Os casos Poze do Rodo e Léo Lins

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Por JOÃO GABRIEL GASPAR BALLESTERO*

Entre a risada e o ritmo, a liberdade de expressão dança no fio da navalha: censurar um é abrir o precedente para calar todos. O verdadeiro debate não é sobre quem fala, mas sobre quem decide quem pode ouvir 

O debate sobre a liberdade de expressão é algo que se arrasta desde, no mínimo, os séculos XVIII e XIX, até os nossos dias – havendo sido posto novamente na “pauta do dia” nos últimos anos, com o fortalecimento, aqui e acolá, de movimentos políticos de extrema direita.

Analisando-se atentamente, porém, as múltiplas conformações desse debate ao longo da história das ideias, salta aos olhos como posições antagônicas acerca da “liberdade de expressão” vão sendo continuamente abraçadas por facções, vejamos só, supostamente antagônicas do espectro político, de modo que, por exemplo, a defesa de uma liberdade de expressão mais irrestrita passa a ser feita, no século XXI, sobretudo por conservadores – enquanto os progressistas, com destaque para aqueles de esquerda, aferram-se ao direito e à moral para justificarem uma liberdade de expressão “menos permissiva” (seja ou não isso possível), em prol de algum tipo de “ordem”.

E mais: esquerda e direita não raro vêm valendo-se dos mesmíssimos argumentos, em casos distintos apenas em aparência, mas semelhantes em essência, de forma cruzada.

Deve-se notar, não obstante, que há, sempre, exceções nessa tendência de posicionar-se de tal ou qual maneira quanto à liberdade de expressão.

Tome-se, por exemplo, do lado dos progressistas, Noam Chomsky[i] e o Partido da Causa Operária, à esquerda, os quais colocam-se a favor de uma liberdade de expressão irrestrita; e, à direita, Amanda Vetorazzo, do Movimento Brasil Livre (MBL) – que está em um meio termo, note-se, entre liberalismo e conservadorismo, vinculando-se ao neoconservadorismo –, a qual oscila entre a defesa de uma liberdade de expressão irrestrita e da censura (a depender do caso), e então ter-se-á um retrato do que queremos dizer.

Isso ocorre também com os conservadores, como se apercebe observando como se posicionam institutos tais como o Novas Ideias em Segurança Pública (NISP) – o qual, ainda que também esteja em um meio termo entre liberalismo e conservadorismo, caracteriza-se pelo maior peso relativo que tem o componente conservador de sua constituição –, que igualmente oscila entre liberdade de expressão irrestrita e censura, a depender do caso.

Os nomes importam aqui. Por “progressismo”, referimo-nos às duas grandes tradições de pensamento político ocidental herdeiras do iluminismo, quais sejam, socialismo e liberalismo, e às correntes políticas delas derivadas (comunismo, socialismo utópico, socialdemocracia, liberalismo igualitário, “esquerda liberal”, libertarianismo etc.).

Por “conservadorismo”, referimo-nos à tradição de pensamento político ocidental nascida em resposta ao iluminismo, para lhe fazer a crítica, e às suas derivadas diretas, como o conservadorismo tradicionalista. Por óbvio, tais termos misturam-se todos entre si, na arena política concreta, por necessidades prático-históricas específicas de cada qual, e, também, por força de processos de decadência ideológica e vulgarização teórica, que se aceleram com os novos meios de comunicação de massa, de modo encontramos correntes políticas tais como o conservadorismo liberal, a “esquerda liberal”, o neoconservadorismo (conservadorismo tradicionalista + libertarianismo) etc., afora a tradicional esquerda socialista revolucionária e outra correntes “puras” de pensamento/prática política.

Com isso em mente, buscaremos neste ensaio explorar criticamente essas sutilezas do debate sobre a liberdade de expressão, centrando-nos, particularmente, na conformação atual do mesmo, valendo-nos, para tanto, dos recentes casos Poze do Rodo e Léo Lins, que evocaram posicionamentos bastante interessantes, de um lado e de outro, de serem analisados.

