Educados a consumir

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Por BRUNO BONCOMPAGNO*

O império nos vende espelhos; caberia a nós decidir se queremos refletir ou quebrá-los, no entanto somos filhos de uma colonização invisível: consumimos o mundo antes de aprender a habitá-lo

1.

Minha geração foi ensinada a consumir um tipo de conteúdo hiperpalatável, feito sem consideração nem estima, que entra no corpo e logo se volta contra nós. Fomos ensinados a não regurgitar, aceitar de cabeça baixa, falar de lado com nós mesmos. A indústria cultural do século XXI é a culminação das vontades mercadológicas de um capitalismo monopolista, que quer converter toda criatividade e senso estético em produtos a serem vendidos.

Entendida por seu aparato material, como os smartphones, smart tv’s, plataformas digitais como o YouTube, a Twitch, Netflix, Twitter, Instagram e pela insurgência de uma “economia de influenciadores” neste meio, que são pagos para disseminarem um certo tipo de pensamento, a nova indústria cultural domina o ser humano, nascido neste século, desde o berço.

É fácil opinar contrariamente à minha geração. Mais fácil ainda é nos declarar burros, por não sabermos o que fazer da vida. Somos despreparados, perdidos. Tendemos à solidão, à auto-sabotagem, à mediocridade. Muitas vezes deixamos de fazer o que deveríamos para assistirmos vídeos no YouTube, ou jogarmos jogos online. Consumimos certos conteúdos “braindead“, para não termos que pensar em mais nada.

Há uma cultura sendo estabelecida no meio digital que visa enaltecer a estupidez, a ignorância, a falta de sentido à vida. Aparenta que nascemos póstumos, num mundo próximo de seu fim e que, portanto, não teríamos, mesmo que tentássemos, oportunidades de mudá-lo.

Desde nossa infância fomos bombardeados pela cultura norte-americana. Na televisão assistimos ICarly, Zoey 101, Feiticeiros de Waverley Place, Drake and Josh, Zack and Cody, Kennan e Kel, Power Rangers. Não tínhamos capacidade de compreender a agenda de uma programação como essa: éramos crianças. Escutávamos o top 20 do TVZ, escutando rap norte-americano, pop norte-americano, rock norte-americano, country norte-americano.

No cinema, algumas opções: Disney, Pixar, DreamWorks, Warner Bros, MGM, Paramount, 20th Century Fox; Hollywood dominou a expressão da arte cinematográfica no Brasil. Na literatura, a mesma coisa: Zac Power, Diário de um Banana, Capitão Cueca, Harry Potter, entre tantos outros…

Aprendemos a amar o estrangeiro. Mesmo com a melhor educação possível, o preconceito contra a cultura brasileira se mantém presente no cérebro. Se quisermos procurar sobre um assunto em específico, fazemos a busca em inglês. Quer ler algum intelectual? Procure alguém de Harvard, Stanford, MIT ou UCLA. Assistir algum youtuber? Smosh, Pewdiepie, MrBeast, KSI, Kai Cenat, Logan Paul, David Dobrik, Nelk. O futebol sofre da mesma constante.

2.

Nossa cultura foi rebaixada com o advento da nova indústria cultural, que não coincidentemente veio à tona na década de 1990. Ao mesmo tempo em que nossas indústrias eram vendidas à preço de banana para empresas multinacionais norte-americanas e europeias, o fluxo de mídia e cultura oriundas do exterior aumentava. Perdíamos a capacidade de produzir algo que preste dentro do nosso país, enquanto países como a Inglaterra, França, Estados Unidos e Japão investiam pesadamente neste meio.

Essa arma imperialista é altamente efetiva, pois consegue penetrar na consciência do indivíduo sem causar alarde. Sentados na frente da Televisão, qualquer um é vulnerável à mensagem do conteúdo transmitido. Uma série animada norte-americana traduz este fenômeno: Beavis and Butthead.

Nascidos no meio-oeste dos Estados Unidos, a dupla, ambos sem pais (no filme descobrem que eram motoqueiros bêbados, que engravidaram suas mães e foram embora), pode ser tratada como “slackers“, termo referente à geração de adolescentes que não “queriam saber de nada”, sintetizados na imagem do Grunge ou de bandas como Pavement e filmes como Mall Rats e Slackers. Passam a vida inteira na frente da televisão.

Comunicam entre si como homens da caverna. Todas suas ideias são estereotipadas, fruto coeso da educação televisionada. E, se dependesse da vida deles, não falariam algo que preste. Essa é a finalidade de um mercado cultural: tornar todo indivíduo pensante numa máquina inconsciente, que compra o que vê pela frente, sem pensar duas vezes, sempre de maneira unidimensional.

