Slavoj Žižek e o excepcionalismo europeu

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Por DIOGO FAGUNDES*

A ambiguidade do intelectual esloveno diante da guerra na Ucrânia

O filósofo esloveno Slavoj Žižek virou uma espécie de ideólogo do “excepcionalismo europeu”: em um mundo ameaçado pelo populismo de direita, a Europa cumpre um papel especial, de garantia das liberdades democráticas, direitos humanos e valores social-democratas. A ironia é que a Europa aclamada no mundo das ideias é, no mundo real, cada vez mais suscetível a influência destes fascismos de novo tipo (vide a Itália de Giorgia Meloni), além de cada vez mais vassala e sem projeto estratégico. O culto à Europa cresce em razão inversamente proporcional à sua relevância e capacidade política.

Porém, o que mais me impressiona em suas posições atuais, clamando por apoio ocidental à Ucrânia (da mesma forma como fez na desintegração regressiva da antiga Iugoslávia, aliás) são duas coisas: (i) a notável falta de princípios, resultando em falta de coerência ou mesmo em pura e simples hipocrisia; (ii) a completa ignorância ou deliberada confusão sobre o que representa a ideia de “guerra justa” ou “guerra popular” na história do marxismo.

Explicando o primeiro ponto: Slavoj Žižek, tal como todas as potências ocidentais, a começar pelos EUA, reconheceram a independência unilateral do Kosovo, em 2008, em relação à Sérvia. Independência bastante funcional aos interesses econômicos e militares dos países da OTAN. No entanto, estigmatiza como meros vassalos russos toda a luta de independência, que já dura oito anos, dos ucranianos (de etnia e língua russa) do Donbass, perseguidos por Kiev. O que a Rússia faz, ao reconhecer a separação unilateral, é análogo à postura do Ocidente no Kosovo.

Por que num caso há apoio entusiasmado e, no outro, oposição total? Na verdade, Slavoj Žižek sequer reconhece a relevância do problema do Donbass após o golpe do Euromaidan em seus textos sobre o tema da Ucrânia, parece mero complô russo. Fácil responder à questão: porque Kosovo quer se unir à boa Europa, separando-se da malvada Sérvia, enquanto no Donbass o desejo pela Europa é rechaçado em nome da adesão à também malvada Rússia (os eslavos de tradição cristã ortodoxa são sempre suspeitos…).

Chamar este tipo de crença na superioridade ocidental de chauvinismo europeu (a ironia: de um periférico europeu, da Eslovênia, imaginando-se, entretanto, no umbigo da mais alta civilização) não parece algo muito exagerado.

O segundo ponto concerne à mistificação que Slavoj Žižek dá à resistência ucraniana, chegando ao ponto de compará-la à luta do Vietnã e da Palestina. A “resistência” ucraniana é baseada no comando operacional da OTAN, no apoio político e midiático de todo o poder da burguesia europeia e norte-americana, e em métodos completamente tradicionais de guerra: quantidade de armamento moderno, capacidade de destruição, apoio de grandes potências, etc.

Que diferença para com a lutas de libertação nacional do século passado! Relembremos o conceito maoísta de “guerra popular”. A ideia era a de que exércitos inferiores poderiam derrotar exércitos superiores devido a uma qualidade irredutível: sua diferença com relação aos exércitos burgueses convencionais. Um exército popular envolveria uma relação política e ideológica com organizações de massa e subordinaria o poder militar ao trabalho político de massa.

Este, apesar de fazer todo tipo de aliança internacional para o sucesso de sua causa, deveria contar essencialmente com suas próprias forças, em especial com o fator moral e ideológico. A importância dada à moral e a centralidade estratégica da defesa explicitam a característica essencialmente clausewitziana dessas guerrilhas e exércitos populares. Nada mais distante do atual comportamento extremamente convencional das elites ucranianas, totalmente fantoches dos EUA.

Podemos sintetizar as características de uma guerra popular nos seguintes aspectos: primazia do político sobre o militar; apoio das massas como fator principal; programa de revolução democrática e popular; liderança do proletariado.

Ao comparar Ucrânia e Vietnã, Slavoj Žižek demonstra a incapacidade de entender a diferença qualitativa entre dois tipos de guerras regidos por lógicas totalmente opostas. A da Ucrânia repete essencialmente a de 1914-1918, um conflito entre potências (na época, as “democráticas” Inglaterra e França contra os autoritários e bárbaros dos Impérios continentais), regido por forças homogêneas, no qual o elemento quantitativo prevalece sobre o qualitativo (no sentido hegeliano dos conceitos), resultando apenas em massacre inútil de povos usados como bucha de canhão.

A esquerda ocidental que não compreende isto, como Slavoj Žižek, demonstra ter absorvido de forma completamente superficial e não refletida os ensinamentos dos anos de revolução anticolonial e de guerras populares do pós-guerra. Ou então são meros renegados, tais como os social-chauvinistas da Segunda Internacional, condenados por Lênin, que chancelaram o massacre do proletariado no altar dos interesses mercenários de suas burguesias internas.

Mesmo em relação ao Oriente Médio: é incomparável o Batalhão Azov, um bando nazista organizado no estilo militar de pequenos grupos de choque armados, com organizações de massa (apesar de toda crítica possível a suas ideologias religiosas e dogmáticas) enraizadas no trabalho popular, como o Hamas ou o Hezbollah. Isto para não falar de organizações como a Frente Popular de Libertação da Palestina, de ideias universalistas e emancipatórias. Falta não apenas cultura histórica aos nossos apologetas esquerdistas do Ocidente: não há o mínimo entendimento de questões básicas das estratégias e estilos de trabalho e organização das experiências passadas de luta armada.

*Diogo Fagundes é mestrando em Direito e graduando em Filosofia na USP.


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