Por LUIZ SÉRGIO CANÁRIO*
A crescente influência do BRICS no cenário global e a defesa do mercado para as bigtechs são fatores que motivam a intervenção de Trump, visando enfraquecer o bloco e manter a hegemonia estadunidense
1.
Quando se vê toda essa confusão causada por Donald Trump com a ameaça de taxar as exportações brasileiras para os EUA em 50% é preciso se procurar não as causas aparentes, mas sim as que fazem mais sentido no quadro da conjuntura. Claro que a alusão, logo na abertura da carta, aos eventos na justiça ao redor de Jair Bolsonaro, sua família e sua quadrilha, dão uma carater também político, principalmente depois da carta dirigida pessoalmente a Jair Bolsonaro por Donald Trump.
Mas certamente não seriam os problemas de Jair Bolsonaro et caterva que moveriam a ira do Império do Norte contra nós. Há de haver outras questões mais importantes e significativas. E o BRICS e a defesa do mercado para as Bigtechs são fortes candidatas a isso.
O acrônimo BRIC foi criado por economista da Goldman Sachs em 2001 para se referir as quatro economias emergentes com grande potencial de crescimento e influência: Brasil, Russia, Índia e China. Em 2010 ao realizar, em Ecaterimburgo, na Rússia, uma conferência de cúpula, esses quatro países formam um bloco, sem organização formal, para tratar de cooperação intergovernamental e adotam BRIC como nome.
Mais tarde, em 2010, a África do Sul entra para o bloco, que passa a se chamar BRICS. Entre 2024 e 2025 outros cinco países aderem, Egito, Etiópia, Irã, Emirados Árabes Unidos e Indonésia. Hoje o bloco reúne cerca de 50% da população mundial, 40% do PIB PPP e 30% do PIB nominal, segundo estimativas de algumas fontes. É visível a importância do boco em qualquer cenário e em qualquer análise do mundo hoje. E dentro do grupo certamente o BRIC original tem um grande peso.
A consolidação do bloco avança e isso, dentre outras questões, afeta o comércio internacional. Nas tabelas abaixo um retrato disso na relação do Brasil com os principais parceiros do BRICS, com a União Europeia e com os EUA.


É evidente a perda relativa de importância do comércio com o “Norte Global”. Dez anos atrás o comércio exterior brasileiro com a União Europeia era de US$62,65 bilhões, 77,86% do comércio com o BRIC. Com os EUA era de US$50,52 bilhões e 62,79%, respectivamente. Em 2024 esses valores caem para US$95,54 bilhões e 51,76% com a União Europeia e US$81,02 e 49,99% com os EUA.
Uma grande perda de participação no comércio exterior para o bloco, especialmente para a China. O saldo é fortemente positivo com o BRICS, puxado pelo saldo com a China, deficitário com os EUA nos dez anos avaliados e deficitário com a União Europeia em sete dos mesmos dez anos. No total dos dez anos essa diferença é muito significativa.
Não há sinais de que se quadro se reverta. A inclusão de países no bloco faz com que a tendência seja de aprofundar essa diferença e a perda constante de participação do “Norte Global” com o comércio exterior brasileiro. Para o bem ou para o mal, a China é um parceiro cada vez mais importante no comércio exterior, dando um carater cada dia mais importante para as relações comerciais do Brasil com o bloco.
Além das questões comerciais, há outras de impacto nas relações internacionais do Brasil e do próprio BRICS com o mundo. O bloco vem discutindo e construindo mecanismos para reduzir o peso do dólar em suas transações comerciais e financeiras. A China criou o CIPS (Cross-Border Interbank Payment System), uma plataforma de pagamentos entre países para executar transações financeiras internacionais, reduzindo a dependência do SWIFT (Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication), que é a plataforma usada por todo o mundo, um padrão de fato, controlada pelos bancos centrais do “Norte Global”.
Impedir alguns bancos russos de usar o SWIFT é uma das formas usadas para penalizar o país por conta da guerra com a Ucrânia. Na ausência de outra plataforma, ser bloqueado no SWIFT traz inúmeros transtornos para a liquidação de transações internacionais. Outras duas inciativas, ainda em fase preliminar de discussão, são o uso das moedas próprias de cada país nas transações intrabloco e criar uma moeda própria do bloco para ser usada nas transações internacionais. Ambas reduzem o uso do dólar como moeda padrão de troca. Se todo o bloco reduzir muito o uso da moeda dos EUA em suas transações, reduz junto o poder e a força dessa moeda no mundo.
2.
Logicamente o fortalecimento e o crescimento do BRICS não interessa em nada aos EUA. A ameaça da China ao mundo unipolar, surgido após o fim da Guerra Fria, com os EUA como potência maior e incontestável, a quem o mundo deve vassalagem, fica ainda mais potente com a atuação do bloco tendo a China à sua frente.
Dos quatro membros originais e de maior peso no bloco, o Brasil, do ponto de vista dos EUA, é o elo mais fraco da cadeia. Diferentemente dos demais, não é uma potência militar nem atômica. Não está em uma área prioritária e sensível da geopolítica dos EUA. Não é uma potência industrial ou científica nem tem imensas populações como China e Índia. Não é um parceiro comercial com o peso da China.
Nas últimas semanas Lula tem feito algumas falas defendendo essas posições que colocam o BRICS desafiando o poder do dólar e por consequência o poder do império. E ele nesses dois anos e meio de governo voltou a ser uma voz que tem alguma audiência nos fóruns internacionais, tendo sido inclusive convidado para a última reunião do G7. O Brasil, após Michel Temer e Jair Bolsonaro, dois fantasmas no cenário internacional, reaparece. Para completar, Dilma Rousseff é a presidenta do Banco dos Brics, reconduzida após o primeiro mandato, pela China, que abriu mão da posição que seria sua pelos critérios de governança do banco.
É possível se concluir que o jogo pesado de Donald Trump com o Brasil na verdade tenha como alvo um recado ao bloco. Agredir China, Rússia e Índia pode não ser interessante a ele nesse momento.
Há nas cartas e falas de Donald Trump uma evidente defesa dos interesses das Bigtechs sediadas nos EUA e que controlam boa parte das interações das pessoas com a internet aqui e no mundo. Um dos interesses dessas empresas é o mercado de pagamentos eletrônicos. Daí a referência ao PIX brasileiro. O PIX, segundo dados do Banco Central, tem as quantidades do gráfico abaixo.

