1848 – revolução e bonapartismo – 2

Imagem: Liya Marginalova
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Por RAFAEL DE ALMEIDA PADIAL*

Para levar adiante a revolução permanente, seria fundamental a existência de um partido do proletariado independente em relação à burguesia e à pequena-burguesia

Na parte anterior deste texto, acompanhamos o desenvolvimento das posições políticas de Karl Marx pouco antes da revolução de 1848 e em sua na fase inicial. Particularmente, vimos como o autor defendeu uma estratégia que poderíamos denominar de “democrático-revolucionária”. Entretanto, em meio aos impasses da revolução alemã de 1848, ele foi levado a desenvolver concepções que contradizem a mera noção de “democracia”: as ideias de ditadura e terrorismo revolucionários.

Como comentamos, Marx seguia em grande medida o que lhe legara a experiência histórica, particularmente a da Revolução Francesa de 1789 (com destaque para o período da Convenção Nacional). Baseado nisso, ele defendeu uma determinada estratégia de dualidade de poder, na qual os revolucionários se amparariam no poder Legislativo para derrubar o Executivo do Estado.

Nesta segunda parte, veremos como Marx compreendeu – após difícil e contraditório processo – que os elementos descritos acima eram insuficientes para a estratégia revolucionária do proletariado.

O início do balanço da revolução de 1848

Na segunda metade de 1848, era relativamente claro que a revolução, após atingir um ápice, estava em um impasse. Em junho de 1848, na Prússia, o ministério centrista de Camphausen (constituído após a revolução de março) foi dissolvido pelo rei, que se sentia mais à vontade para contornar iniciativas reformistas e liberais. No lugar desse ministério foi estabelecido outro, mais à direita. Na França, a classe operária foi massacrada no levante de junho de 1848 e o general Louis-Eugène Cavaignac estabeleceu uma ditadura “republicana”. No mesmo país, em dezembro de 1848, Louis Bonaparte foi eleito.

Karl Marx, ao final de 1848, ciente de que a revolução estava num impasse, começou a refletir sobre o porquê de ela, na Alemanha, não ter seguido os caminhos das revoluções inglesa de 1648 e francesa de 1789. Por que não houve ditadura do Legislativo nem “terrorismo revolucionário”? Qual teria sido a especificidade da paralisada revolução alemã?

Na importante série de artigos “A burguesia e a contrarrevolução”, publicada em dezembro de 1848 na NGR, Marx expressou o seguinte:

“As revoluções de 1648 e de 1789 não foram revoluções inglesa e francesa, foram revoluções de tipo europeu [europäischen Stils]. Não foram a vitória de uma classe particular da sociedade sobre a velha ordem política; foram a proclamação da ordem política para a nova sociedade europeia. A burguesia triunfou nelas, mas o triunfo da burguesia foi então o triunfo de uma nova ordem social […]

Nada disso houve na revolução prussiana de março [de 1848].

[…] Bem longe de ser uma revolução europeia, [a Revolução de Março] foi apenas o resultado atrofiado de uma revolução europeia num país atrasado [zurückgebliebenen Lande]. A revolução prussiana de março não foi sequer nacional, alemã, mas desde o início provincial-prussiana”.[i]

Como se vê, Marx compreendia que a burguesia exercera nas revoluções inglesa e francesa uma missão histórico-universal. Na revolução alemã, entretanto, ela teria sido incapaz de atingir tal status. O motivo é explicado pelo autor nessa mesma página, ao tratar da pretensão da revolução alemã: “Não se tratava de criar uma nova sociedade, mas do renascimento em Berlim da sociedade já morta em Paris”.

Para entender essa importante sentença, temos de fazer um pequeno salto sobre o Reno e explicar o que ocorrera em Paris, o centro da revolução europeia, em junho de 1848.

A sociedade capitalista morta em Paris

Na França, em 23 de junho de 1848, em meio a uma situação de grave desemprego e tendo como estopim o fechamento, pelo Governo Provisório, dos Ateliês Nacionais (que proviam frentes públicas de trabalho), estourou em Paris a primeira revolução propriamente proletária contra a ordem do capital[ii].

