Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR*
O dilema está posto: aceitar a universidade como ativo financeiro ou reconquistá-la como bem comum. Entre a precarização que disciplina e a insurgência que liberta, só uma escolha coletiva poderá reescrever seu futuro – para além dos rankings e das gaiolas da produtividade vazia
1.
A instituição pública de ensino superior, amplamente percebida como espaço de excelência, liberdade crítica e democratização do conhecimento, apresenta em sua configuração concreta uma contradição estrutural que não se resolve por simples reformas.
A mesma estrutura que produz ciência de ponta convive e se alimenta de formas persistentes de precarização do trabalho, desigualdade de acesso e reprodução de hierarquias sociais e epistêmicas. Não se trata de um desvio ou anomalia, mas de uma característica constitutiva de um sistema educacional inserido na lógica de um país economicamente dependente e politicamente organizado segundo pactos excludentes.
O ponto de partida é a compreensão de que essa dualidade não se deve a ineficiências administrativas ou equívocos de planejamento, mas à forma como o sistema se moldou historicamente para servir simultaneamente a dois propósitos: legitimar-se como vitrine internacional de excelência e funcionar como mecanismo interno de gestão da escassez e da desigualdade.
Ao invés de suprimir o “atraso” histórico, absorve-o e o incorpora à sua engrenagem, garantindo que a modernização ocorra de maneira seletiva e compatível com a manutenção da ordem social existente.
O marco histórico fundamental para essa configuração foi a reforma universitária promovida durante o regime autoritário instaurado no final da década de 1960. Sob a justificativa de modernizar e racionalizar a gestão, implantou-se um modelo centralizado, departamentalizado e tecnocrático que subordinou a autonomia acadêmica aos critérios da eficiência administrativa. Esse arranjo preservou e aprofundou traços patrimonialistas e clientelistas, enquanto integrava o sistema às exigências do capital internacional e à lógica do Estado tecnocrático.
As décadas seguintes não romperam com essa herança. Mesmo nos períodos de abertura democrática, manteve-se a centralidade de uma racionalidade voltada à performance, à mensuração de resultados e à adaptação às demandas do mercado. A expansão do acesso, embora relevante, não foi acompanhada por uma redistribuição substantiva de recursos e oportunidades. O resultado é a persistência de uma geografia seletiva da excelência, concentrada em poucos centros, e a marginalização de campi e instituições periféricas.
Essa arquitetura institucional se articula a um modelo econômico e político que combina dependência externa, austeridade fiscal e alianças oligárquicas internas. A gestão dos recursos, frequentemente marcada por contingenciamentos e cortes, convive com práticas de loteamento político de cargos e orçamentos. Assim, a promessa de uma educação superior pública como instrumento de desenvolvimento nacional e de justiça social choca-se com a realidade de um sistema que naturaliza desigualdades e reproduz, dentro de si, as mesmas hierarquias que permeiam a sociedade.
O quadro se agrava a partir dos anos 1990, com a ascensão das reformas neoliberais. O ensino superior público passa a ser orientado por modelos de gestão empresarial, centrados em metas, indicadores e resultados quantificáveis.
Políticas de expansão, avaliação e financiamento são moldadas segundo parâmetros externos, muitas vezes definidos por agências de fomento e organismos internacionais. O discurso da inclusão é acompanhado pela intensificação de mecanismos de competição interna, que estimulam a busca por produtividade bibliométrica e captação de recursos, em detrimento de uma formação crítica e de projetos de longo prazo voltados às necessidades sociais.
2.
Nesse contexto, o trabalho acadêmico sofre uma reconfiguração profunda. A figura do docente-pesquisador, antes associada a uma relativa autonomia intelectual, passa a operar sob vínculos cada vez mais precários, jornadas fragmentadas e pressão permanente por desempenho.
A intensificação do trabalho não se limita à sala de aula ou ao laboratório: estende-se ao cumprimento de metas de publicação, participação em projetos de captação de recursos e atendimento a demandas burocráticas. A avaliação por indicadores como número de artigos e índice de impacto transforma-se em critério central de reconhecimento e progressão na carreira.
Ao mesmo tempo, cresce a presença de trabalhadores temporários, bolsistas e terceirizados, cuja contribuição é essencial para o funcionamento das instituições, mas que permanecem em situação de instabilidade e invisibilidade. A precarização atinge também os estudantes, especialmente aqueles oriundos de políticas de ação afirmativa, que enfrentam dificuldades de permanência por falta de apoio adequado. O diploma, antes percebido como garantia de mobilidade social, converte-se, para muitos, em credencial para formas flexíveis e instáveis de trabalho.
