Vladímir Lênin — a luta pela revolução

Imagem: Sasha Kruglaya
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Por MICHEL GOULART DA SILVA*

O necessário combate pela derrota da burguesia e pela derrubada da institucionalidade construída no capitalismo é afetado pela perspectiva reformista

Em janeiro completaram-se 100 anos desde a morte de Vladímir Lênin, o que tem levado a um conjunto de reflexões sobre sua vida política e sua produção teórica. Uma das marcas mais importantes dessa trajetória passou pelo combate ao reformismo. Essa discussão aparece logo no começo de uma das suas obras mais importantes, o livro Que fazer?, de 1902.

Essa obra, embora mais conhecida como a exposição de Vladímir Lênin sobre os principais elementos das tarefas organizativas dos revolucionários, é também uma polêmica com os setores reformistas da social-democracia europeia. Nesta obra, como parte da disputa travada pelos revolucionários no interior do Partido Operário Socialdemocrata Russo (POSDR), Vladímir Lênin localiza as principais manifestações dos reformistas na Europa, destacando o papel teórico cumprido por Eduard Bernstein.

Segundo Vladímir Lênin, para esses setores “a socialdemocracia deve se transformar, de partido da revolução social, em partido democrático de reformas sociais”.[i] Lênin aponta que, como parte desse processo, “a exigência de que a socialdemocracia revolucionária desse uma guinada decisiva para o social-reformismo burguês foi acompanhada de uma mudança não menos decisiva no sentido da crítica burguesa de todas as ideias fundamentais do marxismo”.[ii] O desenrolar da luta de classes, nos anos seguintes, mostrou a correção das análises de Vladímir Lênin.

No começo do século XX, embora estivesse espalhada em diversos países, como Rússia, França e Alemanha, a corrente reformista teve em Bernstein, dirigente do Partido Socialdemocrata Alemã (SPD), um dos primeiros teóricos a sistematizar essas ideias, sendo combatido de imediato por Rosa Luxemburgo. Em seu embate contra os reformistas dentro do SPD, Rosa afirmou, em texto clássico publicado em 1899, que Bernstein realizou “a primeira tentativa de fundamentar teoricamente as tendências oportunistas no partido”.[iii]

Na época, o movimento operário vivia um grande ascenso, em que os trabalhadores avançavam na conquista de direitos. Essa conquista de reformas sociais criou em um setor dos socialistas a ilusão de que poderiam avançar nesses direitos por dentro das instituições do Estado. Rosa mostrava que, para esses setores, “os sindicatos, reformas sociais e, como Bernstein ainda acrescenta, a democratização política do Estado são os meios para a instauração gradual do socialismo”.[iv]

O reformismo, apesar de suas diferentes manifestações em cada país e mesmo ao longo do século XX, possui em comum o abandono da revolução para a transformação da sociedade e da ditadura do proletariado como perspectiva estratégica. Outra marca importante do reformismo passa pela completa integração, política e material, das organizações operárias ao Estado burguês.

No caso de Vladímir Lênin, o principal combate contra o reformismo se deu especialmente no embate com a corrente menchevique. Esse combate se expressou, entre outras questões, em torno da dinâmica da revolução na Rússia, na medida em que os mencheviques entendiam que, como consequência do caráter burguês desse processo, os marxistas deveriam lutar por uma república parlamentar. Outro tema que dividiu a socialdemocracia russa passou pela forma de organização, na medida em que, para Vladímir Lênin, o partido deveria ser uma organização centralizada que tivesse como papel fazer com que os operários superassem as formas de luta e de consciência meramente econômicas.

