidade no poder do Messias da extrema direita e seus coadjuvantes, todos da mesma estirpe moral e intelectual como o chefe, parece afirmar que de fato a trama do golpe nos é familiar, ecoa algo da nossa realidade “estrutural”. De fato, Bolsonaro é a imagem escarrada da classe dominante brasileira e, neste sentido, seu representante ideal e acabado. Alguns, como a Globo e o sr. Dória por exemplo, fingem não gostar da vulgaridade explícita do Bolsonaro mas gostam muito do desmonte geral do país que ele, na falta de outro, hoje comanda. E a ignorância, junto com a crueldade, é o elo comum entre todos eles, entre todos os mandantes e os agentes do golpe, isto é, entre o núcleo duro da classe dominante no Brasil: banqueiros, financistas, empresariado, e seus representantes e executores, tais como políticos, jornalistas ou para-jornalistas, militares, juristas, etc., todos historicamente formados e comprometidos com a ideologia e a prática escravagista e colonial do passado que carregamos ainda como uma condenação histórica de um país que, por vontade e determinação dos seus “donos”, não pode ser.
Para os donos do país, a subordinação aos donos do mundo é o caminho único a seguir e ai dos que ousam contestar, mesmo minimamente, o dogma da subordinação material e simbólica ao poder neoliberal global!
E, no entanto, não é difícil ver a instabilidade constitucional, os perigos reais desta escolha, deste caminho: a Rede Globo, por exemplo, promoveu o golpe e a crise que vai acabar com ela – será vendida a grupos estrangeiros, segundo o jornalista Luís Nassif que conhece bem o assunto. E a crise vai acabar com parte do empresariado no país, que embasou e segue apoiando o golpe que resultou no Inominável e seu cortejo de calamidades e personagens grotescos (de mais do que reconhecida incompetência profissional) em posições de poder.
A mudança de regime com o golpe de 2016 resultou na presente pseudodemocracia e suas eleições fake, que também enredam e paralisam uma parte da oposição de esquerda. Tudo isso é receita provada para um desastre ainda maior do que o desastre que vivemos hoje cotidianamente.
A calamidade do desgoverno Bolsonaro atinge hoje materialmente a maioria da população e beneficia a minoria do poder financeiro e seus serviçais. Mas como vivemos todos no mesmo espaço geográfico e institucional, apesar das diversidades internas, não é muito difícil ver que a promoção contínua da crise como forma de (des)governo tem seus limites, que repercutem na estruturação e solidariedade do todo.
Crises são essencialmente processos autônomos. Como explicam os cientistas, processos entrópicos, por exemplo, não podem ser pensados com categorias estritamente determinísticas. Traduzidas para o nosso cotidiano: a manipulação material e simbólica do país e seu povo tem limites epistemológicos (tanto quanto ontológicos). Mesmo a omnisciente e omnipotente classe dominante brasileira, no poder desde 1500, faria melhor em pôr suas barbas de molho.
Não é apenas parte da esquerda que o regime “pós-democrático” atual ilude com suas seletivas formalidades institucionais, a classe dominante aposta na institucionalização definitiva do golpe de 2016. Aparentemente os ventos lhes são favoráveis, vide as recentes eleições afincadamente dirigidas e cuidadosamente manipuladas. Mas o estudo científico das variações climáticas, por exemplo, nos ensina justamente a prudência, os limites do determinismo estrito e a complexidade inerente tanto aos processos climáticos quanto, vale a analogia, aos históricos.
E por falar em analogias, lembremos que a Revolução Francesa começou com uma revolta da aristocracia junto ao poder constituído da época pela restauração, no meio de uma crise infra- estrutural, de seus privilégios em desuso. Desencadearam um processo maior, a Revolução, no qual finalmente perderam, além de alguns privilégios, o poder, as posses e as próprias cabeças.
A classe média brasileira embarcou no veleiro do golpe de 2016 para defender seus parcos “privilégios” contra o “lulo-petismo” e a prole das empregadas domésticas adentrando as universidades públicas e os aeroportos. A classe dominante promoveu o golpe para garantir seus superlucros e passar adiante o custo da crise do capitalismo dependente dentro da crise sistêmica do capitalismo global, custo que deve ser pago pelos trabalhadores e pela a própria classe média entorpecida na sua ideologia regressiva e na sua abissal ignorância.
A repetição histórica, dizia Marx a propósito da herança histórica da Revolução Francesa, vai da tragédia para a farsa. O Brasil de Bolsonaro uniu, de modo supreendentemente original, o trágico e o ridículo. Como gênero literário, o Brasil não poderia existir. Seria, ou é de fato, uma aberração estética, um disparate categorial, ou mesmo uma impossibilidade lógico-conceitual.
*Marcelo Guimarães Lima é escritor, pesquisador e artista plástico.