Israel e EUA: o terrorismo como pretexto

Imagem: Khaled Hourani
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por REGINALDO NASSER*

Após os atentados terroristas do dia 11 de setembro Israel aproveitou-se do discurso da Guerra ao Terror para justificar suas ações

Alguns dias após os massacres realizados pelo Hamas em território israelense, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu tratou de fazer aquilo que já era esperado, buscando alguma analogia com os ataques do dia 11 de setembro de 2001 para que pudesse ganhar legitimidade na comunidade internacional. O próprio presidente Joe Biden, em visita a Israel duas semanas após os ataques, declarou que “esses horrores” provocaram na sociedade israelense uma “espécie de sentimento” tal como aconteceu e se sentiu nos EUA.

Nos dois momentos, EUA, Israel e os principais veículos de comunicação no mundo ocidental construíram narrativas que colocavam as histórias dos dois países em paralelo: ambos eram vítimas do terrorismo e, consequentemente, deveriam agir sempre conjuntamente.

Após os atentados terroristas do dia 11 de setembro, o então primeiro-ministro israelense, Ariel Sharon, percebeu que poderia haver uma mudança de paradigma nas ações contra terroristas no mundo e tentou se aproveitar, ao máximo, da situação, convencendo a comunidade internacional de que todas as formas de resistência palestina deveriam ser enquadradas como terrorismo, até mesmo a Autoridade Palestina, liderada por Yasser Arafat. O simples uso da palavra “terror” funcionava como mágica para desumanizar oponentes e justificar quaisquer tipo de ação militar.

Ariel Sharon tentou vender a ideia de que sua guerra com os palestinos era apenas uma outra frente na “guerra global contra o terrorismo”. O triunfo de Ariel Sharon veio quando Bush declarou, em 24 de junho de 2002, que “a paz exige uma liderança palestina nova e diferente, para que um Estado palestino possa nascer” e exigiu que o povo palestino elegesse novos líderes “não comprometidos com o terror”. Desde então, a Autoridade Nacional Palestina, que negociou os acordos de Oslo e que tinha representação diplomática em várias organizações internacionais e em quase todos os países do mundo, passou a ser enfraquecida, sistematicamente, pelos EUA e por seus aliados.

Se Israel pode se aproveitar do discurso da Guerra ao Terror para justificar suas ações, por outro lado procedeu a importantes mudanças no modus operandi dos combates urbanos, influenciando os EUA. Em abril de 2002, houve uma mudança drástica na estratégia das Forças de Defesa Israelenses (IDF) quando foi lançada a Operação Escudo Defensivo, durante a Segunda Intifada, por meio de incursões sucessivas nas seis maiores cidades da Cisjordânia e que resultaram no cerco a Arafat em Ramallah.

A palavra “urbicídio”, utilizada para descrever os massacres e destruição material da infraestrutura básica da vida urbana (casas, escolas, lojas, fábricas, hospitais) durante a Guerra da Bósnia de 1992-95, também passou a ser utilizada para as operações militares israelenses em Gaza e na Cisjordânia a partir de 2002. Um novo modelo de guerra urbana que, por meio do emprego intensivo de armas de alto poder de destruição, passou a afetar integralmente a vida de toda população, criando uma condição de devastação perpétua resultante da extrema dificuldade de reconstruir o que foi destruído. Pode-se dizer, portanto, que o momento atual em Gaza é um desdobramento, levado às últimas consequências, do que se iniciou em 2002.

O uso do 11 de setembro como paradigma de combate a toda e qualquer resistência, vista, a partir de então, como ação terrorista, aparecia como uma necessidade de segurança diante de um “inimigo sórdido e poderoso” capaz de realizar as maiores barbaridades.

Creio que, de forma sutil, um dos membros da equipe jurídica israelense durante a sessão na Corte de Haia deu-nos a pista do que efetivamente está implícito na lógica do genocídio em curso em Gaza. Segundo o jurista, qualquer que seja a ação militar em Gaza “sempre resultará em mortes trágicas, danos e prejuízos” dada as características do território (alta densidade demográfica), e pelas características do inimigo a ser combatido. Numa leitura escatológica, poderíamos dizer que as 29 mil pessoas mortas (11 mil crianças) são o preço a pagar para que a nação israelense se defenda de um inimigo como o Hamas.

Mas há uma outra comparação entre o 11 de setembro e o 7 de outubro que é preciso lembrar. Nos 20 de anos da Guerra Global contra o Terror, os EUA causaram a morte de cerca de 4,5 milhões de pessoas por meio de suas operações militares no Afeganistão, Paquistão, Iraque, Síria, Líbia, Somália e Iêmen, além de deslocar por volta de 59 milhões de pessoas.

Entretanto, como advertiu um analista de um dos mais importantes think-tanks nos EUA, há diferenças significativas entre os contextos do 11 de setembro de 2001 e o Afeganistão e o dia 7 de outubro de 2023, em Gaza. Os EUA poderiam optar pela estratégia de desocupar o Afeganistão, como fizeram vinte anos depois, mas Israel não tem essa opção, pois, em decorrência da geografia, estará para sempre interligado a Gaza.

