Como a democracia se torna um zumbi

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Por DAVID F. L. GOMES*

O que resta no Brasil é uma democracia de fachada: liberdades formais intactas, mas soberania estrangulada, onde o Banco Central dita a política, o Congresso sequestra o orçamento, e o governo, refém, repete o script do capital

1.

O título deste texto não desconhece os absurdos imagéticos cometidos por Hollywood a partir de uma figura presente em práticas religiosas afro-caribenhas – a figura do zumbi. Ciente dessa caricatura, o que ele procura é exatamente explorar os efeitos de exagero que ela possibilita.

Ao mesmo tempo, outro efeito é buscado: uma certa ironia, quase um escárnio, frente à fragilidade do debate sobre crise da democracia que inundou o Brasil nos últimos anos. Uma baliza fundamental desse debate – talvez a baliza fundamental – foi a chegada até nós do livro Como as democracias morrem,[i] de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, lá pelos idos de 2018.

Daí em diante, o cerne do debate girou em torno das ameaças autoritárias representadas por “lideranças populistas” e por arranjos institucionais – na relação entre os poderes e na conformação eleitoral – que desprotegiam em demasia a democracia liberal. Feito o diagnóstico, vinha implicitamente a receita da cura: derrotar o “populismo autoritário”, fazendo o que fosse necessário para restaurar a boa saúde das instituições típicas da democracia liberal. Houve, como ainda há, exceções louváveis a essa discussão morna e enviesada. Mas, como tônica geral, não passou, ainda hoje, muito disso.

É verdade que Yascha Mounk, em seu O povo contra a democracia,[ii] chamou a atenção para a necessidade de também operar ajustes na economia. No entanto, de um lado, o reconhecimento dessa necessidade não parece significar outra coisa que um apelo a um retorno aos anos “gloriosos”, no pós-Segunda Guerra, do capitalismo de bem-estar – modelo efêmero que dificilmente teria sido possível sem duas guerras mundiais, sem a Guerra Fria, sem a expansão concomitante das ditaduras na América Latina e sem o sangrento processo, igualmente coetâneo, de lutas por independência, paralelas a rearranjos de dependência, na África e na Ásia. De outro lado, mesmo esse apelo insosso não gerou muita ressonância por aqui.

Logo, a conceituação de Marcelo Sevaybricker continua parecendo dar conta de explicar muito satisfatoriamente as versões hegemônicas[iii] do debate sobre a crise democrática, aqui e alhures: um misto de “salvacionismo elitista” – “quer dizer, a aposta no restabelecimento de normas e hábitos fundamentais ao funcionamento de uma democracia a partir da ação providente e decisiva das elites políticas” – e de “catecismo cívico” – “isto é, a estratégia que apela aos valores públicos e à mobilização dos cidadãos comuns (a serem, inclusive, ‘educados’ pela leitura desses livros), para o restabelecimento da democracia liberal”.[iv]

2.

Não é difícil ver que este foi o berço esplêndido em que nasceu o projeto do atual governo Lula. Derrotar o “populismo autoritário”, restaurar as forças da combalida democracia liberal. A qualquer custo, ao custo de qualquer aliança.

Terminadas as eleições, sufocada a tentativa de Golpe de Estado, tudo parecia apontar para uma conclusão alvissareira: a democracia havia vencido. Ou melhor, não havia morrido.

Todavia, os danos que o “populista autoritário” havia causado à nossa democracia eram muito mais profundos do que as atrocidades diárias do cercadinho, a que forçosamente nos havíamos acostumado. É preciso ser justo com o ex-Presidente da República: nem tudo pode ser colocado em sua conta. Ele não teria competência para tanto. Como sempre disse, não entende nada de economia.

O processo remonta ao Golpe que não foi meramente tentado, mas efetivado em 2016 contra Dilma Roussef. Ainda naquele ano, com a Emenda Constitucional 95 – a emenda do “teto dos gastos” –, tinha início um movimento de subserviência radical da economia nacional aos interesses financistas globais, na linha daquilo que, já metamorfoseado em relação ao velho “Consenso de Washington”, Daniela Gabor tem chamado de “Consenso de Wall Street”.[v]

A agudização desse movimento, entretanto, aconteceu entre 2019 e 2022, a partir de dois pilares: o sequestro do orçamento por emendas parlamentares de caráter institucional duvidoso e a autonomia do Banco Central, conforme estabelecida pela Lei Complementar 179/2021.