A análise que Marx dedicou à Revolução de Junho de 1848 em Paris é das mais belas da NGR. Nela, comentou que o proletariado francês, ao realizar a primeira revolução daquele ano – a de fevereiro de 1848 – e derrubar o Rei Luís Filipe, julgara ter derrubado toda a ordem burguesa (afinal, Luís Filipe, da Casa de Orléans, era conhecido como o “Rei Burguês”, representante de grandes setores do capital). Assim, ao derrubar o monarca, o proletariado acreditara ter realizado uma revolução sua. Todavia, a derrubada desse Rei era também do interesse de outros importantes setores burgueses e monárquicos (não representados por Luís Filipe), os quais, após os combates conduzidos pelo proletariado em fevereiro – e devido ao fato de este não ter uma organização política própria –, colheram os frutos da revolução.

Ou seja: no vácuo de poder, os burgueses instituíram um parlamento “democrático” e um processo constituinte seus, tendo em vista representar, no Estado, o máximo das frações da classe dominante. Mas tal situação, de apropriação indevida de fruto alheio, durou até junho de 1848, quando o proletariado se insurgiu contra toda a ordem democrático-burguesa recém-instituída, compreendendo que com ela tudo mudara para permanecer igual.

No artigo “A Revolução de Junho”, Marx teceu um célebre comentário sobre o caráter das duas revoluções francesas de 1848 (de fevereiro e de junho): “A Revolução de Fevereiro foi a bela revolução, a revolução da simpatia geral, porque as contradições que nela estouraram contra a monarquia dormiam lado a lado, ainda não desenvolvidas; porque a luta social que a formava só tinha ganhado uma existência aérea, uma existência na frase, na palavra. A Revolução de Junho é a revolução feia, a revolução repulsiva, porque o fato ocupou o lugar da frase, porque a república desnudou a própria cabeça de monstro, ao retirar a coroa que a protegia e dissimulava”.[iii]

O levante proletário de junho foi massacrado pelas tropas do General Cavaignac, representante político da burguesia democrática e republicana, com apoio dos republicanos “radicais” (“social-democratas”), bem como das frações monárquicas da burguesia (o “Partido da Ordem”). Três mil insurretos parisienses foram mortos e mais de 15 mil presos ou extraditados. O General Cavaignac estabeleceu na prática, até a eleição de dezembro de 1848, uma ditadura burguesa amparada sobre o Legislativo. De fato, a derrota de junho significou um ponto de inflexão de todas as iniciativas revolucionárias europeias de 1848/49 (mesmo as de caráter meramente nacional).

Para Marx, a derrota do proletariado na revolução de junho trazia consequências histórico-universais. Em todas as nações europeias a burguesia assumiria, a partir daí outra função nas lutas entre classes, pois a sua ordem social morrera historicamente em Paris. As revoluções burguesas, depois dos estouros espontâneos iniciais, seguiriam, em vez de processos ascendentes, um movimento descendente, em que a burguesia se ampararia nas classes reacionárias para impedir o progresso da classe trabalhadora.

“Apenas contrarrevolução ou revolução são possíveis”

Considerando o elemento acima, retornemos à Alemanha e à importante série de textos escrita por Marx em dezembro de 1848, “A burguesia e a contrarrevolução”. Eis como o autor se expressou sobre a perda de iniciativa da alta classe capitalista alemã: “A burguesia alemã se desenvolveu de forma tão indolente, covarde e lenta que, no momento em que ameaçou o feudalismo e o absolutismo, percebeu diante dela ameaçadoramente o proletariado e todas as frações da burguesia cujos interesses e ideias se relacionam ao proletariado. […] [Ela] estava desde o início inclinada a trair o povo e a se comprometer com o representante coroado da velha sociedade […] [ela está] sem iniciativa, sem fé em si mesma, sem fé no povo, sem vocação histórico-universal [weltgeschichtlichen Beruf]”.[iv]

Poucos dias depois, na mesma importante série de artigos, Marx arrematou: “A história da burguesia prussiana, e da burguesia alemã em geral, de março a dezembro, mostra que na Alemanha uma revolução puramente burguesa e a fundação do domínio burguês sob a forma da monarquia constitucional são impossíveis [unmöglich]; que apenas a contrarrevolução feudal absolutista ou a revolução social-republicana são possíveis [nur die feudale absolutistische Kontrerevolution möglich ist oder die sozial republikanische Revolution].”[v]

Este trecho é de grande importância. Nos anos anteriores, Marx apenas criticara os que defendiam uma república burguesa ou o estabelecimento de uma monarquia constitucional, pois estas não deveriam ser o fim almejado na luta pela transformação social[vi]. Seria possível ir além. Agora, em sentido diferente, ele não apenas critica tais concepções, mas afirma que são historicamente impossíveis. Ao menos na Alemanha, não haveria espaço intermediário entre a contrarrevolução e a revolução “social-republicana” (termo pelo qual Marx compreendia a revolução de tipo comunista[vii]). Assim, toda a iniciativa de progresso histórico-universal passaria às mãos do proletariado.