Ainda, intentaremos sinalizar para a necessidade de se tomar esse interessante fato – grosso modo, esquerda e direita valendo-se, de forma cruzada, dos mesmos argumentos, e tendo posicionamentos semelhantes, quanto a casos iguais em sua essência, ainda que distintos em sua aparência – como objeto de pesquisa no âmbito da história das ideias, uma vez ele dê ensejo, e forneça importantes pistas, para se elabore uma crítica ao mesmo tempo exógena e endógena da “esquerda liberal” atual, por exemplo, em condição de hegêmona no progressismo de esquerda, entendendo-a como a falha histórica de uma tradição de pensamento engendrada no seio de movimentos de contestação social multidimensionais, visando à ruptura para com o status quo.

Não nos interessa aqui, e, portanto, não buscaremos fazê-lo, analisar per se, elaborando um juízo jurídico-filosófico definitivo sobre eles, os casos Poze do Rodo e Léo Lins – queremos, sim, discutir como posicionaram-se certos segmentos à esquerda e à direita da sociedade brasileira sobre esses temas, no intuito de (i) compreender em que medida vêm a ser equivalentes os seus pareceres; e (ii) lançar as bases para trabalhos futuros que, desde uma perspectiva crítica, procedam à pesquisa sobre quê significa, sobretudo para a esquerda, essa equivalência de argumentos, ou, sob outro ponto de vista, quê significa, para a esquerda, a oposição entre os setores hegemônicos de um lado e outro do espectro político dar-se apenas quanto à aparência (ou seja, superfície) dos fenômenos, e não quanto à sua essência.

Para tanto, faz-se necessário advertir que procederemos a uma abstração dos fenômenos analisados aqui de sua dimensão jurídica – que necessariamente deveria ser considerada se se quisesse emitir um juízo definitivo sobre os assuntos em questão, o que não é nosso caso, como já dissemos –, bem como desconsideraremos variáveis outras que aparecem em muitas das opiniões aqui tratadas e que, não obstante, não dizem respeito estritamente à produção artística de Poze (como a sua suposta vinculação ao Comando Vermelo e o seu suposto financiamento por parte de facções criminosas) e de Lins (como suas opiniões e seus posicionamentos políticos pessoais emitidos fora dos palcos), as quais, note-se, acreditamos devem ser levadas em conta em se tratando da emissão de um juízo definitivo sobre o tema (o que, outra vez, não é nosso caso).

Trabalharemos, pois, com os casos Poze do Rodo e Léo Lins estritamente no âmbito do debate sobre liberdade de expressão, e, particularmente, dentro do subdebate sobre liberdade de produção artística.

A primeira parte deste ensaio dedicar-se-á a apresentar os casos Poze do Rodo e Léo Lins em panorâmica, bem como os posicionamentos pró-liberdade de expressão quanto a ambos. Já a segunda parte do mesmo terá por objetivo apresentar os posicionamentos pró-censura quanto aos casos Poze do Rodo e Léo Lins, e fazer um balanço do que fora até então apresentado, indicando o que pode significar – no intuito de ensejar trabalhos futuros nessa linha de pesquisa –, sobretudo para o campo da esquerda, teórica e politicamente, o fenômeno em tela, qual seja, esquerda e direita valendo-se dos mesmos argumentos de forma cruzada, digladiando-se sobre episódios que diferem apenas na superfície.

Os casos Poze do Rodo e Léo Lins

Vivo en un país libre
Cual solamente puede ser libre
En esta tierra, en este instante
Y soy feliz porque soy gigante
Amo a una mujer clara
Que amo y me ama
Sin pedir nada
O casi nada
Que no es lo mismo
Pero es igual
(Silvio Rodriguez, Pequeña serenata diurna)

Diferentes em aparência, os casos Poze do Rodo e Léo Lins, abstraídos de sua dimensão jurídica – donde podem surgir importantes diferenças entre um e outro, advindo daí seu aspecto exterior de duplicidade, na medida em que cada qual se assenta na ocorrência (ou não) de crimes distintos –, revelam-se, uma vez acessados em sua concretude, iguais, ou, ao menos, bastante semelhantes, o que dá no mesmo.

De um lado, o comediante Leonardo de Lima Borges Lins, mais conhecido pelo seu nome artístico, Léo Lins, recentemente foi condenado, em primeira instância, à pena de 8 anos e 3 meses de prisão mais pagamento de multa multimilionária devido ao conteúdo de um dos seus espetáculos de stand-up comedy, “Perturbador”, entendido como ofensivo a diversas minorias sociológicas e, por extensão, promotor de ódio e ensejador/reprodutor/apologético de violência contra as mesmas.

De outro lado, o músico Marlon Brendon Coelho Couto da Silva, mais conhecido pelo seu nome artístico, Poze do Rodo, há alguns meses foi preso preventivamente pela Polícia Civil do Rio de Janeiro por, supostamente, fazer apologia ao crime com as letras de suas canções e por, supostamente, ter envolvimento com facções criminosas cariocas (essa segunda acusação será por nós abstraída, como já indicamos na introdução, até porque, como veremos, os juízos a favor e contrários a Poze em nenhum momento tocam nessa assunto, isso é, as opiniões emitidas por um lado ou outro tratam apenas da acusação de apologia ao crime).

Vê-se, pois, que, em ambos os casos, a questão sobre a mesa não é outra senão a seguinte: “devemos censurar essa obra?” – seja em prol da proteção a minorias sociológicas historicamente aviltadas, mais que qualquer outro grupo, supõe-se, pelas “classes” dominantes; seja em prol da garantia de um futuro digno às nossas crianças e da proteção – concomitantemente – de valores éticos e morais supostamente tradicionais da sociedade brasileira.

Também as defesas feitas a favor dos artistas contra suas censuras mostram-se de mesmo teor: quanto a Léo Lins, argumenta-se que ele (Leonardo) é, quando sobre o palco, uma persona teatral (Léo) que, visando a fazer as pessoas rirem – afinal, ele é o protagonista de um espetáculo de comédia –, vale-se (essa seria, precisamente, sua “marca registrada”) do que comumente se chama de “humor negro”, incluídas aí piadas que envolvam sexo, raça, deficiências físicas, regionalismos, características físicas “fora da norma”, episódios de violência (física ou simbólica; sexual; preconceituosa por conta de gênero, cor, etnia, sexualidade, origem, condição social, características físicas; etc.), enfim, piadas de “mau gosto” de modo geral, exatamente para fazer as pessoas rirem, e nada demais.

Ou seja, Leonardo desempenharia um papel muito claro enquanto artista de comédia de humor negro, e não poderia ser responsabilizado enquanto indivíduo pelo que representa/encena sobre um palco, em um figurino, encarnando a personagem “Léo Lins”, que é, precisamente, o meio porque se dá a entrega dessas piadas de humor negro (demandadas, ademais, por um público específico e restrito, e que não raro faz parte das minorias “zuadas” por Lins).

Além disso, aqueles que defendem Léo Lins comumente argumentam que, se se deve censurar e responsabilizar criminalmente um artista porque sua obra potencialmente pode se vincular a uma cadeia de ações que finda em um ato de violência efetivamente levado a cabo, por exemplo, contra minorias sociológicas – as quais, note-se, tentariam impor sua visão de mundo “politicamente correta” à sociedade –, de modo a piada envolvendo tais minorias poderia causar (ou, no mínimo, ensejar) episódios de agressão contra essas mesmas minorias, abrir-se-ia então um precedente autoritário perigoso, pois longuíssimas e apenas conjecturais são tais cadeia de ações,[ii] e permitir-se-ia ao Estado e seus agentes a definição das mesmas, o que necessariamente só poderia ser feito arbitrariamente.

Já quanto a Poze do Rodo, argumenta-se que ele (Marlon) é, quando sobre o palco ou em seus videoclipes, uma persona teatral (Poze) que busca, em suas músicas, apresentar uma perspectiva de mundo sua própria, desde o lugar de onde vem (Favela do Rodo), compartilhada por significativa – a despeito de marginalizada e sociologicamente minorizada – parcela da sociedade brasileira.

