Por PAULO FERNANDES SILVEIRA*
A voz dos filósofos nas ruas: de Paris a São Paulo, a luta contra o racismo e a discriminação racial
1.
Em 1971, uma manifestação em Paris contra um crime racista reuniu intelectuais e militantes. Uma foto registrou Michel Foucault discursando com um megafone. Num artigo de 1975, a revista Magazinne Littéraire republicou essa foto com a legenda: “Sartre, Foucault, Glucksmann: os filósofos estão nas ruas” (SILVEIRA, 2024).
Na edição comemorativa dos 10 anos de Maio de 68, a revista independente Les Révoltes Logiques publicou um artigo de Danielle e Jacques Rancière intitulado: “A legenda dos filósofos”. O casal identificou na foto da Magazinne Littéraire: “a constituição de um novo poder filosófico selada entre representantes intelectuais e representantes políticos das massas” (1978, p. 12). As presenças de Jean-Paul Sartre e de Michel Foucault na manifestação estariam legitimadas pela companhia do militante maoísta André Glucksmann (SILVEIRA, 2022).
A palavra francesa que traduz megafone é “porte-voix”, que também pode se referir a quem se apresenta como porta-voz de grupos sociais silenciados. A palavra francesa utilizada para indicar a pessoa formalmente autorizada para exercer a função de porta-voz é “porte-parole” (MAINGUENEAU, 2020). Sem ter qualquer autorização, o “porte-voix” forja-se representante de grupos que, por vezes, ele sequer faz parte. Essa era, justamente, a situação de Michel Foucault discursando numa manifestação num bairro periférico de Paris.
Segundo Danielle e Jacques Rancière, não houve espaço no movimento de Maio de 68 para os intelectuais representarem quem quer que fosse. Por outro lado, após Maio de 68, a antiga figura do intelectual de esquerda que pretendia ser porta-voz dos silenciados foi contraposta pela do intelectual que defende a revolta contra o autoritarismo acadêmico.
Com o aval do representante político das massas, um intelectual branco e pequeno-burguês, como Michel Foucault, pôde fazer ambas as coisas, assumir o megafone numa manifestação contra um crime racista e continuar apoiando a revolta antiautoritária. Mesma sorte não teve Jean-Paul Sartre, que era a personificação da antiga figura do intelectual de esquerda.
2.
No dia 7 de Julho de 1978 ocorreu um Ato Público contra a discriminação racial em frente ao Teatro Municipal de São Paulo. Entre as pessoas que ajudaram a organizá-lo estavam Hamilton Cardoso e Neusa Pereira, jornalistas que produziam a seção Afro-Latino-América, do jornal independente Versus.
A edição no. 23 do Versus traz na capa uma foto do militante Milton Barbosa (Miltão) discursando com um megafone no Ato Público de 7 de Julho. A manchete foi: “Os negros estão nas ruas”. Marcos Faerman era o editor-chefe do Versus. Ao comentar o Ato Público no editorial do jornal, Marcos Faerman cita o ensaio “Orfeu negro”, de Jean-Paul Sartre: “O que vocês esperavam ouvir quando estas bocas negras se vissem livres das mordaças? Que gritassem frases doces, amenas?” (FAERMAN, 1978, p. 2; SARTRE, 1968, p. 89).
Estudioso da imprensa independente de diversos países (KUCINSKI, 2001), Marcos Faerman certamente procurou sugerir uma analogia com a foto e a legenda da Magazinne Littéraire (com Sartre, Foucault e Glucksmann), lembradas por Danielle e Jacques Rancière, em artigo publicado alguns meses antes, na Les Révoltes Logiques.
Há algumas diferenças entre as fotos e as legendas. A foto da Magazinne Littéraire retrata um homem branco, entre outros homens brancos, num bairro periférico de Paris, discursando com um megafone numa manifestação em protesto contra um crime racista. A foto do Versus retrata um homem negro, entre outros homens negros, no centro da cidade de São Paulo, discursando com um megafone numa manifestação contra a discriminação racial que inspirou a criação do Movimento Negro Unificado (MNU).