Vladímir Lênin, no prefácio a Um passo em frente, dois passos atrás (1904), fazendo um balanço político do congresso do partido russo, esclarece essa questão: “Em essência toda a posição dos oportunistas em matéria de organização começou a revelar-se já na discussão do parágrafo primeiro [sobre a forma de organização do partido]: na sua defesa de uma organização do partido difusa e não fortemente cimentada; na sua hostilidade à ideia (à ideia ‘burocrática’) de edificação do partido de cima para baixo, a partir do congresso do partido e dos organismos por ele criados; na sua tendência para atuar de baixo para cima, permitindo a qualquer professor, a  qualquer estudante de liceu e a ‘qualquer grevista’ declarar-se membro do partido; na sua hostilidade ao ‘formalismo’, que exige a um membro do partido que pertença a uma organização reconhecida pelo partido; na sua tendência para uma mentalidade de intelectual burguês, pronto apenas a ‘reconhecer platonicamente as relações  de organização’; na sua inclinação para essa sutileza de espírito oportunista e as frases anarquistas; na sua tendência para o autonomismo contra o centralismo”.[v]

Esse combate foi se intensificando ao longo dos anos. Nesse primeiro momento, segundo o próprio Vladímir Lênin, ainda escrevendo em 1904, o “caráter de divergência apenas começava a desenhar-se e muitos na realidade não conseguiam ainda orientar-se”.[vi]

Esse embate direto no interior do POSDR se deu até 1912, quando houve a ruptura entre bolcheviques e mencheviques. Escreveu Vladímir Lênin sobre o tema, anos depois: “Vencendo dificuldades inauditas, os bolcheviques rechaçaram os mencheviques, cujo papel como agentes da burguesia no movimento operário foi admiravelmente compreendido depois de 1905 por toda a burguesia que, por isso mesmo, o apoiava de mil maneiras contra os bolcheviques. Estes nunca teriam conseguido rechaçar os mencheviques se não houvessem aplicado uma tática correta, combinando o trabalho ilegal com a utilização obrigatória das ‘possibilidades legais’. Na mais reacionária das Dumas, os bolcheviques conquistaram toda a bancada operária”.[vii]

No contexto dessa ruptura, Vladímir Lênin escreveu algumas contribuições que, em grande medida, auxiliam a compreensão do combate ao reformismo na atual conjuntura. Em um de seus textos, Lênin apontava a diferença entre, por um lado, defender reformas para organizar a luta e mobilizar os trabalhadores (portanto, enquanto tática) e, por outro, se limitar à conquista de melhorias imediatas do capitalismo (portanto, enquanto estratégia). Para Lênin, escrevendo em setembro de 1913, os marxistas “reconhecem a luta por reformas, isto é, por melhorias na situação dos trabalhadores que deixam como antes o poder nas mãos da classe dominante. Mas, ao mesmo tempo, os marxistas travam a luta mais enérgica contra os reformistas, que direta ou indiretamente limitam as aspirações e a atividade da classe operária às reformas”.[viii]

O exemplo mais simples desse debate possivelmente é a reivindicação salarial que, embora não seja uma luta diretamente anticapitalista, tensiona a realidade concreta vivenciada pelos trabalhadores, na medida em que significa atacar parte do lucro que a burguesia obtém por meio da exploração do trabalho. Essas lutas, mesmo sem colocar sob ameaça imediata as relações de produção capitalistas, são fundamentais no processo de organização e de elevação do nível de consciência dos trabalhadores.

Nesse sentido, segundo Vladímir Lênin, “os marxistas trabalham incansavelmente, não perdendo uma única ‘possibilidade’ de reformas e da sua utilização, não reprovando, antes apoiando e desenvolvendo atentamente, qualquer saída dos limites do reformismo tanto na propaganda como na agitação e na ação econômica de massas”.[ix] Coloca-se o papel dos revolucionários no sentido do avanço na consciência dos trabalhadores, mostrando que a luta de classes não é uma mera luta econômica, mas também um embate político.