Quando o terceiro mandato de Lula efetivamente começou, era essa a camisa de força que lhe havia sido preparada. Em termos práticos, essa camisa de força tem significado uma impossibilidade de o governo governar.

Em termos mais específicos, tem significado sobretudo um bloqueio sistemático à possibilidade de efetivação do projeto de política econômica e social anunciado explicitamente por Lula durante sua campanha eleitoral e escolhido nas urnas pela população brasileira. Ou seja, como Juarez Guimarães vem insistindo em reiteradas manifestações, essa camisa de força não tem sido outra coisa que uma ofensa frontal à soberania popular, pilar inafastável de uma democracia.

O interessante é que boa parte de quem embarcou na aliança peculiar que teve como resultado o terceiro governo Lula – e também de quem não integrou essa aliança, mas a apoiou explícita ou implicitamente – parece muito à vontade com essa silhueta que nossa democracia exibe hoje. Mais do que à vontade, parecem gostar da imagem com que se deparam. Mais do que gostar, parecem fazer de tudo para mantê-la assim.

É difícil não aventar que o plano fosse este desde o início: apoiar um novo mandato de Lula, mas domesticado na arquitetura orçamentário-financeira herdada do período autoritário que começa em 2016 e se aprofunda entre 2019 e 2022. Ou seja, eliminar os riscos de instabilidade que acompanham o “populista autoritário”, mas conservar a estabilidade que ele logrou dar ao represamento da soberania popular quando o que está em jogo são assuntos sociais e econômicos.

3.

O sequestro do orçamento não consegue encontrar nenhuma defesa minimamente plausível – é no subterrâneo do assumidamente suspeito que ele se movimenta. Trata-se de um ataque escancarado à possibilidade de planejamento sistemático e eficiente dos gastos públicos pelo Poder Executivo, simplesmente para servir de moeda de troca política ao Poder Legislativo, nas relações com sua base e com o próprio Executivo.

É uma violação nítida da separação de Poderes esculpida constitucionalmente pela soberania popular constituinte, com o Executivo sendo violado em uma de suas funções primordiais. Essa função, por óbvio, deve ser exercida em diálogo com o Legislativo e sujeitando-se a seu controle – mas isso em hipótese alguma se confunde com o tipo de chantagem e retalhamento orçamentário prévio a que estamos assistindo.

Quanto à autonomia do Banco Central, o argumento em que insistem o tempo todo – no melhor estilo de uma mentira repetida exaustivamente para tentar ganhar ares de uma verdade razoável – é o suposto caráter técnico das medidas que ele adota, recomendadas por uma ciência econômica neutra, que não teria compromisso com qualquer ideologia político-partidária. O amplo uso midiático desse argumento já permite o vislumbre do grau de cinismo que o acompanha.

Sem dúvida, o modelo econômico que, via autonomia do Banco Central, vem sendo imposto ao governo – com suas limitações à política fiscal, à política monetária e à política cambial – é uma aplicação direta do mainstream econômico-científico global. Mas esse mainstream, essa corrente majoritária na ciência econômica, nunca deixou de ser fortemente contestada, com argumentos teóricos e com dados empíricos.

Quanto a seu potencial preditivo, ela erra com uma frequência risível suas previsões mais detalhadas. No que tange à sua capacidade compreensiva do passado, ela continua devendo uma explicação minimamente satisfatória da crise de 2007-2008. Como se não bastasse, já está solidamente demonstrada sua predileção político-ideológica.

Por que, então, apesar de tudo isso, ela constitui uma versão predominante da leitura teórica e das recomendações práticas da economia, podendo ser, como tal, inoculada diariamente por jornais de grande circulação e veículos, como um todo, formadores de opinião? É simples: em que pese o conjunto dos seus erros, ela segue oferecendo um caminho mais seguro para a preservação das posições sociais e econômicas estabelecidas, uma estrada menos arriscada para a manutenção do status quo.

Em outras palavras, não é seu suposto caráter técnico-neutro que a mantém de pé. Ao contrário, é precisamente sua preferência político-ideológica que a sustenta incólume. É possível que ela se equivoque grotescamente, mas esses equívocos, se acomodados nos limites do seu arcabouço, não colocarão em xeque a estrutura socioeconômica perversa que temos, com seus níveis indecorosos de desigualdade, tanto entre países do centro e da periferia quanto internamente a cada país, lá ou aqui.

4.