Nesse sentido, as canções de Poze do Rodo seriam apenas um retrato do Brasil, que, porém, causa espanto e revolta, porque não trate esse retrato da cara consentida do país, que as elites nacionais permitem e querem seja vista; ou seja, a obra de Poze, marcada pelo linguajar “sujo”/de rua, cheio de gírias, pela mostra de luxo e promiscuidade, pela referência a crimes, drogas, armas, sexo etc., mas, também, por digressões religiosas e meritocráticas, que, nostálgica e otimisticamente, tratam da ascensão social e do “sucesso” devidos ao esforço individual, à boa-fé, à honestidade (“firmeza”), à ajuda da comunidade (“parceria”) e a bênçãos divinas recebidas, seria toda ela uma representação da realidade, em todo o peso de sua concretude, tal como ela se apresenta a Poze e aos seus.

Querer censurar Marlon e prendê-lo, pelo conteúdo da sua obra, enquanto encarnando o personagem Poze do Rodo, tratar-se-ia de uma reação conservadora, por parte das elites brasileiras, ciosas dos seus privilégios, frente à representação e consequente revelação de uma realidade do país que essas mesmas elites quereriam, a todo custo, deixar oculta, e frente à ruptura que a ascensão social de Poze e de tantos outros MCs representa para com uma norma tácita de hierarquização social com base na raça, que subsistiria no seio da sociedade brasileira.

A seguir, exploraremos os argumentos mobilizados por partidos políticos, pensadores e veículos de mídia da esquerda e da direita para se oporem ou para defenderem, de forma cruzada, aos artistas Léo Lins e Poze do Rodo, quanto à censura de suas respectivas obras e sua responsabilização criminal pelo seu conteúdo supostamente apologético e/ou ensejador de crimes.

Argumentos pró-liberdade de expressão

A favor da liberdade de expressão de Léo Lins e Poze do Rodo no âmbito das suas produções artísticas, temos argumentos bastante semelhantes à esquerda e à direita.

À direita, consideremos, por exemplo, o posicionamento, quanto ao caso Léo Lins, do advogado André Marsiglia para o portal web do instituto neoconservador Brasil Paralelo: “Se o humor tem a intenção de ser arte ou de criar um discurso ficcional, e se alguém que sobe ao palco busca expressar-se, isso não deveria ser considerado ofensivo, mesmo que alguém se sinta ofendido. Afinal, sempre haverá pessoas que se sentirão ofendidas por qualquer coisa que seja dita”.

Ou, ainda para o Brasil Paralelo, tomemos à vista os seguintes comentários feitos por João “Rasta” Nogueira, em um vídeo disponibilizado no canal de YouTube do instituto, sobre o caso Léo Lins:

“Ou ela [a liberdade de expressão] é um direito absoluto, ou ela não é direito nenhum. Ela é no máximo uma concessão pontual que um burocrata faz a você. (…) Essa galera esquece que o Estado é uma besta sem dono fixo. O bastão do poder muda de mão que nem a tua namoradinha praticante da não-monogamia ética (sic). A regra que hoje cala o inimigo amanhã pode calar você. (…) A sentença [de primeira instancia, que condenou Léo Lins a 8 anos e 3 meses de prisão e multa] ignora que o material [cortes do espetáculo de stan-up comedy “Perturbador”] era parte de uma apresentação artística, né (…) apagar vídeo, limitar deslocamento e censurar piada com base no gosto subjetivo é coisa de regime autoritário”.

Ambos os pensadores conservadores citados acima parecem defender, ao menos ao analisarem o caso Léo Lins, uma liberdade de expressão e, por extensão, de produção artística irrestrita, dando destaque à ideia de que seria “errado” conceder ao Estado ou a uma parcela da população – o que, ao fim e ao cabo, dá no mesmo – o direito de definir o que é ou não humor, ou do que se pode ou não rir, restringindo-o, então, para todos.

