2022 e depois

Imagem: Magali Magalhães
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE*

Agenda urgente e necessária pela reconstrução da soberania brasileira

A conjuntura de 2022 conformou um dos períodos mais críticos das últimas quatro décadas da sociedade brasileira. A crise política, econômica e social está sendo processada num quadro de profundo esgarçamento institucional, sendo que a disputa eleitoral, no interior deste quadro institucional em frangalhos, acabou sendo a principal opção das forças sociais democráticas, populares e socialistas ao enfrentamento colocado, seja por sua fragilidade organizacional, seja pelos impasses programáticos que a caracterizam. Fazer um primeiro balanço crítico, não descurando das ameaças ainda no horizonte e dos desafios que estão colocados para o próximo período, são os objetivos audaciosos colocados nesse breve artigo.

Retornando ainda ao centro do golpe de 2016, observa-se que a conformação de um bloco de poder precário que buscou fortalecer as relações de dependência internacional com vistas a se recolocar como centro periférico privilegiado, utilizando-se das bases naturais (matéria-prima, terra e commodities em geral) e dos baixos custos salariais (superexploração) como plataforma de completa subordinação internacional, porém sua limitação econômica e a crise sanitária colocada, esgarçou as condições de poder e interação entre os grupos sociais: parte da burguesia conflitou com os setores autoritários básicos, o que se evidenciou na crise entre os grupos de poder midiático (Globo, Estadão, Folha) e os segmentos militares e milicianos (Jair Bolsonaro), algo que ficou bastante evidente durante o segundo turno das eleições presidenciais, porém ainda em aberto o grau, sentido e significado desses choques intraburguesia.

Já tratamos em outro lugar do caráter do governo de Jair Bolsonaro e da relativa condicionalidade da sua vitória em 2018, especificamente o acordo entre setores da grande burguesia nacional e internacional, mesmo considerando que o candidato mais representativo para esses segmentos fosse naquela altura um nome do hoje fragmentado PSDB (Geraldo Alkimin). O arranjo que levou Bolsonaro ao governo envolveu além desses segmentos da alta burguesia, o alto comando das forças armadas e segmentos ideológicos conservadores religiosos, um arranjo que se mostrou muito poderoso na asserção e imposição do neoliberalismo autoritário.

A presença do próprio Geraldo Alkimin na chapa vitoriosa de Luiz Inácio nos dá a dimensão do aprofundamento da perda de controle que o núcleo da burguesia monopolista brasileira manifestou sobre seus segmentos grandes e médios identificados com o projeto de Jair Bolsonaro, assim como sinaliza o grau da crise orgânica em que nos encontramos. A escalada de conflitos dentro da burguesia brasileira parece estabelecer patamares crescentes de um “tour de force” entre segmentos da burguesia nacional e internacional organizadas em torno de uma lógica programática conservadora, mas de manutenção do “status quo” parcialmente institucional (manutenção da ordem jurídica formal e alguma organização do sistema eleitoral) e a parcela mais decidida da burguesia financeira e da burguesia comercial e vinculada ao agronegócio que topou arrastar o país para uma aventura neofascista, inclusive com segmentos militares.

Chegamos neste final de 2022 com um quadro crítico, mesmo que definido eleitoralmente, com a central vitória do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sendo que a definição da frente ampla estabelecida por Lula, que incluiu parcela considerável da esquerda brasileira e setores conservadores, mais próximos da clássica conformação de um projeto liberal-democrático conformou importante passo para deter o avanço de um regime neofascista no país, porém, curiosamente, nos remete a um ponto anterior a conquistas de direitos e organização social que tínhamos alcançado, algo que também pode ressoar no programa e significado do futuro governo de frente ampla.

Vale aqui fazer algumas observações necessárias ao sentido da intervenção social que pensamos:

(i) O governo Lula será um governo de crises e disputas sociais permanentes. Será de crise pois os aspectos macroeconômicos que levaram ao atual quadro não se resolveram, até se agravaram. Temos de um lado a continuidade de um padrão econômico dependente e centrado na exportação de bens primários, essas características não são possíveis de serem alteradas facilmente, mas será necessário buscar meios para uma transição produtiva e de alteração da base reprodutiva econômica nacional. Por outro, a manutenção do atual regime fiscal, baseado no garrote da EC 95/16 (Emenda do Teto de Gastos), torna a gestão governamental uma quimera quase impossível, assim não há como conviver com o referido regime.