Por isso não assusta o surgimento de figuras como Andrew Tate, Ben Shapiro, Jordan Peterson, Mamãefalei, Kim Kataguiri, Joe Rogan, H3H3, xQc, Adin Ross, Steve Will do It, Jake Paul, Nikolas Ferreira, Jair Bolsonaro, Donald Trump, Javier Millei, entre outros. A obviedade histórica destes fenômenos digitais deveria estar na vanguarda de toda análise feita sobre eles. Fomos alimentados por histórias de heróis, do bom contra o mal, superações mirabulosas, homens misógenos, homofóbicos, racistas, que sempre dão uma maneira de sair por cima dos outros.

A dinâmica dos opostos, na cultura norte-americana, é carregada por seu passado social: genocídio contra os índios, escravidão e segregação contra os negros, colonização que perdura até os dias de hoje. Os norte-americanos se vendem como excepcionais, escolhidos para vingarem a raça humana (branca), construírem um Éden na Terra. São donos da verdade e constroem todo seu arcabouço “artístico” (considerando o que é vendido) ao redor disso.

Fomos colonizados por uma cultura espetacularmente narcisista. O povo norte-americano aprende a ser o melhor, mais produtivo, excepcional, criador e magnata. Aprende a concretizar toda oportunidade financeira, empresarial e militar. Essa é a ideologia norte-americana, que nunca terá contraparte no Brasil. Afinal, somos um país de “terceiro mundo”, não-soberano, dependentes do resto, colonizados por mais de quinhentos anos.

3.

A ideologia cultural e didática norte-americana se traduziu muito bem para a classe média brasileira. Filhos da ralé, desde o comércio colônia-metrópole, ex-aristocratas portugueses, que vieram ao novo mundo para aproveitarem do paraíso na Terra (como bem descreve Sérgio Buarque). Estes conseguem se pensar como participantes dos mandos e consequências da difusão da cultura norte-americana ao redor do globo.

Acreditam que os norte-americanos os respeitam. Rezam para que haja uma invasão norte-americana, como nos filmes de extra-terrestres. Juram morte àqueles contrários, que ousam amar a nossa cultura, debochando da precariedade, tanto em termos sensíveis quanto sentimentais, da cultura de massa norte-americana. Não se enganem: estes também foram colonizados.

Para combater um vetor tão forte como este, que atropela qualquer força contrária, é preciso de planejamento. Remonto-me à Friedrich Schiller para comentar algo: a Educação estética do homem é imprescindível num mundo feio como o nosso. Reeducar as crianças, tocando MPB, filmes clássicos de cada cultura deste planeta, um bom Rock, um bom Jazz e, principalmente, expulsá-los do meio digital.

A sensibilidade estética foi degringolada. Estudantes de ciências humanas são xingados, ridicularizados, deixados de lado; tratados como maconheiros, ptistas, comunistas, vagabundos. A barbárie no Brasil vem na forma de comentários como estes.

Filósofos deixaram de ter a importância que um dia quase tiveram. Sociólogos, por mais sérios e rigorosos em seus estudos, perdem em termos de visibilidade e alcance público. Economistas só são respeitados se trabalharem para o mercado financeiro e tiverem um diploma numa faculdade norte-americana. Músicos e artistas, tal como os estudantes, também são ostracizados. Não penso que no final da década de 1960 o contexto social era muito diferente. Sinceramente, penso que hoje em dia temos mais ferramentas e instrumentos em nosso arsenal para combater a barbárie.

Recomendar um filme ao seu amigo. Um álbum. Um canal no YouTube que preste. Um documentário bem feito. Uma série que toca em algo profundo. Um livro… como é importante recomendarmos livros. E, concluindo, invoquemos as grandes brasileiras e brasileiros que deixaram sua marca cultural em nosso país. Temos um acervo espetacular de artistas e intelectuais que transformaram a maneira pela qual vemos nosso país, e a nós mesmos.

Há muita coisa boa vinda do exterior. Sou um amante da boa cultura. Daquela que realmente oferece algo ao espírito. Que sempre mantém uma atitude crítica perante a habitualidade da vida. Que nos deixa desconfortáveis, com dúvidas existenciais sobre o sentido de tudo isso que deixamos de experienciar no dia a dia.

Não é um manifesto ufanista. A tarefa da filosofia um dia já foi interpretar o mundo, isso não basta aos dias atuais: precisamos mudá-lo. Voltem suas vontades ao verdadeiramente útil e necessário: o amor ao próximo e a si mesmo. Por hoje é só.

*Bruno Boncompagno é graduando em economia na Facamp.


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