Crepúsculo – notas alemãs

Imagem: Robert Rauschenberg
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Por LUIZ PHILIPE DE CAUX*

Apresentação do livro de Max Horkheimer, recém lançado no Brasil

“A coruja de Minerva só começa seu voo quando irrompe o anoitecer”.[i] Tendo de lidar com a palavra “Dämmerung” (também título original deste livro de Max Horkheimer), Marcos Müller assim verteu a célebre sentença de Hegel sobre a relação entre a filosofia e o tempo histórico. Para evitar, naquele contexto, mal-entendidos que outras traduções talvez não evitassem, um de nossos maiores tradutores de filosofia alemã verteu “Dämmerung” por “anoitecer”.

A ideia é a de que nem mesmo a mais especulativa das filosofias é capaz de ir além do horizonte de seu próprio tempo; o pensamento à altura de seu tempo é aquele que se enuncia não exatamente quando um processo histórico já se apagou por completo e o que resta é a escuridão da noite, mas sim naquele instante confuso de sua agonia, em que já não é dia, ainda não é noite, mas ela já é implacável (sobretudo para a coruja teórica, que a compreende). Quando o prático galo gaulês do jovem Karl Marx, em contraste, quer cantar, é para anunciar a revolução, o fim de uma longa noite e a aurora de um novo dia.[ii]

Max Horkheimer não está certo se seu crepúsculo é o poente de Hegel ou o despontar do sol no horizonte de Marx. Mais ambíguo, no seu uso cotidiano, do que o português “crepúsculo”, Dämmerung, título original da coleção de aforismos que o leitor tem em mãos, significa não simplesmente o ocaso, o anoitecer, o lusco-fusco entre o dia e a noite, nem, ainda, também a alvorada, o novo lusco-fusco que se produz quando é a noite que vira dia, mas o próprio gradiente de cores da transição que se manifesta em ambos, motivo pelo qual se fala em alemão, quando se quer evitar a equivocidade, de Morgendämmerung (aurora, a meia claridade do amanhecer) ou de Abenddämmerung (ocaso, a meia claridade do anoitecer).

O leitor desprevenido – que, na dúvida, consulte um dicionário! – deve ter em conta que o mesmo acontece com nosso vocábulo “crepúsculo”, que, embora soe aos ouvidos de modo imediato como designando o crepúsculo vespertino, traz consigo clandestina, pelas mesmas razões de sua correspondente germânica e como aquelas curiosas palavras freudianas que significam também o seu exato oposto, a meia-luz da aurora. O crepúsculo é aquela hora perigosa do poeta, que pode, todavia, redundar na salvação.[iii]

Ressoa como um segundo harmônico um “socialismo ou barbárie!” na ambiguidade proposital do título do jovem luxemburguista Max Horkheimer.[iv] Entre a claridade do dia e a escuridão da noite (e vice-versa), se encontra a cada vez o vermelho socialista do crepúsculo.[v] Ele é certamente um declínio, mas o presente é sempre aberto e pode sempre ser já também um começo, como diz o autor já no aforismo que abre o livro. A epígrafe do poeta austríaco Nikolas Lenau não deixa dúvidas. Morre-se no crepúsculo, que era de fato uma alvorada, mas a própria morte é também um crepúsculo, isto é, desta vez, um ocaso.

O crepúsculo de Nikolas Lenau é uma chance perdida. A referência de Max Horkheimer é, por certo, o fracasso da Revolução Alemã, com a queda da Liga Espartaquista em Berlim e os assassinatos de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, mas particularmente também com o fim da curta vida da República de Conselhos de Munique, cidade onde Max Horkheimer então morava, cujos círculos socialistas, boêmios e de vanguarda artística frequentava e cuja repressão o acaso o fez viver na própria pele.[vi]

Conhece-se a sequência dessa história. Se, de acordo com a tese que Slavoj Žižek atribui a Walter Benjamin, toda ascensão do fascismo testemunha uma revolução fracassada,[vii] daquela vez, o lusco-fusco se resolveu pela noite. No fim de janeiro de 1933, o Presidente Paul von Hindenburg nomeia Hitler chanceler do Reich Alemão, e é de fevereiro do mesmo ano a “Observação Preliminar” de Crepúsculo, que ressalva de antemão que os pensamentos do livro já haviam envelhecido, pois “pertencem ao tempo anterior à vitória definitiva do Nacional-Socialismo” e diziam respeito a um mundo que já foi ultrapassado.