Marx contra a revolução permanente

As pessoas acostumadas com os debates da chamada “tradição marxista” sabem o que essas novas concepções de Marx, acima expostas, portam. Se apenas “contrarrevolução feudal-absolutista ou revolução comunista são possíveis”, então não haveria etapa histórica democrático-burguesa independente para a revolução na Alemanha. Isso significa que a revolução em tal situação deveria ser permanente até o estabelecimento da sociedade comunista. O termo “revolução permanente” já era empregado por revolucionários no período de Marx (e, em sentido contrário, lutando contra ela, também por conservadores).[viii]

No entanto, Marx parece ter dificuldade em aceitar o termo e tirar todas as conclusões do que ele próprio escrevera na série “A burguesia e a contrarrevolução”. Tanto é assim que, um mês depois, ele publicou em duas partes um artigo intitulado “Montesquieu LVI”, no qual pareceu retornar a concepções etapistas de revolução. O artigo buscava responder um representante burguês (“Sr. Dumont”) que, no Kölnische Zeitung [Gazeta de Colônia, rival da NGR], argumentara que a “questão social” (miséria da população) seria mais bem resolvida se os representantes burgueses deixassem de se opor à monarquia prussiana e simplesmente aprovassem a constituição proposta por ela.

Marx critica o “Sr. Dumont” evidenciando, corretamente, as contradições em seu argumento. Em diversas passagens, nosso autor se vale de sua nova “concepção de história” [Geschichtsauffassung], desenvolvida com Engels em 1845/46 (no manuscrito hoje chamado de “Ideologia Alemã”), e mostra que os interesses do Estado prussiano inviabilizavam o desenvolvimento das relações capitalistas. Assim, numa “inversão dialética”, Marx buscava expor que os argumentos de Dumont se voltavam contra ele mesmo, pois as suas pretensões de progresso não se realizariam com a manutenção da ordem monárquica prussiana.

Entretanto, como que pressentindo uma crítica à esquerda, Marx sentiu repentinamente a necessidade de se justificar. Seu discurso contra Dumont poderia dar a entender, equivocadamente, que também desejava o desenvolvimento de relações capitalistas na Alemanha.

Eis o que Marx introduziu subitamente, na segunda parte do artigo (dia 21 de janeiro de 1849): “Nós somos certamente os últimos a desejar o domínio da burguesia. Fomos os primeiros na Alemanha a levantar a voz contra ela, quando os atuais ‘homens de ação’ ainda se ocupavam totalmente com suas barulhentas disputas secundárias”.[ix]

Fortuitamente, Marx revelou aí os seus críticos à esquerda: os “homens de ação” [Männer der Tat] que supostamente se deixavam levar por disputas “mesquinhas” ou “barulhentas” [Krakeel] dentro do movimento dos trabalhadores. A referência é a Moses Heß e a alguns dos seus seguidores, principalmente ao médico Andreas Gottschalk, membro proeminente da Liga dos Comunistas em Colônia e depois fundador e diretor da poderosa Associação dos Trabalhadores de Colônia durante a primeira fase da revolução na Alemanha[x]. A Associação dos Trabalhadores local era rival da Associação Democrática local (fundada por Marx, entre outros, e em nome da qual fora suspensa a Liga dos Comunistas). Além disso, a Associação dos Trabalhadores criticava a linha política da NGR.