Como bem o mostram, com farto lastro probatório, economistas como Ha-Joon Chang[vi] e Mariana Mazzucato[vii], o receituário imposto por esse mainstream econômico, como alegado caminho para um desenvolvimento que reduzisse a desigualdade nos países e entre os países, é o exato oposto do que os países mais ricos efetivamente têm feito para chegar aonde chegaram.

No caso específico do Brasil, é um pouco pior. A aplicação mecânica desse receituário pelo Banco Central mostra uma insensibilidade nada inteligente ao contexto. Por um lado, os preços, no país, reagem pouco a variações nas taxas de juros. Assim, ao aferrar-se a esse pretendido mecanismo de causa-efeito entre aumento da taxa básica de juros (a Selic) e redução da inflação, o Banco Central se enreda em elevações sucessivas rumo a um patamar exorbitante dessa taxa.

Por outro lado, cerca de metade da dívida pública brasileira está atrelada a essa mesma taxa, de modo que, quando ela aumenta, a dívida pública também aumenta. Nesse sentido, a alta da Selic, que o Banco Central tenta justificar afirmando que combaterá a inflação, pressiona para cima a própria inflação.[viii]

No intuito de falsear esse fato básico, somos bombardeados cotidianamente com pedidos para que o governo promova “ajustes estruturais” que pudessem resolver a questão da dívida pública, como se o problema axial do país fossem as pessoas que precisam do BPC – inegavelmente, uma das maiores conquistas da Constituição de 1988.

Esses pedidos, no fundo, são clamores para que o governo descumpra suas obrigações constitucionais, em face dos deveres de proteção social delineados por essa mesma Constituição. Além disso, são clamores para que, novamente, não se efetive o projeto de política econômica e social apresentado às urnas e declarado vitorioso pela soberania popular em sua manifestação constituída – isto é, no momento do sufrágio.

É com tudo isso, em uma mistura indigesta, que chegamos ao quadro de uma democracia zumbi. As liberdades individuais estão sendo respeitadas – afinal, elas não protegem, no Brasil, discursos discriminatórios, liberdade de locomoção para tentar um Golpe de Estado nem direito de acesso, via hackeamento, ao sistema informático do CNJ, tampouco a alteração, ali, de documentos oficiais.

As instituições, por sua vez, estão funcionando – aos trancos e barrancos, entre tropeços e atropelos que o seja. Porém, a soberania popular encontra-se represada, boicotada, impedida. Sem seu livre fluxo, a democracia – que é sempre mais do que dizem dela os liberais – pode até não ter morrido, mas tampouco segue exatamente viva. Meio viva, meio morta: algo mais ou menos como um zumbi.

*David F. L. Gomes é professor da Faculdade de Direito da UFMG.

Notas


[i] Levitsky, Steven; Ziblatt, Daniel. Como as democracias morrem. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

[ii] Mounk, Yascha. O povo contra a democracia: por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. Trad. Cássio Leite e Débora Landsberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

[iii] Marcelo Sevaybricker também apresenta outras versões, minoritárias e mais críticas – que, porém, como tais, não encontram tanto eco nos debates entre nós. Cf. Sevaybricker Moreira, Marcelo. Democracias em crise: balanço bibliográfico de um debate da teoria política contemporânea. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais – ANPOCS, n. 99, 2003, p. 1-21.

[iv] Sevaybricker Moreira, Marcelo. Democracias no século XXI: causas, sintomas e estratégias para superar a sua crise. Lua Nova. Revista de Cultura e Política, v. 11, 2020, p. 18.

[v] Gabor, Daniela. The Wall Street Consensus. Development and Change, n. 52, 2021, p. 429-459.

[vi] Chang, Ha-Joon. Chutando a escada: a estratégia de desenvolvimento em perspectiva histórica. Trad. Luiz Antônio Araújo. São Paulo: Editora UNESP, 2004.

[vii] Mazzucato, Mariana. O Estado Empreendedor: desmascarando o mito do setor público vs. setor privado. Trad. Elvira Serapicos. São Paulo: Portfolio-Penguin, 2014.

[viii] Para uma análise detalhada de todos esses pontos relacionados à taxa básica de juros no Brasil, Cf. Brenck, Clara; Ribeiro, Rafael. Por que tão alta? Os desafios institucionais da política de juros no Brasil. Publicação de agosto de 2024. Disponível em: https://www.phenomenalworld.org/pt-br/analises/porque-tao-alta/


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