Em junho de 2025 havia cerca de 189 milhões de usuários pessoas físicas e jurídicas e 577 milhões de contas. Como comparação, em 2024 havia 154 milhões de cartões de débito, 5% menos quem em 2023, demonstrando uma queda importante de um produto que existe há décadas no país. É provável que essa queda seja consequência do uso intenso do Pix.
Em junho 2020 a Meta anunciou o lançamento da funcionalidade WhatsApp Pay no Brasil. Seria possível enviar dinheiro a amigos e pequenos negócios usando Facebook Pay. Porém, apenas oito dias depois, o Banco Central e o Cade pediram a suspensão, citando preocupações com a competitividade, proteção ao Pix e falta de análise prévia, frustrando a empresa. Somente em março de 2023, o Banco Central autorizou o WhatsApp a permitir pagamentos a pequenos e médios negócios, após integração com diversas adquirentes como Cielo, Mercado Pago e Rede.
Em abril de 2023, o recurso foi lançado oficialmente, possibilitando pagamento dentro do chat usando cartões Visa e Mastercard. A Meta tentou se antecipar ao lançamento do Pix, mas o governo frustrou sua intenção. Mas os valores envolvidos nas transações com Pix são de chamar a atenção. As tabelas abaixo mostram os valores transacionados pelo Pix e a arrecadação potencial para a cobrança de uma taxa de 1% ou 2%, as praticadas nos pagamentos com cartão de débito.

3.
Passaram pelo Pix cerca de R$52 trilhões com um potencial de arrecadação de R$520 bilhões e R$1 trilhão para taxas de 1% e 2%, respectivamente, entre julho de 2023 e junho de 2025. Uma montanha de dinheiro que poderia potencialmente ser arrecadada pelas Bigtechs. Ou ao menos parte dela. Ainda assim seria muito dinheiro para se deixar de lado. E isso sem custo nenhum para os 168 milhões de usuários pessoa física do Pix para suas transações entre si ou com os 20 milhões de usuários pessoa jurídica.
A tentação para algum tipo de intervenção que possibilite acesso a essa mina de ouro é muito grande. Uma nota de pé de página importante é que há no Banco Central quem defenda a transferência da operação do Pix para uma empresa privada em nome da modernidade, eficiência e segurança. Isso tem cheiro de lobby de cachorro muito grande, imenso. Como as Bigtechs ou o mercado financeiro.
Além dessa montanha de dinheiro as Bigtechs não suportam a ideia de perderem seu poder de atuar sem nenhuma regulação. A capacidade de influenciar o debate público, seja político ou da vida em sociedade, delas é imenso. E elas não querem perder isso. A possibilidade de interferir diretamente nos processos eleitorais, monitorando e manipulando os eleitores em função dos seus interesses ou daqueles que lhes dão cobertura e rezam na mesma cartilha política, invariavelmente de direita, é defendida a todo custo e sem limites.
Os dados e comentários acima procuram montar o cenário mais provável que resultou na grosseira intervenção de Donald Trump em nosso país do que a singela defesa de Bolsonaro e de sua família. Não parece crível que o Império do Norte fosse se mover em nossa direção por tão pouco como defender alguém que nem é esse alguém todo. Alguém que parte importante da própria burguesia nacional, como pode ser visto em editoriais do Estadão e nos comentários da GloboNews, parece estar abandonando.
Claro que Jair Bolsonaro ainda não é cachorro morto. Mas seu capital político aparentemente está se reduzindo, especialmente após a cartinha de Donald Trump. Está colando nele e na família o carimbo de quem está rifando o país para livrar sua pele.
Pode-se então concluir que a defesa dos interesses das Bigtechs e o ataque aos BRICS fazem mais sentido que a defesa da família Bolsonaro.
*Luís Sérgio Canário é mestrando em economia política na UFABC.
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