Após revelar gratuitamente quem o alfinetava à esquerda, Marx expressou outra vez uma concepção etapista de revolução, num trecho que já provocou e ainda provoca calorosos debates. Escreveu o seguinte: “Mas nós dizemos aos trabalhadores e pequenos burgueses: é preferível sofrer [Leidet lieber] na moderna sociedade burguesa, que, por meio de sua indústria, cria os meios materiais para a fundação de uma nova sociedade que libertará a todos vocês, do que retornar a uma forma social do passado, que, sob o pretexto de salvar as suas classes, arrastaria toda a nação de volta à barbárie medieval!”.[xi]

É difícil não ver em Marx, nesse período, uma contradição. Afinal, um mês antes ele afirmara serem possíveis na Alemanha apenas contrarrevolução feudal-absolutista ou revolução comunista; agora, afirma ser preferível ao absolutismo algo que antes considerou impossível historicamente (a ordem burguesa).

Como ainda ocorre, à época tal afirmação gerou controvérsia. Pouco depois, no jornal Freiheit, Arbeit [Liberdade, Trabalho], órgão da Associação dos Trabalhadores de Colônia, Gottschalk respondeu severamente, em texto denominado “Ao senhor Karl Marx”. Gottschalk pareceu furioso não apenas com a concepção estratégica expressa por Marx, mas também com o fato de este, noutra ocasião, recomendar voto em representantes democrático-burgueses (Raveaux e Schneider), que concorriam à Assembleia de Frankfurt. Para Gottschalk, seria preferível votar em representantes dos trabalhadores, mesmo que não tivessem chance de vitória.

Em seu texto, publicado na capa do pequeno jornal, Gottschalk criticou o suporte dado por Marx a tais sujeitos, citou literalmente a passagem acima da NGR (sobre ser preferível sofrer na sociedade burguesa) e afirmou: “Desde fevereiro, nós, os ‘homens das barulhentas disputas secundárias’, nos metemos na revolução. Mas para quê uma revolução? Por que nós, homens do proletariado, deveríamos derramar o nosso sangue, se na realidade, para escapar do inferno da Idade Média, temos de – como prega o senhor, Sr. Pregador – nos lançar voluntariamente no purgatório de um domínio capitalista decrépito, para depois alcançar o nebuloso céu do seu ‘credo comunista’?”[xii]

Como se nota, critica-se aí justamente a estratégia de uma revolução por etapas (primeiro realizar uma coisa, depois, outra). Não à toa, Gottschalk, em seguida, vinculou a sua concepção à estratégia da revolução permanente e sustentou que todos os caminhos da revolução ainda estavam abertos: “Nós, os ‘homens das barulhentas disputas secundárias’, não somos profetas. Não sabemos o que será da nossa revolução. Para nós, além da possibilidade de um domínio burguês, que o senhor apresenta como algo necessário [nothwendig], existem ainda outras possibilidades, como, por exemplo, uma nova revolução, a permanente [Permanenz], ou até mesmo, se quiser, a destruição de nossa nacionalidade, o desaparecimento do povo alemão no cossaquismo, sua fusão na República Francesa etc. etc. Nós, o partido proletário revolucionário, que não conhece conciliações, nada temos a temer – menos ainda a recaída na barbárie medieval”.[xiii]

Gottschalk acusou Marx de ter medo de levar a revolução adiante. Seguindo em seus ataques de ordem até pessoal, afirmou: “Você não está realmente comprometido com a libertação dos oprimidos. A miséria do trabalhador, a fome dos pobres, têm para você apenas um interesse científico, doutrinário. Você está acima dessas ninharias. Como um erudito deus-sol, você apenas ilumina os partidos. Você não é tocado pelo que move o coração das pessoas. Você não acredita na causa que finge representar. Sim, apesar de todos os dias moldar a revolução alemã segundo o modelo dos fatos consumados, e apesar do seu ‘credo comunista’, você não acredita na revolta do povo trabalhador, cujas marés ascendentes já começam a preparar a ruína do capital. Você não acredita na permanência da revolução [an die Permanenz der Revolution], nem sequer acredita em sua própria capacidade revolucionária”.[xiv]

Por fim, Gottschalk criticou a recomendação de candidatos democratas-burgueses e novamente vinculou tal posição de Marx à não aceitação da teoria da revolução permanente: “E agora, depois de ficar claro que estávamos enganados [pelos democratas], que não podemos esperar nada de nenhum outro povo além do nosso próprio, que nós, o partido proletário revolucionário, não podemos contar com nenhuma outra classe além da nossa, que, portanto, não temos nada a fazer senão tornar a revolução permanente [die Revolution permanent zu machen] – agora, justamente agora, você nos recomenda figuras reconhecidamente fracas e insignificantes, pessoas em quem nenhum partido jamais pôde ou quis confiar”.[xv]

Marx pela revolução permanente

Sem dúvida, tais críticas calaram fundo em Marx. É verdade que Gottschalk deixava de ser, à altura (e após meses de prisão), o principal dirigente da Associação dos Trabalhadores de Colônia. Essa organização começava a mudar de liderança, sendo assumida por pessoas mais próximas a Marx. Ainda assim, Gottschalk parece ter dado vazão a uma crítica compartilhada por mais ativistas da época. Isso possivelmente se comprova pelo fato de que o próprio Marx, no período posterior, incorporou boa parte dessas críticas.

No começo de abril de 1849, nosso autor iniciou a publicação em partes, na NGR, da sua obra “Trabalho Assalariado e Capital” (que, por sua vez, era resultado de palestra dada em 1847, na Associação de Trabalhadores de Bruxelas). Assim, ele imprimiu um caráter mais proletário ao jornal. Poucos dias depois (15 de abril), Marx anunciou publicamente a sua ruptura com a Associação Democrática de Colônia.

Eis o que ele escreveu ao publicizar a sua saída dessa organização: “Nós consideramos que a organização atual da Associação Democrática contém elementos heterogêneos demais para permitir uma atividade enriquecedora para a causa. Somos da opinião de que uma conexão mais estreita com as associações de trabalhadores é preferível, pois a sua composição é homogênea; assim, de hoje em diante, deixamos de fazer parte do Comitê das Associações Democráticas da Renânia”.[xvi]

Em 16 de maio de 1849, por pressão prussiana, foi ordenada a saída de Marx dos territórios da Confederação Alemã. Três dias depois, com fontes em cor vermelha, foi impressa a última edição da NGR[xvii]. Logo em seguida, Marx partiu para Paris, onde assistiu ao malfadado levante da pequena-burguesia “montanhesa”. No começo de junho de 1849, estabeleceu-se em Londres (que se tornou sua residência pelo resto da vida). Alguns dos seus mais próximos companheiros, como Engels, seguiram combatendo em exércitos populares na Alemanha, mas logo foram derrotados e (os que sobreviveram) se refugiaram na Inglaterra ou EUA. Gottschalk morreu tragicamente, em 1849, devido à epidemia de cólera, ao cuidar de pacientes infectados.

Ao final de 1849, em Londres, começou a ser reorganizada a Liga dos Comunistas, sob direção de Marx, Engels, K. Schapper e A. Willich. A ideia era preparar a organização para uma possível e supostamente não distante nova onda revolucionária. Sobretudo, caberia realizar um balanço da atuação revolucionária em 1848/49 e estabelecer novas estratégia e tática para a organização.

Em março de 1850, circulou internamente à Liga um importante documento, depois tornado célebre, redigido por Marx e Engels: a primeira “Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas”. Nela, particularmente, pode-se ver a mudança das posições estratégicas de Marx. Trata-se de uma clara autocrítica. Logo no início do documento se lamenta que a “sólida organização da Liga se enfraqueceu” durante a revolução.

O motivo é explicado assim: “Uma grande parte dos membros, diretamente envolvidos no movimento revolucionário, acreditava que a época das sociedades secretas passara e que a atuação pública, por si só, era suficiente”.[xviii]

Entre essa “grande parte”, é claro, estava o próprio Marx. Na mesma página, o texto lastima que enquanto o partido proletário perdia com a Liga a sua única base sólida, o “partido democrático, o partido da pequena-burguesia, se fortalecia”. Tal partido seria na próxima revolução “mais perigoso para os operários do que o anterior partido liberal”. Além disso, argumenta-se que esses “pequeno-burgueses republicanos” se davam então o nome de “vermelhos e sociais-democratas” ou “socialistas”; e que seus representantes “eram os membros dos congressos e comitês democráticos, os dirigentes das Associações Democráticas, os redatores de jornais democráticos”[xix].

Segundo Marx e Engels, o programa dos democratas pequeno-burgueses deveria ser negado, por conter reivindicações tais como “instituições públicas de crédito e lei contra a usura”, “condições favoráveis de adiantamentos [de crédito] do Estado”, “limitação do direito de herança”, “entrega ao Estado do maior número de trabalhos”[xx], “reforma agrária”[xxi] etc. Como se vê, reivindicações similares às contidas ao final do segundo capítulo do Manifesto do Partido Comunista e no panfleto das dezessete reivindicações do Partido Comunista na Alemanha.

Ao negar a atuação nas associações democráticas e o programa com que intervieram durante 1848, Marx e Engels estabeleciam assim a negação da estratégia democrático-revolucionária anterior. Não é à toa que aí expressam, pela primeira vez, sua adesão à estratégia da revolução permanente.

Após apresentarem as reivindicações da democracia pequeno-burguesa (contidas no parágrafo acima), os autores afirmam o seguinte: “Enquanto a pequena-burguesia democrática quer [com tais reivindicações] finalizar a revolução o mais rápido possível, […] os nossos interesses e as nossas tarefas consistem em tornar a revolução permanente [die Revolution permanent zu machen] até que todas as classes mais ou menos possuidoras sejam expulsas do poder, até que o poder do Estado seja conquistado pelo proletariado, até que a associação dos proletários se desenvolva, não só num país, mas em todos os países dominantes do mundo, até que cesse a competição entre os proletários nesses países, e que pelo menos as forças produtivas decisivas estejam concentradas nas mãos do proletariado”.[xxii]

Curiosamente, a expressão “die Revolution permanent zu machen” é literalmente a mesma usada por Gottschalk contra Marx.

Para levar adiante a revolução permanente, seria fundamental a existência de um partido do proletariado independente em relação à burguesia e à pequena-burguesia. Seria, portanto, necessário realizar o oposto da dissolução dos comunistas na atuação legal/pública das associações democráticas: “Em vez de mais uma vez se rebaixarem a servir como coro laudatório dos democratas burgueses, os trabalhadores – sobretudo a Liga – devem se empenhar em estabelecer, ao lado dos democratas oficiais, uma organização autônoma [selbständige], tanto secreta quanto pública [geheime und öffentliche], do partido operário, e fazer de cada comunidade um centro e núcleo de associações operárias, nas quais a posição e os interesses do proletariado sejam debatidos independentemente das influências burguesas”.[xxiii]

Em nome de manter a independência de classe, seria preciso lançar candidatos proletários, mesmo nas condições em que estes não tivessem chance de vitória. Não se deveria temer a acusação de que assim se dividiria a frente democrática contra a reação: “Que em toda parte, ao lado dos candidatos democratas burgueses, sejam lançados candidatos operários […]. Mesmo onde não houver nenhuma perspectiva de sucesso, os trabalhadores devem apresentar seus próprios candidatos para preservar sua independência, medir suas forças e levar à esfera pública sua posição revolucionária e seus princípios partidários”.

“Eles não devem se deixar seduzir pelas frases dos democratas – como, por exemplo, a alegação de que isso dividiria o partido democrático e daria à reação a possibilidade de vitória. […] Os avanços que o partido proletário deve alcançar por meio dessa atuação independente são infinitamente mais importantes do que o prejuízo que a presença de alguns reacionários na representação política poderia causar.”[xxiv]

Como se vê, muitas das críticas de Gottschalk foram incorporadas por Marx e Engels na mensagem de 1850. Há, no entanto, um elemento novo, da maior importância, não presente na carta do crítico: a necessidade de uma dualidade de poder de novo tipo, de caráter proletário.

Se antes Marx concebera a dualidade de poder numa luta entre poder Legislativo e Executivo (ambos poderes do mesmo Estado), agora expressa-se assim: “Eles [os revolucionários] devem, paralelamente aos novos governos oficiais, estabelecer ao mesmo tempo os seus próprios governos operários revolucionários [revolutionäre Arbeiterregierungen], seja na forma de conselhos comunais [Gemeinderäte], câmaras comunais, clubes operários ou comitês de trabalhadores. Dessa forma, os governos democráticos burgueses não apenas perderão imediatamente o apoio dos trabalhadores, mas também se verão, desde o início, sob vigilância e ameaça de autoridades apoiadas por toda a massa operária”.[xxv]

Como se nota, em vez da luta entre o poder Legislativo e o Executivo, antes almejada, agora sustenta-se a necessidade de criação de um poder paralelo oposto ao Estado como um todo (Executivo e Legislativo). Não fica claro, porém, como seria esse conflito (se deveria ser formado, por exemplo, algo como uma “ditadura do proletariado”)[xxvi]

Significativamente, Marx e Engels encerram o texto com a seguinte afirmação: “Seu grito de guerra [do proletariado alemão] há de ser: a revolução em permanência [Die Revolution in Permanenz]”[xxvii].

*Rafael de Almeida Padial é doutor em filosofia pela Unicamp. Autor de Sobre a passagem de Marx ao comunismo (Alameda). [https://amzn.to/3PDCzMe]

Para ler o primeiro artigo dessa série, clique em https://aterraeredonda.com.br/1848-revolucao-e-bonapartismo/

Referências


CLAUDÍN, F., Marx, Engels u la revolución de 1848, Madrid: Siglo Veinteuno, 1985;

CZOBEL, E., Freiheit, Arbeit, Organ des Kölner Arbeitsvereins. Nº 1–33, Köln 14. Januar – 24. Juni 1849. Com introdução de Hans Stein. Glaushütten: Detlev Auvermann KG, 1972;

DAY, R., & GAIDO, D., Witnesses to Permanent Revolution, Chicago/Leiden: Haymarket/Brill, 2009;

GOTTSCHALK, A. (em publicação anônima). “An Herrn Karl Marx”, in Freiheit, Arbeit, n. 13, 25 de fevereiro de 1849;

MARX, K., “Die Bourgeoisie und die Kontrerevolution”. In MEW, volume 06, Berlim: Dietz Verlag, 1961;

______. “Die Junirevolution”. In MEW, volume 05, Berlim: Dietz, 1959;

______. “Montesquieu LVI”. In MEW, volume 06, Berlim: Dietz Verlag, 1961;

______. “Erklärung” (15 de abril de 1849), in MEW, volume 06, Berlim: Dietz Verlag, 1961;

MARX, K., & ENGELS, K., “Ansprache der Zentralbehörde an den Bund vom März 1850”, in MEW, vol. 7, Berlim: Dietz Verlag, 1960;

NICOLAEVSKY, B. & MAENCHEN-HELFEN, O., Karl Marx: man and fighter. Penguin, 1976.

Notas


[i] Ibidem, “Die Bourgeoisie und die Kontrerevolution” [“A burguesia e a Contrarrevolução”], especificamente o artigo do dia 15/12/1848, in MEW, volume 06, Berlim: Dietz Verlag, 1961, pp. 107-08.

[ii] Os Ateliês Nacionais foram implementados por iniciativa de Louis Blanc, seguindo ideias expressas em seu livro A Organização do Trabalho. Após a revolução de fevereiro de 1848, Blanc assumiu o cargo de Ministro do Trabalho no governo provisório, quando pôde levar adiante suas ideias. Pouco depois, entretanto, foi escanteado do governo e os ateliês nacionais foram fechados.

[iii] Idem, “Die Junirevolution” [“A Revolução de Junho”], 29/06/1848. In MEW, vol. 05, op. cit., p. 134.

[iv] Ibidem, “Die Bourgeoisie und die Kontrerevolution”, op. cit., pp. 108-09.

[v] Cf. Ibidem, p. 124. Em certo sentido, o conteúdo da “miséria alemã” pode ser constatado nas cartas entre Marx e Arnold Ruge em 1842 e 1843. Em passagens do Manuscrito de Kreuznach, de 1843,Marx também expressa que a burguesia alemã era impotente demais. Ainda assim, parece que ele resolveu dar uma chance à burguesia em 1848.

[vi] Sobre a crítica à monarquia constitucional, ver particularmente suas cartas a Arnold Ruge, em 1842 e 1843, e o Manuscrito de Kreuznach, do final de 1843.

[vii] No primeiro capítulo do Dezoito de Brumário, Marx afirma que a pretensão do proletariado francês em fevereiro de 1848 era estabelecer não a “república”, mas a “república social”. No início do sétimo capítulo do mesmo livro, a “república social” é diretamente vinculada ao levante de junho de 1848.

[viii] O termo “revolução permanente” desenvolveu-se entre comunistas franceses do início do século XIX, na ideia de que a próxima revolução não poderia ser meramente democrática ou republicana, mas apenas comunista. Como lembra F. Claudín, o termo “revolução permanente”, ainda que sem destaque, já aparecera na obra A Sagrada Família, de Marx e Engels(redigida ao final de 1844). Cf. CLAUDÍN, F., Marx, Engels u la revolución de 1848, Madrid: Siglo Veinteuno, 1985, p. 423. Day e Gaido lembram também de referência anterior à da Sagrada Família, em “A Questão Judaica”, nos Anais Franco-Alemães (ver primeiro capítulo de DAY, R., & GAIDO, D., Witnesses to Permanent Revolution, Chicago/Leiden: Haymarket/Brill, 2009).

[ix] MARX, K. “Montesquieu LVI”, in MEW, volume 06, op. cit., p. 195.

[x] Heß desenvolveu a “filosofia da práxis” em 1843, a ser conduzia, segundo ele, pelos “homens de ação”. Tornou-se, assim, o principal teórico do “socialismo verdadeiro” ou “socialismo alemão”, um socialismo humanista (feuerbachiano) que teve muitos adeptos entre os alemães até a revolução de 1848. Marx foi bastante influenciado por Heß até a metade de 1845, mas depois rompeu com essa concepção. Sobre isso, ver nosso livro Sobre a Passagem de Marx ao Comunismo. Sobre Gottschalk, ver sobretudo NICOLAEVSKY, B. & MAENCHEN-HELFEN, O., Karl Marx: man and fighter. Penguin, 1976, caps. 13, 14 e 15.

[xi] Ibidem, p. 195.

[xii] GOTTSCHALK, A. (em publicação anônima). “An Herrn Karl Marx”, in Freiheit, Arbeit, n. 13, 25 de fevereiro de 1849, p. 2. Ver os originais em CZOBEL, E., Freiheit, Arbeit, Organ des Kölner Arbeitsvereins. Nº 1–33, Köln 14. Januar – 24. Juni 1849. Com introdução de Hans Stein. Glaushütten: Detlev Auvermann KG, 1972, p. 52.

[xiii] Ibidem, p. 2 [p. 52 da edição de Czobel]. O alemão segue a grafia antiquada, da época.

[xiv] Ibidem, p. 2 [p. 52 da edição de Czobel].

[xv] Ibidem, p. 2 [p. 52 da edição de Czobel].

[xvi] MARX, K., “Erklärung” (15 de abril de 1849), in MEW, volume 06, op. cit., p. 426. Assinam, além de Marx, Fr. Anneke, K. Schapper, H. Becker e W. Wolff.

[xvii] Tornou-se um item de colecionador, sendo enquadrada e vendida, já no século XIX, por alto valor.

[xviii] Cf. MARX, K., & ENGELS, K., “Ansprache der Zentralbehörde an den Bund vom März 1850”, in MEW, vol. 7, Berlim: Dietz Verlag, 1960, p. 244.

[xix] Ibidem, p. 246.

[xx] Ibidem, p. 247.

[xxi] Ibidem, p. 251.

[xxii] Ibidem, pp. 247–48.

[xxiii] Ibidem, pp. 248–49.

[xxiv] Ibidem, p. 251.

[xxv] Ibidem, p. 250. Note-se que o “comunal” dos conselhos, aí presente (em “Gemeinderäte”), pode ter o sentido de “municipal”, como ocorreu também depois, na Comuna de Paris.

[xxvi] A “mensagem”, a nosso ver, possui limitações. A relação com o Estado é nela dúbia, pois defende-se um poder paralelo, mas não fica claro se esse poder paralelo substituiria afinal o Estado oficial. Algumas reivindicações aparecem no texto com caráter estatista. Além disso, as reivindicações dos proletários são sempre estabelecidas na dependência das reivindicações dos “democratas pequeno-burgueses” (buscando radicalizadas). Apesar da estratégia e da tática novas, parece faltar a independência programática, no âmbito das reivindicações. Quanto à questão do Estado, apenas a experiência da Comuna proverá a “forma finalmente encontrada” (palavras de Marx) para a sociedade além do capitalismo. Já a questão das reivindicações (questão propriamente metodológica) Marx tentará responder a partir de O Capital, compreendido também como programa. Quanto a isso, ver BENOIT, H., “Sobre a crítica (dialética) de O Capital”, in Crítica Marxista. São Paulo: Brasiliense, nº 3, 1996.

[xxvii] Ibidem, p. 254.


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