Progresso em quê?

Imagem: João Nitsche
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

A humanidade se admite impotente ante suas próprias criações

Este artigo faz alusão ao discurso recente do presidente francês Emmanuel Macron que justificou sua decisão de introduzir o 5G muito rapidamente na França, apesar dos protestos em vários setores da sociedade, dizendo que a alternativa seria “voltar a lâmpada de óleo e viver como os Amish” americanos.

Existem coisas que são tão evidentes que ninguém as vê ou menciona – e aquele que  relembra os outros delas parece balbuciar banalidades. Isso, no entanto, não constitui uma boa razão para não dizê-las. O debate atual sobre as redes 5G e o ‘progresso’ é um bom exemplo, com suas injunções caricaturais sobre escolher entre o 5G e a ‘lâmpada a óleo’.

A primeira questão que se deveria fazer, com uma simples pitada de bom senso, é: progresso em que? Ninguém comemora, por exemplo, os ‘progressos’ da Covid! É preciso que o progresso melhore a vida humana.

Pode-se, então, tratar de dois tipos principais de progresso: um progresso técnico, que consiste em uma dominação crescente da natureza pelo homem, e um progresso que poderíamos chamar de ‘moral’ ou ‘social’: as relações humanas tornam-se melhores, menos violentas, mais solidárias, mais ‘inclusivas.

Desde o princípio do discurso sobre o progresso, a relação entre essas duas formas é incerta. Frequentemente assume-se, como uma evidência, que o progresso técnico leva automaticamente um a progresso moral; outros, especialmente à esquerda, apostam mais no progresso social, mas consideram que a melhora das condições materiais é a sua base indispensável e que apenas o desenvolvimento técnico pode assegurar tal melhora.

Um governo não pode defender a adoção de novas tecnologias como um fim em si: ele deve sempre pretender que elas farão a vida de todos mais bela. Contudo, inexiste qualquer relação necessária entre as duas formas de progresso: pode-se ter um grande desenvolvimento tecnológico combinado com uma regressão moral, como foi o caso do nazismo, mas também um progresso social que não se preocupa com o desenvolvimento técnico, como defendia Jean-Jacques Rousseau, a maior parte das correntes anarquistas, e também diversos discursos religiosos (como os Amish!).

Nas últimas décadas, sobretudo, a sociedade tomou consciência do fato de que as soluções tecnológicas, mesmo onde elas levam a avanços incontestáveis, trazem efeitos indesejáveis quase que inevitavelmente. Sabe-se disso, por experiência, antes mesmo de qualquer ‘estudo de impacto’ ou ‘avaliação de riscos’. Por essa simples razão, aquele que propõe o uso de uma nova tecnologia como resposta a um problema deveria sempre demostrar que não poderíamos obter o mesmo efeito ou resolver o problema em questão sem lançar mão das tecnologias, logo, correndo menos riscos.

E, voilà, a segunda evidência invisível. Antes de nos permitir assistir vídeos até mesmo dentro do elevador ou ir de avião visitar uma outra metrópole a cada fim de semana, o progresso tinha, sobretudo, essa nobre vocação: diminuir os sofrimentos não necessários. “Que nenhuma criança vá para a cama com fome”: assim pudemos definir o objetivo mínimo de um progresso humano.

Mas como chegar lá? Por meios técnicos ou sociais? Hoje, a grande maioria dos sofrimentos humanos não é causada pela ‘natureza’, mas pela organização da vida social. Deveria, então, ser muito mais fácil para o homem mudar aquilo que depende de si do que aquilo que depende da natureza. O que o ser humano fez, ele pode – em princípio – desfazer.

Assim, para por fim à fome no mundo, bastaria, possivelmente, cultivar todas as superfícies agrícolas valendo-se de pequenas fazendas polivalentes, evitar as monoculturas de exportação, não dar benefícios aos agricultores para que deixem de sê-lo, não jogar os ‘excedentes’ agrícolas no mar, e, por outro lado, não apoiar mais os regimes que exportam amendoim para comprar armas.

Impossível, nos responderão, é belo mas é utópico: o comércio mundial desmoronaria, os consumidores ocidentais não aceitariam renunciar a seus hambúrgueres, e os investimentos e empregos sofreriam. Se a ordem social é intocável, estaríamos nos metendo a alterar a natureza: inventamos pesticidas e a manipulação genética, produtos químicos e máquinas gigantescas, com o objetivo de criar uma enorme massa de produtos agrícolas, mas em condições terríveis.

É, aparentemente, mais fácil romper a mais pequena unidade do ser vivo, o genoma, do que expropriar uma companhia de frutas; mais fácil criar milhares de moléculas sintéticas do que aceitar a falência da Monsanto; mais fácil inventar sementes autoestéreis do que retirar dos consumidores os seus Big Macs.

Outro exemplo: uma das causas principais tanto da poluição quanto do consumo desenfreado de energia são os transportes cotidianos entre o local de trabalho e de habitação de uma parte considerável da população. Esse problema agora é mundial, e é evidente que tem muito a ver com o custo da moradia nas grandes cidades, e, portanto, com a especulação imobiliária.

Mas, atacar esse problema pela raiz significaria atacar a sacrossanta propriedade privada: e nesse momento é mais fácil extrair petróleo do outro lado do mundo e o enviar por tubulações, ou entregar-se à energia nuclear. A fissão do urânio parece ser mais fácil de dominar do que os acionistas da Total ou da Exxon.