Outra questão passa pelo apego dos reformistas às velhas estruturas, afinal sua perspectiva estratégica está na manutenção da ordem existente e não na sua derrubada para construir uma nova sociedade. Segundo Vladímir Lênin, escrevendo em março de 1913, “os partidários de reformas e melhoramentos ver-se-ão sempre enganados pelos defensores do velho enquanto não compreenderem que toda a instituição velha, por mais bárbara e apodrecida que pareça, se mantém pela força de uma ou de outra classe dominante”.[x]

No Brasil, esse debate remete aos reformistas que, diante da completa putrefação da Nova República, regime político construído pelo pacto entre os militares e a oposição institucional na transição do fim da ditadura, fazem uma incansável defesa da democracia. Esses setores, portanto, se negam a apontar para uma nova organização política e social, que mobilize os trabalhadores contra a ordem instituída, preferindo a aliança com setores da burguesia para salvar a instável estabilidade política.

O necessário combate pela derrota da burguesia e pela derrubada da institucionalidade construída no capitalismo é afetado pela perspectiva reformista, que, ao se manter como a corrente hegemônica no movimento dos trabalhadores, dificulta sua luta. Segundo Vladímir Lênin, “quanto mais forte é a influência dos reformistas sobre os operários tanto mais fracos são os operários, tanto mais dependentes da burguesia, tanto mais fácil é para a burguesia reduzir as reformas a nada por meio de diversos subterfúgios”.[xi]

Essa tem sido uma realidade da situação no Brasil, afinal, mesmo com a disposição de luta dos trabalhadores diante dos ataques sofridos nos últimos anos, eles se veem reféns das direções reformistas, que nada mais fazem do que falar da fragilidade da força dos trabalhadores, da impossibilidade de arrancar qualquer conquista dos “fascistas” no governo e, em particular, de que não é possível mudar a situação atual se não for pela disputa institucional.

Para Vladímir Lênin, os revolucionários precisam se construir como a corrente consciente do movimento operário, apresentando uma análise concreta e, portanto, uma compreensão científica da realidade e mostrando de forma irrefutável a necessidade de derrubar a ordem burguesa instituída. Os reformistas, por sua vez, não enxergam a realidade para além da democracia burguesa e se agarram à defesa da institucionalidade capitalista.

Os revolucionários, ao mesmo tempo que batalham pelas conquistas imediatas dos trabalhadores, lutam por essas reivindicações como parte um programa de transição, demonstrando que, mesmo que eventuais reformas possam trazer melhorias momentâneas, elas serão retiradas logo que a burguesia vislumbrar a possibilidade de qualquer crise. Somente com o fim do capitalismo os trabalhadores poderão garantir efetivas conquistas, o que foi demonstrado na teoria e na prática por Vladímir Lênin.

*Michel Goulart da Silva é doutor em história pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e técnico-administrativo no Instituto Federal Catarinense (IFC).

Notas


[i] Lênin. Que fazer. São Paulo: Martins, 2006, p. 108.

[ii] Lênin. Que fazer. São Paulo: Martins, 2006, p. 109.

[iii] Rosa Luxemburgo. Reforma social ou revolução? In: Obras escolhidas. São Paulo: UNESP, 2011, Vol. I, p. 82.

[iv] Rosa Luxemburgo. Reforma social ou revolução? In: Obras escolhidas. São Paulo: UNESP, 2011, Vol. I, p. 24.

[v] Lênin. Um passo em frente, dois passos atrás. Moscou: Edições Progresso, 1984, p. 6-7.

[vi] Lênin. Um passo em frente, dois passos atrás. Moscou: Edições Progresso, 1984, p. 74.

[vii] Lênin. Esquerdismo, doença infantil do comunismo. São Paulo: Expressão Popular, 2014, p. 54.

[viii] Lênin. Marxismo e reformismo. In: Obras escolhidas em seis tomos. Moscou: Progresso; Lisboa: Avante, 1984, p. 115.

[ix] Lênin. Marxismo e reformismo. In: Obras escolhidas em seis tomos. Moscou: Progresso; Lisboa: Avante, 1984, p. 117.

[x] Lênin. As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo. In: Obras escolhidas em seis tomos. Moscou: Progresso; Lisboa: Avante, 1984, p. 94-5.

[xi] Lênin. Marxismo e reformismo. In: Obras escolhidas em seis tomos. Moscou: Progresso; Lisboa: Avante, 1984, p. 116.


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