Fazer o tempo (kayrós)

Imagem: Marcelo Guimarães Lima, Future Paradise I
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por MARCELO GUIMARÃES LIMA*

A aventura neofascista terminou por desnudar em praça pública o autoritarismo crônico secundado pelo partido militar e a violência como método

Notícias de que Jair Bolsonaro teme ser preso ao retornar ao Brasil são apresentadas na internet e na imprensa, ao mesmo tempo em que se reporta a disposição, dita cautelosa, da justiça brasileira quanto à prisão imediata do ex-presidente fujão: não seria o momento.

Ora, se existem dificuldades para a prisão de Jair Bolsonaro, outras existem, e talvez maiores, em deixar em liberdade quem ao longo de seu mandato pregou a subversão da ordem legal existente, já agredida pelo golpe de 2016, e, deste modo, insuflou, preparou a turba neointegralista para a destruição de prédios centrais do poder público em Brasília como uma espécie de ensaio, ou abre-alas para um golpe unindo a extrema direita e o poder militar.

Ou Jair Bolsonaro teme realmente ser preso, ou não teme. Ou a justiça brasileira quer de fato responsabilizar Jair Bolsonaro, ou não quer. Como já se tornou habitual, no midiático jogo das narrativas tudo soa possível: o sim e o não confundidos, tudo e seu contrário, e ao mesmo tempo. Após a surpresa da violência preparada e fartamente anunciada, a desorientação via desinformação programada parece surgir como segundo ato de uma tragi-comédia à brasileira.

Nos vídeos, cada vez mais numerosos nas redes, dos “cidadãos de bem” bolsonaristas cometendo crimes contra o patrimônio público e contra a ordem política legal do país, vemos cidadãos da classe média, baixa e alta, ao lado de representantes de estamentos marginalizados, junto a provocadores profissionais, ex-presidiários, políticos da extrema direita, pastores e seus fiéis, membros das forças armadas numa espécie de carnaval trágico encenando algo como uma “(contra-) revolução fascista”, minoritária, mas organizada e financiada do exterior dos grupos em ação, e contando com a cooperação de forças de segurança e das forças armadas.

Por um lado, a volta em liberdade de Jair Bolsonaro ao Brasil, como mais um viajante ordinário, seria como um chamamento à turba para novas arruaças e violências. Claro está que muitos dos protagonistas do 8 de janeiro, como mostram alguns vídeos, acordaram como de um transe para a dimensão e consequências das suas ilusões e ações no mundo real: a prisão lhes serve de escola e é um eficaz elemento de dissuasão para novos ativismos e para novos ativistas. Mas o núcleo dos mandantes e organizadores ainda não foi atingido, e não vai se deixar abater por um revés, o qual, como extremistas que são, devem acreditar temporário na guerra contra a sempre periclitante democracia brasileira, até que lhes seja devidamente estabelecida uma derrota conclusiva na atual conjuntura.

Esta se faz mais problemática com o passar dos dias. Pois, como mostrou o golpe de 2016, a prisão de Lula, a eleição de Jair Bolsonaro, a direita brasileira se articula com a extrema direita sempre que seja oportuno. Não é demasiado repetir que Jair Bolsonaro e seu desgoverno foram, entre outros fatores mas de modo central, produtos de decisões do establishment político brasileiro, ou seja, da direita em seu conjunto e seus meios aliados, na guerra santa contra Lula e o PT enquanto representantes das classes populares.

As décadas, os anos e o século passam, mas o golpe de Estado, a violência contra as nossas sempre instáveis instituições democráticas, e, portanto, contra a vontade popular, parece ser recurso permanentemente disponível e facilmente atualizado na vida política no país. Assim como o “transformismo”, o processo miraculoso que transforma, da noite para o dia, golpistas, autoritários e ladrões do erário em defensores ardentes da ordem democrática e vestais do republicanismo (e que pode igualmente transformá-los em outros sentidos, ao sabor dos ventos).