Mais ainda: muitas pessoas, desesperadas para conseguir ter uma criança de forma ‘natural’, apelam para a procriação assistida – que, no entanto, gera grandes problemas de todos os tipos. Certamente, a taxa de fertilidade diminuiu bastante nessas últimas décadas e isso tem, muito provavelmente, relação com a presença excessiva de produtos de síntese química em nosso meio ambiente – mas enfrentar suas causas é muito mais complicado e esbarra em interesses e hábitos demais, em todos os níveis sociais.

Vale mais a pena, então, entregar-se às soluções tecnológicas, por mais perigosas que elas possam ser. É um dos grandes paradoxos de nosso tempo: o que é social, logo feito pelo homem, é considerado como natural, e portanto absolutamente imutável. As ‘leis do mercado’, a ‘concorrência internacional’, os ‘imperativos tecnológicos’, a ‘necessidade de crescimento’ parecem muito mais inalteráveis do que a lei da gravitação. Quem propõe sua mudança passa, no melhor dos casos, por um inocente, senão por um terrorista.

Em contrapartida, os limites que a natureza efetivamente impõe ao homem (por exemplo sob a forma de insetos que também querem comer as plantas cultivadas, ou do fato que o corpo humano é mortal e não possui o dom da ubiquidade) são considerados como se eles fossem sociais: sempre provisórios, na espera de que ‘se encontre uma solução’, custe o que custar.

Assim, a humanidade se admite impotente ante suas próprias criações. Este destino é inelutável? Ou ela pode se organizar de uma forma diferente?

*Anselm Jappe é professor na Academia de Belas Artes de Sassari, na Itália, e autor, entre outros livros, de Crédito à morte: A decomposição do capitalismo e suas críticas (Hedra).

Tradução: Daniel Pavan

Publicado originalmente no portal Mediapart.

Outros artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
José Costa Júnior Armando Boito Remy José Fontana Ronald León Núñez Everaldo de Oliveira Andrade Ricardo Abramovay José Geraldo Couto Benicio Viero Schmidt Paulo Martins Mariarosaria Fabris Antonino Infranca Luiz Werneck Vianna Ronaldo Tadeu de Souza Matheus Silveira de Souza Tadeu Valadares Sergio Amadeu da Silveira Marcus Ianoni Osvaldo Coggiola Leonardo Avritzer Henri Acselrad Luiz Roberto Alves Manchetômetro João Sette Whitaker Ferreira Bruno Fabricio Alcebino da Silva Dênis de Moraes Leda Maria Paulani Valerio Arcary Eugênio Bucci Ricardo Musse Slavoj Žižek Caio Bugiato Michael Löwy Thomas Piketty Bernardo Ricupero Dennis Oliveira Daniel Afonso da Silva Jean Pierre Chauvin Mário Maestri Henry Burnett Andrew Korybko José Machado Moita Neto Julian Rodrigues José Dirceu Ari Marcelo Solon Denilson Cordeiro Gerson Almeida Anderson Alves Esteves Paulo Sérgio Pinheiro Annateresa Fabris Manuel Domingos Neto Ladislau Dowbor Luis Felipe Miguel Otaviano Helene Luiz Eduardo Soares Marilena Chauí Antonio Martins Lorenzo Vitral Fernão Pessoa Ramos Anselm Jappe Eduardo Borges Alexandre de Lima Castro Tranjan Maria Rita Kehl Rodrigo de Faria Roberto Noritomi Roberto Bueno Carla Teixeira Luiz Carlos Bresser-Pereira Alexandre de Freitas Barbosa Lucas Fiaschetti Estevez Tales Ab'Sáber Kátia Gerab Baggio Gilberto Maringoni Francisco Fernandes Ladeira Chico Alencar Marcos Aurélio da Silva Jean Marc Von Der Weid André Márcio Neves Soares Ricardo Fabbrini Francisco Pereira de Farias Vinício Carrilho Martinez Flávio Aguiar Marcos Silva Vanderlei Tenório João Feres Júnior Priscila Figueiredo Luís Fernando Vitagliano João Carlos Loebens Paulo Nogueira Batista Jr Elias Jabbour Chico Whitaker João Lanari Bo André Singer Eugênio Trivinho Francisco de Oliveira Barros Júnior Vladimir Safatle Luiz Renato Martins Marjorie C. Marona Carlos Tautz João Carlos Salles Afrânio Catani José Micaelson Lacerda Morais José Luís Fiori Flávio R. Kothe Yuri Martins-Fontes Eleonora Albano Paulo Fernandes Silveira Gabriel Cohn Rafael R. Ioris Plínio de Arruda Sampaio Jr. Marcelo Guimarães Lima Airton Paschoa João Adolfo Hansen Paulo Capel Narvai João Paulo Ayub Fonseca Valerio Arcary Berenice Bento Bento Prado Jr. Walnice Nogueira Galvão Jorge Luiz Souto Maior Alysson Leandro Mascaro Antônio Sales Rios Neto Claudio Katz Atilio A. Boron Juarez Guimarães Luiz Bernardo Pericás Luciano Nascimento Leonardo Sacramento Milton Pinheiro Ronald Rocha Luiz Marques Jorge Branco Celso Favaretto Daniel Brazil Sandra Bitencourt Alexandre Aragão de Albuquerque Fábio Konder Comparato Salem Nasser Ricardo Antunes Rubens Pinto Lyra Marilia Pacheco Fiorillo Leonardo Boff Boaventura de Sousa Santos Liszt Vieira Tarso Genro Fernando Nogueira da Costa Igor Felippe Santos Érico Andrade Bruno Machado Marcelo Módolo Michael Roberts Lincoln Secco Eliziário Andrade Heraldo Campos José Raimundo Trindade Gilberto Lopes Samuel Kilsztajn Daniel Costa Eleutério F. S. Prado Celso Frederico Renato Dagnino

NOVAS PUBLICAÇÕES

Pesquisa detalhada