A teoria da revolução em Theodor Adorno

Imagem: Regina Silveira
image_pdf

Por RONALDO TADEU DE SOUZA*

Como é possível ler a Dialética negativa como uma teoria da ação política radical com vistas à insurreição?

“Não conhecemos acaso a história de pessoas que, em virtude de grandes desgraças morais, refugiaram-se no deserto, mas lá, de maneira nenhuma, permaneceram ocultas e em segredo? […] quem poderia cumprir melhor essa tarefa do que aqueles já iniciados nos labirintos [desesperados] da vida!” (Goethe, Afinidades Eletivas).

Esse breve ensaio — uma tentativa — busca configurar uma hipótese de trabalho sobre a Dialética negativa. A suposição ligeira que gostaria de apresentar é sobre a presença de uma teoria da revolução no pensamento de Theodor Adorno. Ou se preferir, uma teoria da ação política radical com vistas à emancipação insurreta no mestre da contradição (organizada).

Antes de apresentar a hipótese de trabalho Adorno-teoria-da-revolução-ou-da-ação-política-radical que eventualmente pode emergir da leitura do livro Dialética negativa convém um excurso argumentativo — como recurso justificatório sobre minha insinuação ensaística.

Um mal-entendido histórico

Theodor Adorno é o autor, dentro daquilo que ficou conhecido como marxismo ocidental, da antipolítica. Um autor que “negou” a política como problema teórico; que concentrou seus esforços intelectuais mais à teoria da música que às indagações acerca do aparato estatal. Isso é dito tanto externamente à Teoria Crítica, exemplo disso é o caso do Perry Anderson (em Considerações sobre o marxismo ocidental), como dentro do próprio Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, com os projetos reconstrutivos de Jürgen Habermas e de Axel Honneth (que tem como objetivo de uma certa maneira a aceitação política dos pressupostos normativos da democracia liberal-representativa, no âmbito de Estados constitucionais).

Do ponto de vista de preocupações intelectuais e políticas (e, de certo modo, acadêmicas) contemporâneas importa o empenho com vistas a arejar leituras, ainda hoje, apressadas sobre Theodor Adorno. Nesta medida, não é o mais interessante, lançar as intervenções teóricas do, também, filósofo da música, ao entusiasmo profissional dos especialistas; daqueles que Jean-Paul Sartre chamou de técnicos do saber-prático.[1]

No momento de debate no que concerne à reconstrução do pensamento de esquerda, não se pode mimetizar no mundo das ideias e da cultura crítica, o contexto acadêmico-institucional das ciências sociais, que por anos esteve tomada pela filosofia política do liberalismo-político-social-igualitário (a lá Rawls-Habermas): mas que hoje não só não tem capacidade teórica explicativa, como atravessa uma derrota política (Katrina Forrester) incomensurável.[2]

Subvertendo a igualdade formal

Como é possível ler a Dialética negativa como uma teoria da ação política radical com vistas à insurreição? A questão fundamental é se na textualidade da Dialética negativa há o que Raymond Geuss (2006) chama de uma noção de mudança na estrutura das necessidades. Sim; e o texto de 1966 pode ser lido como um impulso de ação para a mudança na estrutura das necessidades, mesmo que essas se apresentem como necessidades estruturais do conceito de ordenar a realidade diversa e contraditória.

Este ponto então se expressa nos momentos ou no momento em que Theodor Adorno comenta, criticamente, acerca do processo de identificação do conceito com o administrado (pelo capital) ou nos termos dele, “quando a ordem conceitual coloca-se à frente daquilo que o pensamento quer conceber” (Adorno, 2009 [1966]). Aqui é importante lembrar que o mundo do gerenciamento burguês se move no âmbito do processo de ordenamento estático das categorias. E essas se apresentam enquanto procedimento de apropriação do diverso e do particular, transfigurando o momento do conceito abstrato em princípio de dominação que “dilacera a sociedade” (Adorno, 2009 [1966]).

Podemos dizer assim, que quanto mais a sociedade é dilacerada pelo princípio de dominação resultante da lógica abstrata da ordem conceitual do mundo controlado pela técnica, mais a sociedade se torna mitificada na procura ingênua da igualdade formal. Ora, Theodor Adorno não diz explicitamente, mas é possível interpretar, forjar uma hermenêutica, que quando ele se põe com radicalidade frente à mistificação da “ordem conceitual” que antecipa o pensamento prático que quer o reconhecimento efetivo, ele está a nos dizer dos prejuízos incontáveis da igualdade formal para os que sofrem as implicações da sociedade não-reconciliada.

