Um tema tabu

Imagem: Vadim Braydov
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Por LUIZ MARQUES*

O negacionismo configura um “crime de responsabilidade” à espera de elucidação

O balanço da catástrofe que se abateu sobre o Rio Grande do Sul não sai na televisão. Não obstante, está na ponta da língua dos contribuintes no que toca a gestão administrativa estadual e da capital gaúcha. Em ambas as instâncias, a conduta negacionista dos gestores é reprovada, pelas centenas de alterações na legislação ambiental em prol da autofiscalização empresarial e a falta de manutenção nas comportas do Muro da Mauá, casas de bombas e diques. O negacionismo configura um “crime de responsabilidade” à espera de elucidação. Os mandatários foram desleixados com a “segurança interna” das jurisdições. Como no samba de Noel Rosa: “Meu Deus do céu, que palpite infeliz”.

Os prejuízos econômicos (patrimoniais), sociais (empregos, moradias, escolas, hospitais), culturais (teatros, cinemas, laços identitários) e emocionais (perdas de relíquias, fotos) afetaram dois milhões de concidadãos em 467 municípios, num total de 497. Em maio, 600 mil pessoas ficaram desalojadas, 40 mil tiveram os domicílios destruídos. Desnecessário dramatizar a dor. “Nem rir, nem chorar, mas compreender”, diz o filósofo. A pergunta é: por que os governantes, com ar blasé sobre mecanismos de cuidado da natureza e das cidades, cederam à incúria e desprezaram o bem comum? Soberba?

Resposta: seu “modelo de sociedade” centra-se no livre mercado e na acumulação capitalista. O carro-chefe do futuro é a empresa privada. O Estado é o obstáculo. Privatizam empresas públicas, ainda que prestadoras de serviços essenciais para a população (água, luz, gás, transporte coletivo). Se a questão não entra em discussão, é que o objetivo dos meios de comunicação — descontada a autopropaganda — não é informar. Mas satisfazer os patrocinadores, com destaque para as finanças. Daí a oscilação que vai da espetacularização dos fatos até a sentimentalização apelativa. Qualquer coisa, desde que impeça o trabalho do pensamento crítico. Consumidores servem apenas de álibi.

A atuação “fenomenológica” do noticiário oculta a construção social da realidade, como se eventos climáticos extremos não tivessem historicidade. A enchente converte-se em um rótulo — catástrofe, tragédia. “Não é hora de buscar culpados”, rezam os que têm culpa. Os veículos de comunicação fazem da dissimulação um decreto divino e, a não ser superficialmente, evitam o assunto. O slogan “Pra Cima, Rio Grande” eclipsa os responsáveis pela tempestade no paraíso (neoliberal). Ao mesmo tempo, promove o boicote às ações positivas do governo federal para o bem-estar de todas e todos.

Para se ter ideia, o grupo RBS divulga 126 casas provisórias na Região Metropolitana com loas ao governo estadual, e cutuca o presidente Lula contrário à medida de curta duração. A paralisia das autoridades locais em elencar imóveis até R$ 200 mil para aquisição pela Caixa Econômica Federal cruza incólume. Dia seguinte (5 de julho), num canto do jornal Zero Hora, insere a boa nova do ministro Extraordinário Para Reconstrução do Rio Grande do Sul, Paulo Pimenta, sobre duas mil casas compradas pela União para entrega em julho; e cinco mil já cadastradas para aquisição pela CEF. As prefeituras, por igual, não são admoestadas sobre terrenos para construção de casas aos atingidos. A imprensa canta longe do ninho. Compreender é desmascarar a aporofobia da pantomima corporativa para isentar o sistema.

A disputa de modelos

Nas práticas de dominação, dois campos são fundamentais — o político e o institucional — para uma consolidação do status quo. Os quadros dos partidos de direita formam-se nos think tanks da mais-valia, a exemplo do Instituto de Estudos Empresariais (IEE). A destreza para sonegar do andar de cima é copiada. A admiração por “empreendedores” ao estilo autocrata de Elon Musk molda a sua cosmovisão. Condomínios fechados e cruzeiros marítimos imitam as mansões e o lazer das “elites”, que não primam por luzes e, sim, pelo dinheiro. A colonização do Estado pelo american way of life e o eugenismo social-étnico corrompem a urbanização democrática com a lógica da plutocracia.

Pelo mecanismo da mimese, o paradigma do neoliberalismo faz paradas no Palácio Piratini e no Paço Municipal da metrópole pioneira: (a) na luta ecológica com a AGAPAN (Associação Gaúcha de Proteção Ambiental), fundada por José Lutzenberger em 1971; (b) na luta pela governabilidade criativa com o OP (Orçamento Participativo), fundado pelo PT / Partido dos Trabalhadores em 1989 e; (c) na luta antineoliberal com o FSM (Fórum Social Mundial), fundado pelos movimentos sociais em 2001. Essas utopias colocaram Porto Alegre no mapa-múndi da esperança e, agora, incentivam a resiliência e energizam a superação das dificuldades com “participação cidadã”. A república não se esgota no binômio “presidencialismo” ou “parlamentarismo”. Há uma terceira variável a considerar.

O habitus do “valor de troca” foca o prejuízo das seguradoras de carros, em vez de as 200 mortes de humanos nas águas. A política tira férias. A individualização apaga os principais desencadeantes da crise ecológica. A ênfase nas individualidades salienta as substâncias, quando o que importa para o entendimento são as relações partidárias e de classe.

Pierre Bourdieu utiliza o termo “agente” no lugar de “indivíduo” para salientar os condicionamentos socioeconômicos no contexto histórico, e não conferir uma inexistente autonomia às personas. Desvincular a atividade política e institucional dos acontecimentos implica absolver o modelo de sociedade e os gerentes pelas más consequências.

A liberdade de escolha some diante dos múltiplos relacionamentos e financiamentos que envolvem os indivíduos. Os agentes têm de ser pensados e analisados a partir de uma teoria política relacional; não são átomos isolados. A socialização primária via família e a secundária via escola, somadas ao arrivismo pessoal, injetam nas personalidades públicas as práticas que atenuam o direito à dignidade dos pobres. O princípio da classificação nas interações faz os privilegiados, superiores aos demais.

Os elogios do governador Eduardo Leite (PSDB) e do prefeito Sebastião Melo (MDB) às falsas virtudes das privatizações e o endosso às grandes construtoras para erguer os edifícios de luxo, em áreas de preservação ambiental e presença indígena, é o selo de mediocridade classista. Os agentes de interesses privatistas na administração das unidades federativas não sentem empatia pelos losers. Pertencem ao campo econômico e cultural dos winners, para quem o progresso começa com ricos e fecha o circuito com ricos. Falta-lhes a imaginação no poder para servir o conjunto da coletividade.

Posicionar na ofensiva

Os desastres ambientais contrapõem os neoliberais aos progressistas na disputa pela definição dos parâmetros desejáveis ao reerguimento da vida, resgatada dos escombros. O modelo hegemônico baseado na financeirização é confrontado por um modelo alternativo na defesa da população e do combate à especulação. As cidades são dos cidadãos. No dicionário da democracia, a moradia é um direito social. É errado contrabandeá-la para o verbete da “mercadoria”.

A primazia está no “valor de uso”. A quantificação é obra do neoliberalismo. A atitude de Lula bota pingos no “i”, ao priorizar as residências fixas para os que tanto sofrem a inaptidão e o descaso dos representantes regionais.

A sociologia espontânea tira a camada externa da cebola e dá nome aos autores da desgraceira no Sul do país. O tema frequenta as conversas nas filas de ônibus e nos bares. “Não se reelegem”. A ciência denuncia o desmatamento de matas ciliares e a urbanização de orlas há décadas. A ciranda financeira no espaço natural e social, com o repasse dos parques ao lucro e os espigões a título de modernização em zonas de inundação — vide o Pontal do Arado, em Porto Alegre — tem as digitais do governador e do prefeito. Por limitação cognitiva ou por vontade de tergiversar, alguns jornalistas choram a Lava Jato, comparam alhos com bugalhos e calam sobre a condenação do juiz suspeito.

Eduardo Leite e Sebastião Melo detêm o “capital simbólico” que se esvai com a credibilidade e a popularidade. O grupo RBS com o totalitarismo de um Big Brother orwelliano arvora-se “nossa voz”. Contudo, gravita os interesses do rentismo. O ibope e a ética da responsabilidade mínguam, na holding.

Cabe aos democratas e socialistas assumirem a ofensiva política contra os inimigos da solidariedade socioambiental. Como no poema de Pablo Neruda: “Desta cinza / amanhã / renasceremos”.

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.


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