O Ato Público de 7 de Julho foi intensamente vigiado por agentes da ditadura militar (SILVEIRA, 2025). Segundo os relatórios do DOPS e do SNI, todas as oradoras e oradores do Ato Público eram pessoas negras. Ainda que, em outros momentos, a militância negra tenha dialogado com intelectuais e colaboradores brancos, no Ato Público de 7 de Julho, foram as pessoas negras que assumiram o megafone. Afinal, aquelas bocas negras também estavam lutando para se livrar de todas as mordaças.
Uma das oradoras do Ato Público, Neusa Pereira escreveu: “Enquanto algumas pessoas bem vestidas e perfumadas entravam no Teatro Municipal de São Paulo para cumprir seu dever social, um grupo de mais de mil negros abriam seu peito ali em frente, num grito sufocado, denunciando as péssimas condições em que vivemos nesse país. Mais de mil negros, em sua maioria, jovens, desmistificavam publicamente o racismo covarde que o proíbe de participar do progresso da sociedade, que o atira na sarjeta e o assassina” (1978, p. 34).
3.
Desde o início, o Movimento Negro Unificado apresentou-se como um herdeiro legítimo das perspectivas libertárias e democráticas abertas pelo movimento de Maio de 68, na França e em muitos outros países, como também do movimento negro pelos direitos civis e do movimento de estudantes negras e negros nos campi das universidades norte-americanas, e do movimento pela formação da consciência negra, na África do Sul. O Movimento Negro Unificado é herdeiro, principalmente, das diversas lutas por libertação que ocorreram na diáspora africana no Brasil.
Um mês após o Ato Público de 7 de Julho, várias pessoas que trabalhavam no Versus foram presas pela ditadura militar (KUCINSKI, 2001). A edição posterior àquela que trazia na capa a foto do Miltão discursando com um megafone anunciou que Marcos Faerman não seria mais editor-chefe do jornal (FAERMAN; THOMPSON; WILLER, 1978).
*Paulo Fernandes Silveira é professor da Faculdade de Educação da USP e pesquisador no Grupo de Direitos Humanos do Instituto de Estudos Avançados da USP.
Referências
FAERMAN, Marcos (1978). Histórias, Versus, julho-agosto, n. 23, p. 2. Disponível aqui: http://www.marcosfaerman.jor.br/Versus23.html?vis=facsimile
FAERMAN, Marcos; THOMPSON, Cecília; WILLER, Cláudio (1978). E o nosso chefe se foi…, Versus, setembro, n. 24, p. 2. Disponível aqui: http://www.marcosfaerman.jor.br/Versus24.html?vis=facsimile
KUCINSKI, Bernardo (2001). Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa. São Paulo: EDUSP.
MAINGUENEAU, Dominique (2020). Análise do discurso, esfera superior e porta-voz, Revista Latinoamericana de Estudios del Discurso Raled, v. 20, n. 1, p. 120-135. Disponível aqui: https://periodicos.unb.br/index.php/raled/article/view/33081
PEREIRA. Neusa (1978). O sete de julho, Versus, julho-agosto, n. 23, p. 34. Disponível aqui: http://www.marcosfaerman.jor.br/Versus23.html?vis=facsimile
RANCIÈRE, Danielle; RANCIÈRE, Jacques (1978). La légende des philosophes (les intellectuels et la traversée du gauchisme), Les Révoltes Logiques, n. special: les lauriers de Mai ou les chemins du pouvier (1968-1978), p. 7-25. Disponível aqui: https://horlieu-editions.com/introuvables/les-revoltes-logiques/les-lauriers-de-mai-1978.pdf
SARTRE, Jean-Paul (1968). Orfeu negro. In. Reflexões sobre o racismo. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, p. 89-125.
SILVEIRA, Paulo (2025). A perseguição ao movimento negro unificado, A Terra é Redonda. Disponível aqui: https://aterraeredonda.com.br/a-perseguicao-ao-movimento-negro-unificado/
SILVEIRA, Paulo (2024). Intelectuais (novamente) em questão, A Terra é Redonda. Disponível aqui: https://aterraeredonda.com.br/intelectuais-novamente-em-questao/
SILVEIRA, Paulo (2022). Liberação da palavra: militância e educação em Jacques Rancière. In. CARVALHO, José; RANCIÈRE. Jacques. (Orgs.). Jacques Rancière e a escola: Educação, política e emancipação. Belo Horizonte: Autêntica, p. 287-304.
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