Qual é a sua desculpa?

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Por RAIMUNDO BASTOS*

No Brasil é mais fácil transformar o que é forte em justo do que o justo em forte, e assim se constitui a dança farsesca da nossa moralidade

Conta-se que nas guerras o que garantia a um jovem soldado piedoso uma boa noite de sono, depois de assassinar 10, 20, 30 pessoas numa batalha, era o tamanho da sua convicção de que tais atos eram dotados de virtudes: “matei, mas em defesa da pátria”, “matei, mas matei em defesa das nossas famílias”, “matei, 10, 20, 30, não sei quantos mais matei, mas se os matei foi por uma causa nobre, a causa que nos trouxera até aqui”.

Tal propósito de não carregar consigo culpa ou má consciência era reforçado pelo fato de tais virtudes serem um consenso social e pela lei de que numa guerra não há a liberdade de escolha, pois ou você mata ou morre. Assim sendo, ante a ausência de liberdade de escolha, outra conduta tornar-se-ia inexigível, restando garantida a boa consciência dos inocentes. Com a força do hábito, obviamente, não se fazia mais necessária a prática desse exercício de autojustificação, de modo que apenas fechavam-se os olhos e o esquecimento dava conta daquilo que tiraria a candura das ovelhas.

Até aí, nada de novo, sabemos para que um mal seja praticado e reste intacta a boa consciência, basta uma boa justificativa, e quem as procurar, não tardará em achá-las. Ah! Como nos são versáteis as justificativas a nos defender de toda culpa e da asfixiante responsabilidade que é ser um sujeito moral! E não seriam as justificativas os melhores escudos e espadins na defesa dessa nossa segunda pele chamada reputação?

Cá para as bandas do Brasil, que nunca exigiu dos seus soldados participação alguma nessas grandes matanças contra inimigos externos; embora muitos aqui sonhem ser o espadim seu deverás maior do que o de Napoleão Bonaparte, como bem retratou o nosso Bruxo do Cosme Velho, a morte de mais de 408 mil brasileiras e brasileiros, ante a ausência de manejo pandêmico, tem provocado na sociedade uma busca agônica por justificativas aos atos que vão de encontro às leis cientificas; leis que comprovadamente evitam mortes, dentre as quais o distanciamento social e a suspensão temporária de atividades não essenciais. Em vista disso, alguns dizem que “todo trabalho é essencial, se provém o pão de cada dia”.

Já outros adotam uma posição de ruptura da própria lei científica ao sustentarem que se trata de leis conspiratórias criadas pela oposição ao governo. Acolá, outros parasitam numa estratégia que nada mais é do que a caricatura do instituto penal da inexigibilidade da conduta diversa: “como morreria de fome, não posso agir para que outros não morram de COVID, não tenho liberdade de escolha, logo não sou culpado”. Sobre esta última, endossamos que realmente há pessoas que não possuem liberdade de escolha, mas nos referimos àquelas que possuem a liberdade, mas perversamente se aproveitam da força retórica do argumento para serem absolvidas da culpabilidade.

Por fim, temos aquele grupo que utiliza genericamente a saúde mental como justificativa para o não cumprimento do isolamento ou distanciamento social, seria o grupo dos pré-inimputáveis? “preciso sair, preciso ir à academia, ver os amigos, ir aos bares, cafés, pois vou enlouquecer”. O fato é que até o Padre Antônio Vieira ungido de sua ferina retórica sacrossanta teria dificuldades num sermão com visa a moralizar a situação, pois, de fato, faz-se tarefa árdua e complexa fazer as pessoas admitirem algo quando seu sustento depende, acima de tudo, que não o admitam.

Nessa toada, estamos na fase do festival das justificativas para que o mal, sem o freio da culpa e da responsabilidade, continue a ser praticado, e, naturalmente, algumas colam, mas outras não. Entretanto, ele está lá, ato contínuo, inexorável e irremediável, possível e efetivo, o mal, acontecendo numa cadeia de acontecimentos dotada de causalidade: aglomerações, infecções, internações, e mortes que seriam evitáveis. Mortes estas que pela lei causal própria da natureza acometem os mais vulneráveis ao vírus. E lei que, até o presente momento, não foi alvo de forte oposição dos filhos de Deus.

No entanto, noutra perspectiva, é preciso reconhecer que diferentemente do soldado piedoso do início do texto que precisava expurgar a culpa para obter a paz da sua boa consciência e, assim, ter uma boa noite de sono, vivemos tempos em que ter uma boa ou uma má consciência em questões que envolvam decisões éticas, não fazem tanta diferença assim, pois vivemos tempos de cinismo, como espirituosamente interpreta o filósofo esloveno Slavoj Zizek: “as pessoas sabem o que fazem, e mesmo assim o fazem”.

Assim sendo, por mais diversificados que sejam os pontos de vista na nossa complexa sociedade, notadamente influenciada pela relativização das leis da causalidade, onde uma coisa qualquer pode ser dada como causa de outra coisa qualquer, não é mistério para ninguém que ao descumprir as deliberações sanitárias estamos matando pessoas que poderiam ter suas vidas poupadas. Desse modo, é razoável ponderar que não seja por falta de informação que as pessoas descumprem os protocolos sanitários, pois as informações estão disponíveis em todos os meios e, no mínimo, é de conhecimento alguém próximo que tenha morrido pelo Covid-19, e o bem que teria sido se aquela morte fosse evitada.