Ele está refletindo, criticando, portanto, o Estado que na modernidade aparece como conceito de Estado, como uma falsidade (opressora) da vida burguesa ou na formulação de Robert Pippin (2005), na autorrepresentação de uma sociedade que é falsa, e que tem de se impor sobre as potências subversivas da politicidade do desespero — via o próprio Estado que se defrauda em-si, legitimado pela igualdade formal, e que por isso tem de realizar-se na história.[3]

Não foi ocasional, ou mesmo exercício ingênuo de manuseio das palavras, quando Adorno disse: “se tivéssemos fuzilado sumariamente os encarregados da tortura juntamente com os seus mandantes e seus protetores extremamente poderosos, isso teria sido mais moral [e justo] do que abrir um processo para alguns deles (Adorno, 2009 [1966]). Com efeito; e novamente, não é fortuidade que quando falamos de política, nós a discernimos com o conceito de Estado: e nestes termos a dificuldade de ler Adorno como teórico político da “revolução”. Assim, a teoria da ação política radical está lá no conteúdo material que escapa, se rebela com violência, ao meramente formal da igualdade moderna burguesa, pois quem “quer o conteúdo quer a utopia” (Adorno, 2009 [1966]) material.

Neste ponto gostaria de introduzir um elemento que me parece fundamental numa leitura político-radical, ou revolucionária, da Dialética negativa. Qual seja: o processo da vida social construído como totalidade falsa — como “a suma conceitual das determinações idênticas” (Adorno, 2009 [1966]) em que a violência da representação metafísica do Estado provoca dor e sofrimento nos sujeitos. E está violência se dá justamente, “no rancor próprio do ideal de igualdade burguesa que não tolera nada qualitativamente diverso” (Adorno, 2009 [1966]) e não-idêntico ao princípio formal da sociedade liberal.

A teoria da subversão política adorniana está lá onde os indivíduos e os grupos que eles constituem atravessam a experiência da violência do conceito identitário da igualdade formal que condiciona a existência do aparelho do Estado moderno-burguês. Em outras palavras; é lá no fático da materialidade do não-idêntico que se opõem ao conceito formalista de igualdade estatal que nós conseguiremos reconstruir os sujeitos da política revolucionária. Por outras palavras, é do sofrimento (resultante e imposto pelo conceito político não-autêntico de igualdade) que irrompe o impulso transformador da teorização adorniana.

Citando uma passagem da Dialética negativa um pouco estilizada para terminar: “Para essa identidade [da igualdade formal-estatal], a linguagem especializada [seria e é] subitamente pronta a fórmula corrente da identidade [da violência] [face à] não-idêntico. Seria preciso opormos inicialmente, de maneira contrastiva e [utópico-disruptiva], a não-identidade [política-radical dos sujeitos] [contra a] identidade [da igualdade formal]” (Adorno, 2009 [1966]) de nossas democracias constitucionais.

A tarefa de um pensamento dialético negativo, que se quer radical e insurreto, é fazer falar a linguagem contingente da política do sujeito não-idêntico que sofre a violência do conceito de igualdade formal transformado em mito (cínico) democrático. Recusar afirmar a inexistência em Adorno de uma teoria política, de política mesmo, (portanto de um entendimento do que é o Estado moderno em dinâmica), sobretudo do ponto de vista da Dialética negativa, pode ser um início sugestivo em meio à crise profunda da esquerda contemporânea.

O que poderia ser mais político, crítico-radical, e revolucionário do que a proposição articulada: “O Estado atual é destrutivo, [é a] perda da identidade por causa da identidade abstrata, da autoconservação [formal] nua e crua, […] [de modo que a única resposta possível a isso é forçar] o sujeito [se livrar] do si mesmo [da igualdade formal] enquanto mito derradeiro, [pois] a utopia seria, sem sacrifício algum, a não-identidade” (Adorno, 2009 [1966]).[4]

*Ronaldo Tadeu de Souza é professor no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Notas


[1] Conf. Jean-Paul Sartre. Em Defesa dos Intelectuais. Ática, 1994.

[2] Conf. Katrina Forrester – The Future of Political Philosophy. Boston Review: A Political and Literary Forum, September, 17, 2019; The Crisis of Liberalism: why centrist politics can no longer explain the world. The Guardian, November 18, 2019.

[3] Conf. Raymond Geuss – Dialetics and the Revolutionary Impulse. In: Tom Huhn (ed.) The Cambridge Companion to Adorno. Cambridge University Press, 2006; Robert Pippin – Negative Ethics: Adorno on the Falseness of Bourgeois Life. In: Robert Pippin – The Persistence of Subjectivity: on the kantian aftermath. Cambridge University Press, 2005

[4] Theodor Adorno. Dialética negativa, Zahar, 2009.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES