Regozijando com o racismo

Imagem: Brett Sayles
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Por RAFAEL MANTOVANI*

O problema do trabalho do Léo Lins não é o fato de ele ter feito uma piada, mas de ser nazifascista. O racismo é a estrutura cognitiva que faz com que suas piadas sejam compreensíveis

1.

O grotesco, a violência e a perversidade são partes integrantes do humor. Mas a forma como se articulam essas questões conta uma história a respeito da sociedade. Ao pensar sobre o hilário dos chulupi, localizados ao sul do Chaco paraguaio, Pierre Clastres narra dois mitos que os fazem rolar no chão de tanto rir e se pergunta: “de que se caçoa?

Uma primeira conjunção nos mostra jaguar e xamã reunidos pelo riso suscitado por suas desgraças. Mas, interrogando-nos sobre a real posição desses dois tipos de seres, sobre a relação vivida que os índios [o livro é de 1974, então é usado o termo “índio”] mantêm com eles, descobrimos que se avizinham em uma segunda categoria: é que, longe de serem personagens cômicas, ambos são ao contrário seres perigosos, capazes de inspirar o medo, o respeito, o ódio, mas nunca certamente a vontade de rir”. Um primeiro elemento da comicidade, portanto, pode ser a transformação de temores coletivos e poderes sociais em ridicularidades. É o riso como subversão.

Também há certa equação que precisa ser respeitada: “tragédia + tempo = comédia”. Não respeitado o tempo, o humor é que se torna uma tragédia. Maurício Meirelles contou uma piada minutos depois do acidente que vitimou o presidenciável Eduardo Campos em 2014. Havia todos os elementos: era uma tragédia, tinha uma figura de poder, o tio de um adversário dele tinha um aeródromo próximo das suas propriedades. A piada era boa, mas o momento não. Havia luto. Resultado: foi extremamente criticado.

E a questão das circunstâncias não diz respeito apenas às sensibilidades momentâneas que podem estar afloradas. Também diz sobre quem está contando, para quem e em qual circunstância. Qual é a intenção? Uma mesma piada pode ser racista ou antirracista. Por exemplo: “Nasce um bebê branco em São Paulo. O médico diz ‘arrota!’ e o bebê arrota. Nasce um bebê preto o médico diz ‘arrota!’ e a criança levanta as mãos” [aos que não são de São Paulo, a ROTA é a tropa de elite da PM de São Paulo, uma espécie de BOPE paulista].

Se o Léo Lins conta essa piada para a sua plateia, trata-se daquele velho e batido preconceito que reza que todo preto é ladrão. Ao contrário, se é o Yuri Marçal, contando a mesma piada, palavra por palavra, para a sua plateia, a mensagem é que a população preta está tão acostumada com a violência policial racista e seletiva que as crianças negras já nascem preparadas para ela.

As duas plateias podem rolar de rir, afinal, as duas versões são pesadas. O pessoal rindo com o Léo Lins está se regozijando com o racismo, reafirmando-o. O do Yuri entenderia criticamente, riria por esse feito de conseguir tirar graça de uma tragédia, algo que é socialmente inaceitável.

2.

O problema do trabalho do Léo Lins, como aponta Acauam Oliveira, não é o fato de ele ter feito uma piada, mas de ser nazifascista. As insinuações corporais de como seriam os nordestinos, imitações animalizantes, que o próprio comediante assemelha a caranguejo, mas que são também um tanto simiescas (ele mesmo diz que nordestinos têm “aparência primitiva”), as piadas sobre a África, todas elas são contextualmente intoleráveis não no âmbito da comédia, mas no da sociedade brasileira hoje.

E a pergunta que abre o texto: de que ri a plateia do Léo Lins? Ela ri com o preconceito e não do preconceito. Ou seja: o racismo é a estrutura cognitiva que faz com que aquela piada seja compreensível. É uma alavanca cômica racista, nazifascista, como já dito, além de misógina, homofóbica e capacitista. É a reprodução disso tudo.

Mas seria uma persona, uma personagem? Agora, depois da sentença, ele está dizendo que sim. Mas, segundo o próprio Léo Lins, no seu livro Segredos da comédia stand-up, não: “Se você tem ciúme, acha algo idiota, tem raiva, é importante transmitir essa emoção por meio das palavras, dos gestos e da expressão corporal. O que acontece quando as palavras dizem uma coisa mas seu corpo e sua atitude dizem outra? Você não está sendo verdadeiro. Isso é visível para o público e faz com que suas piadas não funcionem. Ser autêntico é muito importante na comédia stand-up. Afinal, você não está interpretando um personagem, com máscaras ou figurinos”.

Se se tratasse de uma personagem grotesca sobre quem se está tirando sarro, seria totalmente legítimo. Mas não é o caso: isso não se mostra em nenhum momento do show e ele diz com todas as letras, no seu livro, que efetivamente não é.

Devemos polir o humor, então? Nenhuma palavra deve ser dita sobre os inferiorizados socialmente? Não é disso que se trata. Em 1993, Gabriel O Pensador escrevia que jogava ovo bem na cara de trabalhador esperando na fila de ônibus e que humilhava a sua empregada que lhe dava comida e roupa lavada. O cômico da letra estava onde? Na pobreza? Na humilhação? Não. Na verdade, ria-se do quão babaca o playboy – que dá título à música – pode ser. Não era um endosso a esses comportamentos.

Mesmo os outros temas apontados como problemáticos na performance do Léo Lins, como pedofilia, incesto, aparecem em shows de outro comediante bastante controverso na vida privada, mas que não recebe as mesmas represálias por falar sobre esses assuntos: Louis CK. E por que não?

Porque a utilização dessas imagens limítrofes e problemáticas nunca são um incentivo à pedofilia e ao incesto (como é no caso do Léo Lins), mas uma maneira muito visceral de rir sobre si próprio. O que fez com que Louis CK tenha ganhado tantos prêmios (assim entendo eu) é que conseguiu falar sobre as questões mais tabu de uma sociedade, mas o tempo todo o fez tirando sarro dele mesmo.

Ao contar uma piada que envolve pedofilia, você pode usar as imagens para contar a tragédia da própria vida e, o quão mais visceral isso for, mais poderosa ou desastrosa ela pode ser – é sempre um risco. Já contar a piada como se fosse uma aplicação legítima da pedofilia é rir da humilhação da criança. Então, existiriam desgraças aptas ao riso e outras não?

Novamente, não se trata disso, mas talvez do que move a risada. Uma piada nunca é alienígena: ela sempre dialoga com o tempo e o lugar. Um desejo, um medo ou uma piada são incompreensíveis a uma sociedade que não compartilha dos mesmos valores e referenciais da sua sociedade de origem.

A comicidade é conseguida com base em quais valores e se ergue sobre quais ódios? O que socialmente torna Léo Lins possível? Qual estrutura de poder ela reforça? Uma ideia de superioridade racial, de gênero, de orientação sexual e de condição física que encontra ecos perigosos em setores da sociedade.

Portanto, quando o próprio diz que fez “críticas” sociais, ele está redondamente enganado. A “acidez” das suas piadas não diz respeito, minimamente, a questionar valores antiquados da sociedade brasileira, mas, ao contrário, os renova e valida. Trata-se de dar sobrevida ao velho, com roupagem nova, que o acordo civilizatório decidiu que deveria morrer: aquilo que desumaniza e violenta minorias.

Pisar na cabeça quem está estirado no chão pode até arrancar risadas, mas convém nos perguntarmos qual é a estrutura social e cognitiva que torna isso cômico. Qual é a visão de mundo? Ela é crítica aos crimes e injustiças daquela sociedade ou está alicerçada por eles? Uma narrativa nunca está dissociada do suporte histórico-social que a produziu. E a narrativa nazifascista ainda causa graça para alguns: infelizmente não pela sua existência, mas por repetir os seus valores. Não vejo a hora de começarmos a tirar sarro de figuras como Léo Lins: anseio pelo momento em que a sua prisão se convertesse em escárnio público. Seria muito mais efetivo e demonstraria que, enfim, entendemos o x da questão, da piada e da sociedade brasileira.[1]

*Rafael Mantovani é professor do Departamento de Sociologia e Ciência Política da UFSC. Autor do livro Modernizar a ordem em nome da saúde: a São Paulo de militares, pobres e escravos (1805-1840) (Fiocruz). [https://amzn.to/3YnbySW]

Nota


[1] Agradeço às importantíssimas contribuições para este texto de Nicolás Gonçalves, Julio Souto Salom, Eduardo Bonaldi, Leonardo Ostronoff e Lia Vainer Schucman.


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