O livro possui, então, um status temporal excêntrico – quando se enuncia, já não está mais onde cria estar –, mas sua autoimputada caducidade é justamente o que o torna até hoje atual, como se as esperanças que registra se projetassem renovadas no futuro justamente por se saberem então obsoletas. Quando Max Horkheimer publica o livro em 1934 por uma editora de Zurique, já exilado provisoriamente na Suíça antes de novamente emigrar no mesmo ano, desta vez para Nova Iorque, o crepúsculo cuja experiência se inscreve no livro pode parecer ter sempre sido aquele que traz a noite – mas não era.

Enquanto escrevia, entre 1925 e 1931, muito ainda estava em jogo, em que pesem as fortes derrotas sofridas há pouco. Daí a experiência benjaminiana de descerramento da história que o livro deve ter provocado já então e pode continuar provocando, se lido à luz de seu contexto. Já foi notado como combinam-se, em Max Horkheimer (mais acentuadamente em algumas fases de seu pensamento do que em outras), um profundo fatalismo acerca do decurso histórico passado e um renitente voluntarismo acerca da possibilidade de explodir o contínuo da história.[viii]

“Se o socialismo é improvável, é necessária uma resolução ainda mais desesperada para torná-lo verdadeiro,” diz o autor no aforismo “Ceticismo e moral”. No crepúsculo, nos movemos no domínio do provável e do improvável, isto é, do possível, e depende da ação política o desfecho em socialismo ou barbárie. E embora a barbárie siga hoje se impondo, ou por isso mesmo, o imperativo de Rosa Luxemburgo faz o crepúsculo vermelho se perenizar e não deixa que a noite caia de uma vez por todas para nós.

Independentemente de seu desfecho, até então em suspenso, a experiência cotidiana posta no papel por Max Horkheimer é a experiência de uma transição. O que encontra seu fim é a fase liberal do capitalismo, vítima da concentração de capitais que ela mesma engendrou. Porém, se este processo econômico é em grande medida o conteúdo tratado no livro, há uma interessante discrepância entre seu conteúdo e sua forma. Não há números, dados, correlações, formulações de leis, confirmação de hipóteses, gráficos ou o que quer que apagasse o vivido em nome de uma objetividade e de uma neutralidade positiva, mas sim o registro da experiência subjetiva, a nota privada, quase íntima, a narrativa imaginária, a lembrança autobiográfica, o fragmento assistemático, a tirada espirituosa.

Retrato de sua sociedade e de seu tempo, o livro de Horkheimer é também um retrato dele próprio nos espaços pelos quais circula. É de dentro da experiência vivida do autor que sobressaem os processos objetivos que a transcendem. A monopolização do capital não é um processo diagnosticado de modo asséptico pela ciência econômica, mas algo experimentado na carne e em todas as esferas da vida. Neste processo, algo do capitalismo muda para que sua essência possa continuar a mesma: “a estrutura da sociedade capitalista se transforma continuamente sem que os fundamentos dessa sociedade, a relação capitalista, sejam violados” (“Limites da liberdade”).

Se as “ideologias necessárias” se tornam “ocas”, como já diz o primeiro aforismo, é porque as ideias estruturantes da esfera da circulação (liberdade, igualdade, justiça, sem cuja pressuposição não há troca de equivalentes) perdem sua força material junto da debilitação da concorrência – e daí a necessidade de formas de dominação mais cruéis, violentas, para que a esfera da produção, por sua vez, possa restar intocada. O mesmo esvaziamento dos ideais retorna logo a seguir em “Conceitos desonrados”.

Em “Possibilidades ilimitadas”, as dimensões percebidas como hipertrofiadas de todos os aspectos da vida social no início do século XX (em comparação com os séculos anteriores), das habilidades de um musicista às forças produtivas em geral, são paralelas à hipertrofia do capital concentrado, que produz em contrapartida uma espécie de atrofia da sensibilidade moral por obsolescência técnica: diante da monstruosa pilha de tudo o que se produz, o indivíduo se torna cada vez mais insignificante e impotente, e sua atenção não é mais capaz de se voltar para o sofrimento singular, diluído no caldo do “sofrimento geral”, incapaz de gerar compaixão em sentido próprio.

“Todo começo é difícil” registra a cada vez maior dificuldade da ascensão social na sociedade enrijecida pela monopolização (“o começo se torna cada vez mais difícil do que já era antes”). Mesmo certos ditos mudam de sentido na passagem ao capitalismo pós-liberal: em “Tempo é dinheiro”, se a sentença de Benjamin Franklin significava, em tempos de concorrência aberta, algo como “cada minuto pode te ser produtivo, portanto seria tolo perder um só que fosse”, então, no capitalismo dos trustes, “agora, ela quer dizer: se você não se esfolar de trabalhar, morrerá de fome”.

Sobretudo, muda a estrutura das classes, no interior das próprias classes e das classes entre si, e esta transformação, palpável em cada interação social cotidiana para aquele cuja sensibilidade foi apurada pela teoria, é a que mais mobiliza a pena de Max Horkheimer. A análise das transformações nas relações sociais (no capitalismo, todas elas relações de produção) tal como vividas no “mundo da vida” ganha um surpreendente tom bourdieusiano de descrição do habitus, sem que o capital social e o capital cultural das frações das classes se desacoplem de seu capital econômico.

De um lado, é do fim da burguesia esclarecida e progressista que se trata, com seus modos, costumes, crenças; de outro, do desmembramento da classe operária em estratos com diferentes status de trabalho até o desemprego crônico, e da consequente perda da sua solidariedade interna. As relações de cortesia e as formas normativas do trato entre aqueles que ocupam lugares distantes na hierarquia – e sobre a inteira sociedade como hierarquicamente estruturada, confira-se o aforismo “O arranha-céu” – são desveladas por Horkheimer como pactos tácitos, apoiados por uma coerção difusa, para evitar que se pronuncie cinicamente a injustiça por todos sabida e que se declare abertamente a guerra social.

Se as lentes são as da experiência vivida subjetiva, é natural que a questão moral seja a todo tempo levantada. Como viver de modo íntegro nesta sociedade que está a emergir, cada vez menos mediada pelos valores da velha burguesia iluminista e cada vez mais abertamente violenta? Será que também a própria moral se torna caduca? Horkheimer enfrenta uma verdadeira dialética da personalidade moral, ou, como prefere, do caráter. Há um aparente paradoxo que necessita ser deslindado. Entendido em sentido imediato e tomado em seu valor de face, o caráter moral individual é tão mais possibilitado quanto mais alto na hierarquia social alguém se encontra. “Moral e caráter são, em larga medida, monopólio da classe dominante” (“A liberdade da decisão moral”).

Adquirir uma formação moral, aprendendo a controlar os impulsos antissociais, é, nesta sociedade, um luxo do qual em regra podem gozar apenas aqueles que tiveram condições materiais para tanto (cf., por exemplo, “Educação e moral”). Mas justamente por isso, de modo mediado pela imoralidade dessa própria hierarquia social, o caráter moral dos de cima é também essencialmente imoral (o que nem por isso torna mais moral o dos de baixo). A moralidade individual é aparente, pois é mediada pela imoralidade essencial do sistema que a possibilita. Estamos muito perto da intuição de Theodor Adorno sobre a impossibilidade da vida verdadeira na falsa, ou da sacada de Walter Benjamin sobre a identidade de cultura e barbárie.

Nesta sociedade, mesmo o ressentimento troca de sinal: contra Nietzsche, ele é um afeto racional e mesmo justo, sinal de um “juízo desanuviado” (“Os encalhados”). “Essa ordem, na qual os filhos dos proletários estão condenados à morte por inanição e os conselhos administrativos condenados aos festins, realmente desperta ressentimento” (“Socialismo e ressentimento”). Mas mesmo que Friedrich Nietzsche esteja errado em condenar o ressentimento dos “fracos”, sua crítica ensina ao proletariado que a própria moral é “apenas enganação”, e precisa ser derrubada em um levante (“Nietzsche e o proletariado”).

Max Horkheimer, no entanto, não é Theodor Adorno. Algo da ideia de que a moral muda de sentido em um mundo falso está presente, mas não exatamente como em seu companheiro. Enquanto em Theodor Adorno toda ação moral está contaminada pela imoralidade que a medeia, neste escrito de Max Horkheimer, a moral segue guardada em ao menos um lugar positivo. Há, na imanência deste sistema, uma ação inequivocamente moral: a que nega o próprio sistema e quer destruí-lo. A verdadeira moral será então reconhecida pelos valores dominantes como imoral por excelência.

Para o jovem Horkheimer, numa ordem injusta, mentir é moral quando é preciso mentir para seguir sendo opositor e dizer a verdade é colaborar (“Educação para a veracidade”). Ser ingrato, se se está na situação moral do revolucionário, não é imoral, mas condição da luta (“Gratidão”). Para Horkheimer, “em um período como este”, isto é, em um crepúsculo histórico, “a luta contra o existente aparece ao mesmo tempo como luta contra o necessário e o útil, e (…), por outro lado, o trabalho positivo no quadro do existente é ao mesmo tempo uma colaboração positiva com a perenização da ordem injusta” (“Um prêmio à vileza”). Por isso, “a forma assumida pela moral no presente é a da efetivação do socialismo” (“Ceticismo e moral”).

Diferentemente de Theodor Adorno, também, e mesmo das posições que ele próprio viria a assumir quando mais próximo esteve deste, Max Horkheimer é aqui herdeiro assumido das melhores intenções da classe burguesa na fase em que, na teoria, era iluminista e, na prática, revolucionária. O socialismo de Max Horkheimer (um autor que a si próprio se chama um “individualista em seu modo de vida”) pretende ser, de fato, uma extração das últimas consequências de um pensamento burguês radical, radical a ponto de, no fim, precisar trair a particularidade da própria classe em nome de sua pretendida universalidade.

O próprio pseudônimo sob o qual o livro é publicado é indício desta filiação. Como dito, uma vez consumada a tomada do poder pelos nazistas, Max Horkheimer publica o livro no exterior, e o faz sob o pseudônimo de Heinrich Regius. Trata-se de uma germanização do prenome de Henricus Regius (nome latino), ou Hendrik de Roy (holandês), filósofo do século XV, professor de Medicina na Universidade de Utrecht, correspondente e seguidor de Descartes que veio, mais tarde, a desenvolver uma crítica materialista de seu mestre, negando suas teses metafísicas sobre a prova da existência de Deus e sobre a configuração do dualismo de res extensa e res cogitans, sustentando, de uma posição mais naturalista, uma união tão estreita de corpo e mente que não deixava mais espaço para a crença na substancialidade e eternidade da alma.

Regius conta assim, para Max Horkheimer, como um “exemplo de espírito livre”,[ix] e talvez possa ser considerado um membro daquela tradição do “esclarecimento radical” de que fala Jonathan Israel, disposto a ir às últimas consequências para fazer valer aquilo que lhe é indicado pela razão. Para Horkheimer, os intelectuais do primeiro esclarecimento burguês são “aqueles que abriram caminho para a ordem burguesa com sua luta contra a Idade Média dentro da cabeça das pessoas, e que, mesmo depois da vitória dessa ordem, indiferentes aos novos desejos da burguesia que ascendera economicamente ao poder, aspiraram servir até ainda mais longe à libertação espiritual e à verdade” (“Categorias do sepultamento”).

Max Horkheimer quer fazer valer os “os resíduos teóricos da época revolucionária da burguesia” (“A luta contra o burguês”), anteriores ao momento que Gyögy Lukács viria mais tarde a denominar a “decadência ideológica da burguesia”,[x] a virada reacionária e autoritária da classe burguesa no momento em que a realização plena dos valores e ideais que haviam usado como arma contra a nobreza passa a servir de ferramenta ao proletariado, dessa vez contra a própria burguesia. Havia um tempo, diz Max Horkheimer, em que “a ideologia burguesa ainda levava a sério a liberdade e a igualdade e o desenvolvimento sem inibições de todos os indivíduos ainda aparecia como finalidade da política” (“Direito de asilo”).

Este tempo passou, o fascismo europeu era a mais forte manifestação daquela decadência ideológica desde o golpe de Estado de Luís Napoleão, e agora “a moral à qual apelam [certos escritores radicais] já foi há muito descartada pela burguesia que se tornou imperialista” (“Transformações da moral”). Max Horkheimer sabe que as coisas são, neste instante, “tão complicadas, que o trabalho científico de Bacon e Galileu beneficia hoje a indústria bélica” (“Um prêmio à vileza”), mas não chega a afirmar, como afirmaria mais tarde, junto a Adorno, que é o próprio esclarecimento que engendra o seu contrário.[xi]

As promessas da vertente radical do esclarecimento burguês podem e devem ser retomadas, para Max Horkheimer, e sua consequência lógica – evitada pela própria burguesia – é o socialismo. Em que pese sua origem burguesa, o socialismo de Max Horkheimer não é simplesmente a realização dos conteúdos normativos do trabalho, mas sim uma forma de organização social em que o trabalho perde a centralidade. A ideia de uma sociedade em que é pelo trabalho que se realiza o bem comum é caduca quando há “verdadeira abundância de todos os bens necessário” (“Relatividade da teoria das classes”) e, ao mesmo tempo, devido à “tendência de diminuição do número de trabalhadores empregados proporcionalmente ao uso de maquinaria”, “uma porcentagem cada vez menor do proletariado é realmente empregada” (“A impotência da classe trabalhadora alemã”): quebra-se o liame entre trabalho e retribuição, e o velho dito bíblico de Paulo retomado pelos socialistas contra a burguesia, “Se alguém não quiser trabalhar, que também não coma” (2 Tes 3:11), se torna antes um dito reacionário e justificador do existente (“Se alguém não quiser trabalhar”).

Por burguesa que seja a vida do próprio Max Horkheimer, sua sensibilidade teórica está sempre voltada para certas experiências de seu outro. É muito notável que por diversas vezes Max Horkheimer mencione os territórios coloniais e as atrocidades neles cometidos como sustentáculo da ordem e da abundância que reina na metrópole. A questão do sofrimento animal, não mais do que consequência da compaixão schopenhaueriana do autor por toda espécie de sofrimento, também atravessa diversos aforismos.

Igualmente a instituição penal prisional, à margem da sociedade, é outra das ideias fixas de Max Horkheimer, e conta, para ele, como metáfora da sociedade capitalista em geral. Para quem se encontra bem no centro, é surpreendente que Max Horkheimer formule, mesmo de que modo apenas indicativo, algo semelhante a um princípio que viria a caracterizar certa tradição crítica brasileira, o do privilégio epistêmico da periferia do capitalismo para a crítica da ideologia.[xii]

Em “De dentro para fora”, Horkheimer fala da necessidade de um abalo capaz de descentrar nossa experiência de nós mesmos como pressuposto para conhecermos nossos próprios condicionantes. Em “Sobre as Máximas e Reflexões de Goethe”, pensa a vantagem do dominado para conhecer a si mesmo e ao dominante melhor do que ele próprio se conhece, e chega a falar de um “o ponto de vista do chão de fábrica”, no que ressoa, claro, o “ponto de vista do proletariado” de György Lukács, mas adianta também, para nossos ouvidos, o “ponto de vista da periferia” de Paulo Arantes. O ofuscamento só funciona completamente para aquele que está no centro, ele se atenua quanto mais à margem nos encontramos. Em “O espaço social”, sustenta: “Enquanto uma pessoa se mantém no centro de uma sociedade, ou seja, enquanto ocupar uma posição respeitada e não entrar em contradição com a sociedade, ela não tem a experiência do que é decisivo na essência da sociedade”. Daí a fixação com o presídio e a colônia, que Max Horkheimer compreende serem portadores da verdade dos mais refinados salões da alta burguesia.

O ano das últimas notas contidas em Crepúsculo, 1931, é também o ano em Horkheimer assume a posição de direção do Institut für Sozialforschung de Frankfurt e começa a conceber a Zeitschrift für Sozialforschung. O livro contém, portanto, pensamentos de Max Horkheimer anteriores ao início do que quer que se possa chamar de “Escola de Frankfurt”, e adianta diversas ideias que, sistematizadas mais tarde pelo próprio Max Horkheimer, comporiam aquilo que se viria a chamar de “teoria crítica”.

“Perigos da terminologia”, por exemplo, mostra o quanto a conceituação científica positiva (ou do que Horkheimer chamaria de “teoria tradicional”) possui um caráter quietista, ao normalizar a experiência e conotar como necessário aquilo que antes era perturbador e impelia à transformação, como se aquilo que é explicado cientificamente se transformasse imediatamente em natureza eterna e imutável. A crítica à suposta neutralidade e objetividade das ciências positivas se apoia aqui, sobretudo, naquilo que Jürgen Ritsert denominou sinteticamente de “teorema de Horkheimer”,[xiii] tão bem formulada no início de “Relatividade da teoria das classes”: “As teorias têm origem nos interesses das pessoas. Isso não significa que os interesses necessariamente falsifiquem a consciência. É antes o caso de que as teorias corretas são justamente as que se orientam pelas perguntas para as quais elas oferecem uma resposta”.

Em “Afetos estigmatizados”, Horkheimer vê justamente o papel positivo dos afetos na produção da verdade teórica: “Na realidade, o pensamento burguês estigmatiza apenas os afetos dos dominados contra os dominantes”. A exigência de imparcialidade, desde sempre movida por afetos e interesses, “significa hoje, portanto, um estreitamento do horizonte, condicionado pela dependência da ciência ao capital”. Por isso, a ideia de neutralidade da ciência é parcial, não está acima, mas joga para um dos lados, ao passo que a parcialidade consciente daqueles que lutam por uma universalidade que ainda não existe é que obtém a verdadeira objetividade do conhecimento (como se vê em “A parcialidade da lógica”, “Aspiração desinteressada à verdade”, e “Uma fábula sobre a consequência lógica”).

O leitor interessado neste documento seminal da primeira teoria crítica frankfurtiana, tem, então, nas páginas que seguem, uma experiência a fazer.

*Luiz Philipe de Caux é professor de filosofia na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Autor de A imanência da crítica: estudo sobre os sentidos da crítica na tradição frankfurtiana (Loyola).

Referência


Max Horkheimer. Crepúsculo – notas alemãs (1926-1931). Tradução: Luiz Philipe de Caux. São Paulo, Unesp, 2022, 208 págs.

Notas


[i] Hegel, G.W.F. Linhas fundamentais da Filosofia do Direito: Direito natural e ciência do Estado no seu traçado fundamental. Tradução, apresentação e notas por Marcos Müller. São Paulo: Editora 34, 2022, p. 148.

[ii] Marx, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Trad. Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 157.

[iii] Hölderlin, Friedrich. Poemas. Trad. José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 180-181.

[iv] Sobre a influência de Rosa Luxemburgo em Crepúsculo, cf. Michaelis, Loralea. Temporality and Revolution in Horkheimer’s Early Critical Theory: A Luxemburgian Reading of Dämmerung. Telos, 185, 2018, 129–148.

[v] “Em nenhuma outra época e em nenhum outro escrito quanto no Crepúsculo ele [Horkheimer] adere tão enfaticamente ao socialismo e subordina de modo tão incondicional seus esforços teóricos a este objetivo” (Schmid Noerr, Gunzelin. Nachwort des Herausgebers. In: Horkheimer, Max. Gesammelte Schriften. Band 2: Philosophische Frühschriften 1922-1932. Frankfurt a.M.: Fischer, 1987, p. 467).

[vi] Abromeit conta que, enquanto se deslocava nas ruas de Munique, Horkheimer foi por duas vezes confundido, por semelhança física, com o escritor expressionista e revolucionário da Liga Espartaquista Ernst Toller, por cuja captura se oferecia uma recompensa. Escapando por pouco do espancamento, Horkheimer decide então deixar Munique e se mudar para Frankfurt. (Abromeit, 2011, p. 44).

[vii] Žižek, Slavoj. First as tragedy, then as farce. London: Verso, 2009, p. 73. Escrevendo, portanto, antes do desfecho, no aforismo “A impotência da classe trabalhadora”, Horkheimer constata uma cisão na classe operária entre aqueles que dispõem de alguma segurança no trabalho e os que de fato não têm nada a perder, cisão que constituiria a base real da existência de dois partidos trabalhistas na Alemanha, o KPD (comunista) e o NSDAP (nazista). Demonstrando como essa cisão materializa também a cisão entre dois momentos necessários para a superação do capitalismo, o da consciência teórica clara e o do interesse material imediato, Horkheimer conclui surpreendentemente que “em cada um dos dois partidos existe uma parte das forças das quais o futuro da humanidade depende”. Um estudo empírico realizado pelo Institut für Sozialforschung em 1930 (antes de Horkheimer assumir oficialmente a direção, mas quando já conduzia na prática as atividades do instituto) acerca da mentalidade dos trabalhadores concluíra, ao constatar uma ambivalência na maioria dos questionados quanto a posturas autoritárias e antiautoritárias, que a classe trabalhadora não oporia resistência a uma tomada de poder pela direita. Esses resultados se tornaram objeto de um desentendimento entre Horkheimer e Erich Fromm, que conduziu a pesquisa (cf. Jay, Martin. A imaginação dialética: História da Escola de Frankfurt e do Instituto de Pesquisas Sociais 1923-1950. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008, p. 166-168.).

[viii] A respeito desta tensão no ensaio “O Estado Autoritário”, cf. nossa interpretação em de Caux, L. Ph. e Mazzocchini, G. Entre Pollock e Benjamin: Teoria e práxis no “Estado autoritário” de Horkheimer. Princípios, v. 26, n. 50, 2019, pp. 239-262.

[ix] Schmid Noerr, Nachwort des Herausgebers, op. cit., p. 466, n. 32.

[x] Lukács, Georg. Marx e o problema da decadência ideológica. In: Marxismo e teoria da literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 49-112.

[xi] Adorno, Theodor W.; Horkheimer, Max. Dialética do esclarecimento: Fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

[xii] Cf. Schwarz, Roberto. As ideias fora do lugar. In: Ao vencedor as batatas. 6. ed. São Paulo: Editora 34, 2012, pp. 9-32.

[xiii] Ritsert, Jürgen. Ideologie: Theoreme und Probleme der Wissenssoziologie. Münster: Westfälisches Dampfboot, 2002, p. 19.

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