A internacionalização da produção científica, embora apresente oportunidades de cooperação e visibilidade, é frequentemente capturada por uma lógica de prestígio desvinculada da soberania epistêmica. Projetos e parcerias são avaliados pela capacidade de gerar publicações em periódicos indexados internacionalmente ou patentes com potencial de licenciamento, e não pela relevância para a sociedade local ou nacional. Essa orientação reforça a desconexão entre a produção acadêmica e as demandas concretas das populações, contribuindo para a exportação de talentos e para o aprofundamento das desigualdades internas.
Outro elemento central dessa análise é a financeirização da ciência e da educação superior. O conhecimento deixa de ser concebido como bem público e passa a ser tratado como ativo intangível, passível de gerar expectativas de rentabilidade futura.
Rankings, métricas de impacto, patentes e startups acadêmicas tornam-se equivalentes simbólicos de valor no mercado de prestígio acadêmico. A instituição é reconfigurada como produtora de ativos simbólicos que alimentam circuitos especulativos, muitas vezes desconectados de qualquer benefício social direto.
Essa lógica afeta de modo particular as áreas de conhecimento cuja produção não se traduz facilmente em indicadores de mercado, como as humanidades, artes e parte das ciências sociais. Pesquisas com relevância social, mas sem potencial de patente ou licenciamento, são despriorizadas ou mesmo interrompidas por falta de aderência a “prioridades estratégicas”. A autonomia intelectual é substituída pela necessidade de alinhar-se a agendas definidas por agências de fomento e interesses empresariais.
A precarização, nesse arranjo, não é um efeito colateral, mas parte integrante do modelo. A flexibilidade dos vínculos de trabalho, a competição por recursos escassos e a constante vigilância por indicadores de desempenho são mecanismos que disciplinam a força de trabalho acadêmica e moldam subjetividades adaptadas à lógica da autogestão e da autoexploração.
A figura do “precariado universitário” sintetiza essa condição: profissionais altamente qualificados que vivem sob insegurança estrutural e ausência de garantias, combinando tarefas múltiplas com baixa previsibilidade de carreira.
A análise demonstra também que políticas de inclusão, quando desvinculadas de transformações estruturais, têm alcance limitado. A ampliação de vagas e a adoção de cotas representam avanços inegáveis no acesso, mas não garantem permanência ou condições equitativas de formação. Sem investimento robusto em assistência estudantil, infraestrutura e apoio pedagógico, a promessa de mobilidade social se converte, para muitos, em experiência frustrante e excludente.
O modelo de governança que sustenta essa configuração combina elementos do Estado tecnocrático e do Estado clientelista. Por um lado, há a imposição de métricas, auditorias e controles inspirados no setor privado; por outro, persiste a influência de redes políticas e econômicas que tratam a gestão das instituições como extensão de disputas por cargos e recursos. Essa combinação bloqueia iniciativas de democratização real da gestão e impede que a comunidade acadêmica tenha voz efetiva nas decisões estratégicas.
No plano internacional, o sistema se integra de maneira subordinada às cadeias globais de produção de conhecimento e tecnologia. Atua como fornecedor de competências e inovações de interesse para centros hegemônicos, ao mesmo tempo em que internaliza padrões e agendas definidas fora de suas fronteiras. A excelência, nesse caso, serve também como moeda de legitimação dessa posição subordinada, reforçando a dependência em vez de superá-la.
A dimensão subjetiva desse processo é igualmente relevante. A pressão por resultados e a instabilidade dos vínculos de trabalho geram desgaste emocional, ansiedade e esgotamento. A cultura da competição e do desempenho individual corroem laços de solidariedade e cooperação, substituindo-os por estratégias de autopreservação. O espaço que deveria cultivar a reflexão crítica e o pensamento autônomo torna-se terreno fértil para a adaptação conformista e para a reprodução de hierarquias.
3.
A partir desse diagnóstico, emerge a defesa de uma transformação radical, que vá além de ajustes administrativos ou reformas incrementais. A proposta é conceber a instituição como espaço de insurgência contra a lógica da mercantilização e da financeirização, reconectando-a a um projeto democrático, popular e socialmente comprometido. Isso implica recusar a neutralidade como disfarce para a dominação, valorizar o trabalho com dignidade, promover a justiça epistêmica e reconstruir os vínculos entre conhecimento e necessidades coletivas.
Tal reconstrução não virá de decretos ou políticas impostas de cima, mas da ação coletiva de estudantes, docentes e trabalhadores técnico-administrativos. Trata-se de criar, no cotidiano, práticas de solidariedade, participação democrática e produção colaborativa do saber. A resistência à lógica gerencial e ao produtivismo despolitizado deve ser acompanhada por um esforço de imaginação institucional: pensar novas formas de organizar o ensino, a pesquisa e a extensão que escapem às amarras da avaliação por métricas e da competição mercantilizada.
A transformação proposta reconhece que a crise atual não é passageira, mas estrutural. A dualidade entre excelência e precarização, entre inclusão discursiva e exclusão material, entre projeção internacional e abandono interno, é expressão de um modelo consolidado e funcional à manutenção das desigualdades. Romper com esse modelo exige não apenas denunciar suas contradições, mas construir alternativas concretas, enraizadas nas lutas sociais e na participação efetiva da comunidade acadêmica.
Essa visão também exige enfrentar a inserção subordinada no cenário global. É necessário redefinir a internacionalização para que não se limite à busca de prestígio, mas sirva ao fortalecimento da soberania científica e tecnológica. Parcerias internacionais devem ser orientadas por critérios de relevância social e de reciprocidade, e não apenas pela capacidade de gerar publicações em periódicos de alto impacto ou de atender a demandas de mercados externos.
4.
No plano interno, a democratização da gestão e a redistribuição de recursos são condições indispensáveis para superar a geografia seletiva da excelência. É preciso investir de maneira consistente em campi e áreas historicamente marginalizadas, garantindo que a qualidade do ensino e da pesquisa não dependa da localização geográfica ou da tradição institucional. Da mesma forma, é urgente ampliar e qualificar as políticas de permanência estudantil, assegurando que o acesso se traduza em conclusão e formação de qualidade.
O enfrentamento da precarização do trabalho acadêmico passa pela valorização efetiva dos docentes e demais trabalhadores. Isso inclui a garantia de vínculos estáveis, condições adequadas de trabalho e tempo protegido para a pesquisa e a reflexão. É igualmente fundamental reconhecer e valorizar o trabalho das áreas que não se traduzem em indicadores de mercado, mas que são essenciais para a formação cidadã e para a compreensão crítica da realidade.
A mudança de rumo implica também repensar a própria finalidade da instituição. Em vez de orientá-la prioritariamente para atender às demandas do mercado, é necessário reafirmar sua função pública e seu compromisso com a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Isso não significa ignorar as exigências de inovação e de desenvolvimento tecnológico, mas integrá-las a um projeto mais amplo, que coloque o conhecimento a serviço do bem comum.
A experiência mostra que essa transformação não se dará sem resistência. A lógica vigente está profundamente enraizada em estruturas de poder, redes de financiamento e hábitos culturais que reproduzem a desigualdade. Romper com ela exige coragem política, mobilização social e capacidade de articular diferentes setores em torno de um projeto compartilhado. Significa também enfrentar narrativas que naturalizam a precarização como preço inevitável da excelência ou que tratam a financeirização como modernização necessária.
O momento histórico oferece tanto desafios quanto oportunidades. As crises econômicas, políticas e ambientais colocam em evidência a insuficiência de modelos orientados exclusivamente pela rentabilidade e pela competição. Ao mesmo tempo, ampliam-se as demandas por uma educação superior capaz de contribuir para a solução de problemas complexos e para a construção de alternativas sustentáveis. A instituição pública de ensino superior pode e deve desempenhar um papel central nesse processo, mas apenas se for capaz de reinventar-se de forma profunda e consequente.
Em última instância, a reflexão apresentada aponta para a necessidade de reconectar o espaço acadêmico à vida social em toda a sua diversidade. Isso implica abrir-se a saberes e experiências que tradicionalmente foram marginalizados, dialogar com movimentos sociais e comunidades, e reconhecer que a produção de conhecimento não é monopólio de especialistas. Significa também assumir que a neutralidade é uma ilusão e que toda produção acadêmica está inserida em contextos de poder e disputa.
A crítica desenvolvida não se limita a um diagnóstico pessimista. Há, na análise, um componente propositivo que aposta na capacidade de transformação a partir de dentro, mas com apoio e pressão de fora. A insurgência acadêmica proposta é, ao mesmo tempo, um movimento intelectual, político e cultural, que busca recolocar a instituição a serviço de um projeto de sociedade mais democrático, solidário e emancipador.
O desafio é imenso, mas a alternativa a essa transformação é a consolidação de um modelo cada vez mais subordinado aos interesses do capital financeiro e às dinâmicas da desigualdade. A escolha está entre aceitar a normalização da precariedade e da exclusão ou construir, coletivamente, caminhos para superá-las. O futuro da educação superior pública depende dessa decisão e da capacidade de agir de acordo com ela.
*João dos Reis Silva Júnior é professor titular do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Autor, entre outros livros, de Educação, sociedade de classes e reformas universitárias (Autores Associados). [https://amzn.to/4fLXTKP]
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