(ii) A disputa em torno de projeto de sociedade somente se agravará nos próximos anos, sendo que a vitória parcial nestas eleições serão continua e permanentemente colocadas em xeque. A direita neofascista veio para ficar e seu aprendizado nos últimos anos a coloca como o principal inimigo político, mas não o único. Assim, temos dois exercícios vitais a serem desenvolvidos: a disputa cotidiana, inclusive recriando instrumentos pretéritos, por exemplo, os Centros de Cultura Popular, existentes na década de 1960 e operacionalizados pela União Nacional dos Estudantes (UNE), isso dentro de um novo formato e totalmente autônomo do governo, exercício de ação popular; por outro, temos que aperfeiçoar nossa capacidade de uso e instrumentalização das novas tecnologias, inclusive aperfeiçoando e criando redes sociais de educação popular.

(iii) A organização e mobilização social continua, terá que ser a norma dos próximos anos, algo aprendido com a própria direita. A agenda de mobilização não poderá ser ocasional, terá que ser definida, desde a realidade concreta, mas a partir de organizações nacionais. Neste sentido avançamos, hoje temos além de organizações sindicais e movimentos nacionais, duas Frentes de organização comum de lutas populares (Frente Brasil Popular e Frente Povo Sem Medo), elas devem ser potencializadas e, principalmente, convocar Congressos Nacionais, cujas pautas serão o debate público e as linhas de intervenção coletiva, isso, ao nosso ver, já deverá ser exercitado desde o início do próximo ano.

(iv) Não podemos renunciar a uma agenda mínima a ser realizada de reconstrução econômica e social nacional, algo que deverá ser fruto de pressão permanente sobre o próximo governo. Os elementos dessa agenda mínima são os que já foram debatidos em diversos fóruns de economistas, inclusive tratados em manifestos assinados no último período e tratados pelo autor em artigo já publicado, porém vale novamente sistematizá-los neste novo quadro conjuntural que se abre:

(1) Ruptura total com o regime fiscal-dependente. A destruição da capacidade de gestão fiscal do Estado através da EC 95/16, componente central da lógica de reorganização do poder de interação soberana do Brasil. A lógica de congelamento do orçamento primário, desmonta o poder de intervenção estatal e fragiliza qualquer possível saída do círculo de ferro neoliberal. A manutenção da EC 95/16 e de formas atenuadas, impossibilita qualquer exercício de poder democrático no país, sua condição é autoritária e venal.

(2) ampla reforma tributária progressiva. A reforma tributária a ser debatida e estabelecida no Brasil, se relaciona a três mecanismos a serem viabilizados: primeiramente, a regulamentação do IGF (Imposto sobre Grande Fortuna), algo que caminha em vários países e que no Brasil desde 1988 não se regulamenta. Esse tributo atingiria somente 0,1% dos brasileiros e possibilitaria diminuir os tributos indiretos, melhorando a neutralidade tributária e reduzindo a regressividade. Segundo: organização e regulamentação do IVA (Imposto sobre Valor Adicionado) a partir do ICMS/IPI/Confins, estabelecendo uma câmara de equalização federativa. Por fim, a adoção do Imposto de Renda Progressivo, com banda de alíquotas crescentes e isenção maiores das menores rendas; assim como o IR pessoa jurídica efetivo.

(3) Reestatização das principais empresas estratégicas nacionais: Companhia Vale e Petrobras.  Essas duas empresas respondem por quase um terço da capacidade de investimento brasileiro dos últimos cinquenta anos, além do controle que as mesmas dispõem sobre o solo e subsolo brasileiro. Reestatizar a Vale e a Petrobras constitui ponto fundamental para o desenvolvimento brasileiro e estabelecimento de políticas estratégicas para o país.

(4) Ruptura, revogação e reorganização social da reforma trabalhista e previdenciária. Essas duas medidas tomadas pelos governos neoliberais e antidemocráticos estabelecidos nos últimos seis anos, impossibilita qualquer grau de civilidade no país, deteriora as relações sociais. Enquanto forma de ação essas medidas constituem o resgate com parcela considerável do povo brasileiro, devendo ser as primeiras medidas a serem tomadas por um governo reformista social.

(5) Política industrial e de reorganização da base produtiva nacional. Uma sociedade de mais de duzentos milhões de habitantes não consegue viver sob a égide de um sistema de empregos agrícolas limitados e exportação de recursos naturais, algo não somente impossível, mas de um nível de grotesca relação com a população e com a natureza. A necessidade de uma política industrial ampla se faz necessária, inclusive tomando como base eixos estruturantes da economia como, por exemplo, a logística de transporte de mercadorias e pessoas e a complementaridade industrial dos atuais segmentos chaves da economia, como o maquinário necessário a produção agrária e mineral.