A derrota da micareta golpista seria ocasião para dar um basta e mudar o registro da vida política brasileira, deixar definitivamente para trás, ao menos nas suas formas mais imediatas e obscenas, a truculência autoritária e a enorme hipocrisia que caracterizam as estruturas de dominação de classe no Brasil. E mesmo uma tal mudança “exterior” ou de superfície já seria um avanço, pois toda superfície é solidária a uma estrutura interna e mudanças externas se refletem de modos vários nas dimensões profundas.

Mas no país do transformismo e da irresolução como modo de vida, não é claro o que realmente se produzirá desta súbita conversão, do súbito ardor democrático de gregos e troianos, muitos até ontem aliados do Capitão do Caos ou críticos retóricos e opositores imaginários do neofascismo caboclo.

Jair Bolsonaro sem a caneta na mão é, para os comensais do poder, uma sombra do que acreditou ser até ontem. A marginalidade institucional que conheceu como político do baixo clero poderá ser seu futuro mais uma vez. Se futuro tiver, pois, aqui também, o que há de certo é que entre a retórica do Capitão do Caos e suas capacidades de fato para ações “grandiosas”, a distância se mostrou abissal, decepcionante para os que tinham sido chamados reiteradamente para a guerra abortada. Os generais órfãos da ditadura militar cedo ou tarde deverão buscar outros prepostos e talvez outras máscaras.

As estruturas que alimentaram o episódio Bolsonaro e o bolsonarismo deitam raízes na história do país e decisivamente na conjuntura histórica geral do tempo. O que absolutamente não quer dizer que a conjunção do atraso político (que inclui ataques repetidos à soberania nacional) com a de facto ditadura neoliberal atual seja nosso destino, pois, cabe lembrar, somos também o país no qual, com todos os percalços, contradições, impasses e limitações, um líder operário se tornou líder popular e nacional.

Lula venceu seus algozes e com apoio popular voltou ao poder para fazer face à crise que a classe dominante cultivou até o impasse presente, num contexto mundial de profundos desequilíbrios econômicos e políticos, para os quais as chamadas elites brasileiras não têm respostas outras que o perene autoritarismo, a continuada expropriação da maioria e a violência sob máscaras cada vez mais diáfanas.

A aventura neofascista terminou por desnudar em praça pública o autoritarismo crônico secundado pelo partido militar e a violência como método. Espetáculo demasiado obsceno que, por um lado, precisa ser exorcizado por todos os meios para a continuidade da “democracia tutelada” pelo neoliberalismo radicalizado surgida do golpe de 2016.

Por outro lado, com todos os desafios e dificuldades da conjuntura atual, o 8 de janeiro pode também, e aqui somos otimistas por necessidade e escolha, marcar o início de outro processo e projeto de democracia, aquela que, contra os donos do país e seus cúmplices e servidores, não teme dizer seu nome e seu real significado de soberania popular efetiva.

*Marcelo Guimarães Lima é artista plástico, pesquisador, escritor e professor.

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
Economia da felicidade versus economia do bom viver
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: Diante do fetichismo das métricas globais, o “buen vivir” propõe um pluriverso de saberes. Se a felicidade ocidental cabe em planilhas, a vida em plenitude exige ruptura epistêmica — e a natureza como sujeito, não como recurso
Tecnofeudalismo
Por EMILIO CAFASSI: Considerações sobre o livro recém-traduzido de Yanis Varoufakis
Mulheres matemáticas no Brasil
Por CHRISTINA BRECH & MANUELA DA SILVA SOUZA: Revisitar as lutas, contribuições e avanços promovidos por mulheres na Matemática no Brasil ao longo dos últimos 10 anos nos dá uma compreensão do quão longa e desafiadora é a nossa jornada na direção de uma comunidade matemática verdadeiramente justa
Não existe alternativa?
Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
Síndrome da apatia
Por JOÃO LANARI BO: Comentário sobre o filme dirigido por Alexandros Avranas, em exibição nos cinemas.
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES