2 de outubro, uma encruzilhada

Por VALERIO ARCARY*

Somos a maioria social, mas a presença nos Atos permanece estagnada

“Neste mundo não existe nenhuma tarefa impossível, se existe persistência. Uma faísca pode começar um fogo que queima uma campina inteira. Se as raízes não são removidas durante a capina, a erva daninha volta na próxima primavera” (Sabedoria popular chinesa).

Nas mobilizações de rua de 2 de outubro acumulamos força, e permanece viva uma esperança em movimento, mas não superamos os limites que a campanha Fora Bolsonaro conheceu até agora, o que nos deixa em uma encruzilhada. O balanço merece destacar três elementos:

(1) Os protestos alcançaram capilaridade de 300 municípios, com manifestações em todas as capitais, que mobilizaram, quando somados, algumas centenas de milhares. A campanha pelo Fora Bolsonaro tem uma audiência de massas, mas não conseguiu levar milhões às ruas. Há uma constância, perseverança, compromisso no ativismo. Mesmo em um contexto menos perigoso da pandemia, em que o perigo de contágio continua presente, mas é um pouco menor em função do avanço da vacinação, não aconteceu mudança de qualidade, somente alguma variação quantitativa para um pouco mais ou um pouco menos. Foram Atos que podem ser caracterizados como a mobilização de uma vanguarda ampliada da área de influência dos movimentos sociais mais organizados e partidos de esquerda.

(2) Na superestrutura o que vingou foi um reposicionamento da oposição de direita liberal, após a espantosa carta de Michel Temer pedindo desculpas em nome de Bolsonaro. Ainda assim, ocorreu uma ampliação do arco de alianças políticas, mas nas ruas não, mesmo depois das provocações fascistas de Bolsonaro no dia 7 de setembro. A maioria esmagadora dos Atos era do povo de esquerda. A incorporação de vinte partidos, tanto da centro-esquerda como PDT, PSB, Rede, Solidariedade, dissidentes de partidos da centro-direita liberal como Cidadania, DEM, MDB, PSD, PSDB, e até da extrema-direita rompida com o bolsonarismo como o PL, Podemos, e Novo não acrescentou adesões.

O mais importante, infelizmente, foi o destempero ou desatino de Ciro Gomes que, acossado por vaias enquanto discursava, um risco previsível, decidiu denunciar que o “fascismo vermelho” seria igual ao verde-amarelo, uma aberração. Na sequência, foi vítima de uma tentativa de agressão física, em um episódio grotesco e lamentável. Não há porque esperar que um próximo Ato, mesmo com expansão de lideranças que representam setores da burguesia pelo impeachment, seja capaz de atrair setores médios conservadores descontentes.

(3) Se consideradas somente as condições objetivas para ir às ruas contra Bolsonaro, elas estão mais do que maduras, até apodreceram. Os limites das mobilizações são as condições subjetivas. As sequelas da pandemia permaneceram agudas em setembro, com uma taxa diária de contágios acima de 15.000, sem considerar a subnotificação, e de óbitos acima de 500, com alguma desaceleração. O desemprego teve uma oscilação na margem de 1%, mas ainda castiga algo em torno de 14 milhões, com somente 30 milhões de carteiras de trabalho no setor privado, menos de um terço da população, economicamente, ativa. A inflação disparou para 10% ao ano, mas supera os 20% quando considerada a cesta de consumo da classe trabalhadora.

Análises não devem ser nem otimistas, nem pessimistas. O método do marxismo é o realismo revolucionário. Somos a maioria social, mas a presença nos Atos permanece estagnada. Uma forma de ver esta dinâmica é sublinhar os seus limites. Outra é destacar que não prevaleceu o cansaço, algo notável depois de algum desgaste após quatro meses. Ambas são verdadeiras. Chegamos ao limite? Qual é a dinâmica que vai prevalecer?

Na realidade, uma campanha para tentar deslocar um governo como o de Bolsonaro deve ser considerada como um processo, com oscilações, e exige perseverança. Só termina quando acaba, e ainda temos este ano o desafio do 15N e, na sequência, o 20N organizado pelo movimento negro. Mas é incontornável que não há uma situação explosiva de disposição de luta. Não devemos resmungar, não adianta. A questão é compreender esta subjetividade das massas populares. Afinal, por quê? Três fatores, infelizmente, parecem principais:

(a) O primeiro é a descrença. A tendência que vem se impondo na base social dos movimentos sindicais, feministas, negros, de juventude e populares é que o impeachment não é possível. As pessoas não acreditam. As massas só saem às ruas aos milhões quando acreditam na iminência da vitória. E Bolsonaro parece blindado no Congresso Nacional. Uma enorme angústia e rancor podem permanecer contidos por um longo período, e explica porque o “relógio da história” é lento. As razões desta dúvida ou insegurança são variadas.

(b) O segundo é a expectativa eleitoral de que Bolsonaro pode ser derrubado em 2022. Na medida em que o tempo passa, e as pesquisas de opinião se multiplicam, parece prevalecer uma aposta de derrotar a extrema-direita nas urnas. O cálculo se apoia na experiência dos últimos trinta e cinco anos de eleições ininterruptas. Mas é alimentado, também, pelo medo de que mobilizações radicais contra os fascistas despertem reações ainda mais radicais do bolsonarismo que, como todos sabem, tem grande influência na oficialidade das Forças Armadas e nas polícias estaduais.

(c) O último é o peso da experiência acumulada depois de tantas derrotas, nos últimos cinco anos. O golpe institucional contra Dilma Rousseff passou, Temer assumiu e cumpriu o mandato, Lula foi condenado e preso, Bolsonaro eleito, as contrarreformas trabalhista e previdenciária foram aprovadas, a Lei do Teto de Gastos ovacionada, as privatizações prosseguiram com a Eletrobrás e Correios. As pessoas estão, politicamente, machucadas. As feridas fazem a consciência retroceder.

Muitos na esquerda mais combativa têm alertado, também, que a ausência de Lula não pode ser desconsiderada. Não estão errados. Têm razão em criticar porque é inexplicável, ou até imperdoável, que a maior liderança popular escolha não ir aos Atos, nem sequer enviar um vídeo gravado para ser projetado no telão, mesmo depois da apoteose fascista de Bolsonaro no dia 7 de setembro. Uma sistemática divulgação dos Atos por vídeos em suas redes sociais, e a expectativa de sua presença teria fortalecido em muito a campanha Fora Bolsonaro. É um argumento sério que ainda estamos em condições de alerta sanitário, e Lula tem 75 anos, teve câncer, esteve preso por mais de um ano, e deve se proteger. Não era impossível contornar os perigos de contágio com a organização de um rigoroso serviço de segurança.

Mas não é razoável exagerar o papel de Lula. O núcleo duro da direção do PT fez uma aposta na estratégia do desgaste, o quietismo, evitando provocar os fascistas com a vara curta, privilegiando a ocupação de espaços para que Lula se afirme como um catalizador do mal estar social para 2022. Mas é preciso ser lúcido na avaliação da relação social de forças, e reconhecer que não depende da vontade da direção do PT derrubar Bolsonaro este ano. A avaliação que atribui a Lula toda a responsabilidade pela encruzilhada em que a campanha Fora Bolsonaro está, não é correta. Contrafactuais são legítimos, porque na luta social e política há sempre um campo aberto de possibilidades. Mas nem tudo é possível.

Mesmo que Lula tivesse se engajado, ainda assim, não é uma hipótese provável que milhões tivessem respondido. O PT é o maior partido de esquerda, mas não tem a mesma força de duas décadas atrás. Tampouco têm razão aqueles  que insistem na proposta de avançar para a preparação da greve geral para derrubar o governo. Não há, infelizmente, condições de construir um dia de greve geral. Uma convocação, mesmo admitindo a movimentação de um aparato de centenas de carros de som, e milhares de funcionários sindicais nas portas das grandes empresas, resultaria, inescapavelmente, neste momento, em um rotundo fracasso. Não basta que as condições objetivas sejam terríveis. É indispensável, também, que as subjetivas estejam presentes.

Finalmente, duas outras críticas têm sido feitas: (a) alguns, entre nós, consideram que há um problema político. Argumentam que há um erro no programa de agitação das Frentes Brasil Popular e Povo sem Medo. Defendem que a prioridade da convocação deveriam ser as reivindicações mais sentidas e não a consigna “Fora Bolsonaro”. Há um grão de verdade nesta crítica. Mas é também verdade que vacina no braço e comida no braço estiveram sempre presentes em todas a mensagens. Não há atalho, palavra de ordem “mágica” ou abracadabra na luta política. Não é esquerdismo politicista o eixo da campanha ser o “abaixo o governo”. Todas as pesquisas e opinião disponíveis confirmam que, especialmente entre o povo pobre das cidades, há uma maioria que considera o governo um desastre.

(b) alguns observam que o formato de Atos-concentração, sem passeatas e com duas horas e meia de discursos é pouco atrativa. Mas não é razoável imaginar que um formato mais combativo com passeatas, ou mais lúdico, com mais música fosem o suficiente para atrair milhões.

Reconhecer que estamos em uma encruzilhada é admitir que há um dilema diante de nós. Um dilema é uma escolha difícil. Mas devemos manter a campanha Fora Bolsonaro, e insistir na preparação dos atos de novembro, sem descanso, sem arrego. Nada é mais importante. A luta contra os neofascistas será longa e dura.

*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de O encontro da revolução com a história (Xamã).

 

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