(6) Ampla política de uso, proteção e inovação dos bens públicos sociais e naturais. Observando cinco eixos que me parecem chaves: estabelecer uma ampla e soberana política de segurança alimentar, pensando os aspectos de abastecimento urbano e programa de fortalecimento da agricultura familiar; estabelecer uma política ferroviária ampla e criativa; estabelecimento do sistema de reorganização da Petrobras com ampla base de nacionalização de insumos comprados para empresa; ampla política de construção civil (minha casa e reconstrução das rodovias nacionais, assim como propor um plano de reorganização de grandes cidades); e, reorganização e política de energia renovável. Estabelecimento de meta de 10% para base energética renovável nos próximos anos.

Os pontos colocados são parte de uma agenda urgente e necessária pela reconstrução da soberania brasileira, inclusive para garantir a vitória ideológica sobre a direita neofascista.

*José Raimundo Trindade é professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da UFPA. Autor, entre outros livros, de Seis décadas de intervenção estatal na Amazônia (Paka-tatu).

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Leonardo Boff Bruno Machado Ari Marcelo Solon Marcos Aurélio da Silva Ronald Rocha Luiz Carlos Bresser-Pereira Thomas Piketty João Carlos Salles Luis Felipe Miguel Andrés del Río Paulo Capel Narvai Marcos Silva Celso Frederico Denilson Cordeiro João Lanari Bo Igor Felippe Santos José Micaelson Lacerda Morais Samuel Kilsztajn Leonardo Avritzer Luciano Nascimento Marilena Chauí Bento Prado Jr. João Paulo Ayub Fonseca Ronald León Núñez Fábio Konder Comparato Flávio R. Kothe Eleonora Albano Vanderlei Tenório Juarez Guimarães Paulo Sérgio Pinheiro Chico Whitaker Michael Roberts Elias Jabbour Otaviano Helene Jorge Branco Liszt Vieira Francisco Fernandes Ladeira Michel Goulart da Silva Alysson Leandro Mascaro Luís Fernando Vitagliano Eugênio Trivinho Antônio Sales Rios Neto Henri Acselrad Osvaldo Coggiola Marcelo Módolo Tales Ab'Sáber Alexandre de Lima Castro Tranjan Renato Dagnino Benicio Viero Schmidt Bruno Fabricio Alcebino da Silva Marcus Ianoni Daniel Brazil Vinício Carrilho Martinez Rubens Pinto Lyra Atilio A. Boron José Geraldo Couto Lorenzo Vitral Paulo Fernandes Silveira Armando Boito Tadeu Valadares Marjorie C. Marona Luiz Bernardo Pericás João Feres Júnior Sandra Bitencourt Remy José Fontana Eugênio Bucci Priscila Figueiredo Eliziário Andrade Ricardo Antunes Eleutério F. S. Prado Luiz Eduardo Soares Everaldo de Oliveira Andrade Milton Pinheiro Francisco Pereira de Farias Flávio Aguiar Dênis de Moraes Celso Favaretto Gabriel Cohn José Raimundo Trindade Ladislau Dowbor Fernão Pessoa Ramos Manchetômetro Érico Andrade João Sette Whitaker Ferreira João Carlos Loebens Annateresa Fabris Francisco de Oliveira Barros Júnior Salem Nasser Kátia Gerab Baggio Anselm Jappe Dennis Oliveira Plínio de Arruda Sampaio Jr. Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Daniel Costa Ricardo Fabbrini André Márcio Neves Soares Eduardo Borges Gilberto Lopes Lincoln Secco Lucas Fiaschetti Estevez Paulo Nogueira Batista Jr Julian Rodrigues Bernardo Ricupero Ronaldo Tadeu de Souza Antonino Infranca Heraldo Campos Walnice Nogueira Galvão Carla Teixeira Marcelo Guimarães Lima Gerson Almeida Matheus Silveira de Souza José Dirceu Claudio Katz Ricardo Abramovay Ricardo Musse André Singer José Costa Júnior Afrânio Catani Vladimir Safatle Luiz Werneck Vianna Jorge Luiz Souto Maior Michael Löwy Paulo Martins Valerio Arcary João Adolfo Hansen Yuri Martins-Fontes Henry Burnett Jean Marc Von Der Weid Maria Rita Kehl Luiz Marques Leonardo Sacramento Carlos Tautz Marilia Pacheco Fiorillo Daniel Afonso da Silva Antonio Martins Sergio Amadeu da Silveira Boaventura de Sousa Santos Luiz Roberto Alves Andrew Korybko Mariarosaria Fabris Valerio Arcary José Luís Fiori Fernando Nogueira da Costa Chico Alencar Gilberto Maringoni Jean Pierre Chauvin Manuel Domingos Neto Rafael R. Ioris Alexandre de Freitas Barbosa Airton Paschoa Slavoj Žižek Luiz Renato Martins Berenice Bento Leda Maria Paulani Tarso Genro Rodrigo de Faria José Machado Moita Neto Caio Bugiato Alexandre Aragão de Albuquerque Mário Maestri

NOVAS PUBLICAÇÕES