O analista deveria se perguntar por que 75% dos habitantes de Gaza vieram de cidades que hoje fazem parte do território israelense. Se é verdade que Israel não tem outra opção a não ser ter que “lidar com Gaza”, dizer que o problema é a geografia é mais uma das estratégias para escamotear o fato de que o Estado de Israel foi construído a partir de uma lógica colonial de ocupação e expulsão da população nativa.

A situação de “urbicídio” em Gaza é uma das consequências desse longo processo que se iniciou em 1947 e vai muito além do Hamas. Essa luta por libertação nacional terá fim apenas com criação do Estado Palestino livre e soberano.

*Reginaldo Nasser é professor de Relações Internacionais da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de A luta contra o terrorismo: os Estados Unidos e os amigos talibãs (Editora Contracorrente). [https://amzn.to/46J5chm]

Publicado originalmente no site Opera mundi.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Remy José Fontana Leonardo Avritzer Leda Maria Paulani Boaventura de Sousa Santos Ronald León Núñez Paulo Capel Narvai Tarso Genro Fernão Pessoa Ramos Gerson Almeida Denilson Cordeiro João Paulo Ayub Fonseca João Sette Whitaker Ferreira Chico Alencar Luis Felipe Miguel Francisco Pereira de Farias Alexandre de Lima Castro Tranjan Salem Nasser Carlos Tautz Valerio Arcary Everaldo de Oliveira Andrade Sergio Amadeu da Silveira Mário Maestri André Márcio Neves Soares João Feres Júnior Luiz Roberto Alves José Costa Júnior Antônio Sales Rios Neto Ricardo Fabbrini Henri Acselrad Vinício Carrilho Martinez Vladimir Safatle Luiz Werneck Vianna Marcos Silva Jorge Branco Marilena Chauí Eleutério F. S. Prado Andrés del Río Elias Jabbour Igor Felippe Santos Francisco de Oliveira Barros Júnior Airton Paschoa João Carlos Loebens Manchetômetro Gilberto Lopes Atilio A. Boron Yuri Martins-Fontes Érico Andrade Renato Dagnino Samuel Kilsztajn Bernardo Ricupero Marcos Aurélio da Silva Otaviano Helene Thomas Piketty Ari Marcelo Solon Michel Goulart da Silva Matheus Silveira de Souza Eugênio Trivinho José Raimundo Trindade Paulo Nogueira Batista Jr Paulo Sérgio Pinheiro Heraldo Campos Celso Frederico Marcelo Módolo João Carlos Salles João Lanari Bo Annateresa Fabris Ladislau Dowbor Sandra Bitencourt Michael Löwy Eugênio Bucci Valerio Arcary Plínio de Arruda Sampaio Jr. Carla Teixeira Henry Burnett Andrew Korybko Chico Whitaker Ricardo Musse Antonino Infranca Francisco Fernandes Ladeira Bruno Machado Eliziário Andrade Marjorie C. Marona Claudio Katz Marcus Ianoni Jean Pierre Chauvin Leonardo Sacramento Flávio Aguiar Ricardo Abramovay Daniel Costa Berenice Bento Gabriel Cohn Bento Prado Jr. Caio Bugiato Marilia Pacheco Fiorillo Leonardo Boff Dennis Oliveira Milton Pinheiro André Singer Ronaldo Tadeu de Souza Celso Favaretto Rafael R. Ioris José Micaelson Lacerda Morais Alysson Leandro Mascaro Paulo Fernandes Silveira Luiz Eduardo Soares Jean Marc Von Der Weid Alexandre Aragão de Albuquerque Ricardo Antunes Armando Boito Luciano Nascimento João Adolfo Hansen Lorenzo Vitral Antonio Martins Kátia Gerab Baggio Luiz Marques Walnice Nogueira Galvão Lucas Fiaschetti Estevez Bruno Fabricio Alcebino da Silva Michael Roberts Gilberto Maringoni Dênis de Moraes José Geraldo Couto Luiz Bernardo Pericás Afrânio Catani Benicio Viero Schmidt Julian Rodrigues Eduardo Borges Maria Rita Kehl Jorge Luiz Souto Maior Lincoln Secco Tadeu Valadares Rubens Pinto Lyra Alexandre de Freitas Barbosa Rodrigo de Faria Anselm Jappe Tales Ab'Sáber Ronald Rocha Juarez Guimarães Paulo Martins Eleonora Albano Liszt Vieira Luiz Renato Martins José Luís Fiori Vanderlei Tenório Manuel Domingos Neto Slavoj Žižek Marcelo Guimarães Lima Priscila Figueiredo Flávio R. Kothe Daniel Afonso da Silva Fábio Konder Comparato Luís Fernando Vitagliano Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Mariarosaria Fabris Osvaldo Coggiola José Dirceu José Machado Moita Neto Fernando Nogueira da Costa Daniel Brazil Luiz Carlos Bresser-Pereira

NOVAS PUBLICAÇÕES