Sobre o festival de justificativas, faz-se sociológico reconhecer, constitui o rito social que visa à reparação do mal causado a reputação individual perante a comunidade diante da imputação de culpa àqueles que de alguma forma agiram em contrário as normas sanitárias prescritas pela ciência, ao invés da busca pela reparação do mal causado ás vitimas mortas e suas famílias. Afinal, ninguém quer ser visto como alguém que é indiferente á morte de outrem, nem ser visto como um alguém que tem nas costas alguma ou algumas das mais de 408 mil mortes, assim recorrem-se, com bastante convicção, às justificativas que procuram estorvar causa e efeito na busca por absolvição.

Adaptado a proteção da reputação, a sociedade brasileira tem um histórico de produzir uma espécie de “segunda pele” sobre si mesma, inclusive através de justificativas bem elaboradas. Queremos dizer, apesar de racistas construímos a pele da democracia racial, apesar de violentos construímos a pele da “cordialidade”, apesar de extremamente desiguais, construímos a pele da “sociedade anárquica, mas harmônica”; e agora, acometidos pela pandemia, há a sugestão da pele da valorização da vida e do controle sanitário.

Nesse sentido, é notório que no Brasil, por diversos motivos, é mais fácil transformar o que é forte em justo do que o justo em forte, e assim se constitui a dança farsesca – ou trágica? – da nossa moralidade. Portanto, mais do que uma boa consciência, o brasileiro parece empenhando na defesa de reputações imaginárias num conto de fadas para adultos e que ganha espaço de disputa nas instituições.

Faz-se irônico, todavia, que numa sociedade em que mais do que as desculpas sejam importantes os resultados, sejamos tão esquivos ao resultado global da nossa indiferença a morte, resultado este que nos alçou ao pódio: somos parte do epicentro pandêmico do mundo, somos o maior índice de mortes por cem mil habitantes das Américas, estamos entre as maiores mortalidades absolutas do mundo, e somos o celeiro, ou, como dizem os tradicionais jornalistas: o “covideiro” das novas cepas que ameaçam a efetividade da vacinação em escala global.

Ademais, em que pese o fato do cuidado com a reputação ser algo inexorável a existência da sociedade, não é o principal elemento que constitui uma boa moral, pois a reputação, podendo ser verdadeira ou falsa, é o efeito da moral e não o contrário. O Brasil, mais uma vez, no seu estorvo dissimulado, confunde propositadamente causa e efeito. Primeiro a sociedade, com responsabilidade e sem desculpas, constrói suas bases morais, seja em torno dos valores e princípios jurídicos fundamentais como a vida, a liberdade, a igualdade, dignidade da pessoa humana, cidadania, ou no fundamento dos valores históricos e sociais; e tendo eficácia os tais valores, a sociedade passa a ter moral para defender a sua reputação. Há alguém que pense os países nórdicos terem conquistado uma boa reputação no mundo por meio de desculpas e justificativas?

Tentamos admitir neste artigo que quase em sempre a negação de um mal, para que as aparências sociais permaneçam intactas, encontra força retórica em justificativas, que, por sua vez, constituem o meio social reparador com a função de neutralizar a percepção daquele mal através de uma confusão no nexo causal que o acomete. Alguém contrário ao racionalismo como, por exemplo, David Hume, diria que a causalidade é a criação de um hábito mental e, portanto, prescinde de uma normatividade associativa de modo que uma coisa qualquer possa produzir outra qualquer. Assim, em termos morais, cada um estaria livre para produzir a sua própria causalidade moral quanto a pandemia, e, consequentemente, a própria validade das suas justificativas.

Contudo, concluímos ao sugerir que a pandemia duramente nos ensina que precisamos insistir numa consciência moral que esteja em consonância com o conhecimento cientifico, entre “nomos” e “physis”, entre dever-ser e ser, de modo que isso venha a influenciar nos pontos de partida das decisões éticas que melhor nos capacitem na distinção entre as condutas que causam o mal daquelas que causam o bem. Conquanto, isto requer embates e situações desconfortáveis; exige a intensificação do espírito republicano.

Por mais que a sociedade seja extremamente complexa, e vários interesses estejam em jogo, a valorização da vida, caso queiramos que seja um bem inviolável, exige de nós um asfixiante, mas necessário senso de responsabilidade que não pode mais ser adiado caso decidamos abandonar o manto das aparências que garante a nossa inocência, mas que, paradoxalmente, nos causa um fascínio pelo mal, que como uma nossa segunda pele, passamo-lo a vesti-lo como parte constituinte da moral.

Por fim, é da própria condição humana que a beleza sublime das virtudes seja uma condição para o encobrimento do mal e consequente transgressão do bem. Assim, ao utilizar das virtudes como a liberdade e o trabalho para o encobrimento das mortes, a sociedade inverte os valores ao colocar a inviolabilidade da vida em segundo.

*Raimundo Bastos

 

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