E o “errado” explica-se pelo entendimento de que a apreciação de piadas, quaisquer sejam seus conteúdos, não pode ser entendida senão como algo intrínseca e necessariamente subjetivo, de modo delegá-lo a um grupo ou ao Estado, para a censura de dada formas de exercício do riso, é recair numa tirania, seja da maioria, seja da minoria, seja do Estado (autoritarismo).

Amanda Vetorazzo, vereadora na cidade de São Paulo pelo partido União Brasil e coordenadora-nacional do Movimento Brasil Livre (MBL), comentando o caso Léo Lins – veremos que, quanto ao caso Poze do Rodo, até porque ela é autora do Projeto de Lei Anti-Oruam na câmara de São Paulo, sua opinião será outra – nas redes sociais, posicionou-se na mesma linha. Segundo ela, “o posicionamento de artistas como o Fábio [Porchat] e outros [que defenderam Léo Lins contra a sua condenação] é importante justamente por isso: reconhecer que todo tipo de humor é válido, e que não é o estado que deve ditar o limite da arte”.

Cabe ainda, à direita, comentar o posicionamento do Partido Novo quanto ao caso Léo Lins: criticando a condenação em seu portal web, o Novo reforçou sua opinião de que “Piadas de mau gosto devem ser combatidas com crítica e consciência, não com prisão”, a qual já havia sido expressa quando da votação do Projeto de Lei (PL) que daria luz à Lei 14.532/23 – apelidada de Lei Anti-Piadas –, a qual foi, exatamente, utilizada no caso Léo Lins, para determinar, ali, que houve a prática de crime, e para calcular sua pena consequente. Combatido, no plenário, somente pelo Partido Novo, deste PL advém o agravante à pena dos crimes de racismo/injúria racial quando tais delitos dão-se de forma ou em ambiente “recreativos”, como em partidas esportivas e apresentações artísticas.

Para o Novo, então, abriu-se aí um precedente perigoso para a liberdade de expressão de modo geral, no Brasil, pois o legislador não especificou como deve ser interpretada, exatamente, a Lei 14.532/2023, pelo que a censura de/a responsabilização criminal por falas consideradas racistas ou injuriosas passa a depender, “simplesmente”, da interpretação do magistrado, ou seja, passa a depender de um juízo subjetivo. O caso Léo Lins, pois, aos olhos do Novo, não passa de um triste resultado (já esperado) daquela legislação, que abriu brecha à censura arbitrária da produção artística no país.

Por fim, trazemos a opinião do Partido da Causa Operária (PCO), de extrema esquerda, antes pela sua importância no âmbito da esquerda – por ser talvez o único partido, aí, a defender uma liberdade de expressão irrestrita – do que propriamente pelo seu conteúdo.

Segundo o PCO, em seu portal web: “A condenação de Leo Lins à prisão é um exemplo claro do autoritarismo da ditadura judicial no Brasil. O judiciário, em sua ânsia por controlar a vida social e impor uma política conservadora de censura sob o pretexto de “combater o ódio”, ultrapassa seus limites e ataca direitos democráticos básicos. A liberdade de expressão, incluindo o direito de fazer piadas, mesmo as mais ácidas ou controversas, é um termômetro da saúde democrática de um país”.

Ainda, trazendo à tona o velho (e, não obstante, ainda potente, como se pode ver) argumento liberal clássico de que se não se quer que alguma opinião circule pela sociedade, a última coisa que se deve fazer é censurá-la, pois isso apenas contribui para a sua difusão, o PCO, novamente em sua página na internet, diz que: “Tais fatos servem para demonstrar que a perseguição judicial a Léo Lins, condenado por contar piadas, surtiu o efeito contrário da política de censura: aumentou a popularidade do humorista. (…) O aumento da popularidade de Léo Lins após ter sido perseguido e condenado à prisão por contar piadas mostra que a política repressiva não só é inútil no combate à extrema-direita, mas também é um tiro no pé para a esquerda que apoia essa política, pois acaba ficando vinculada a ela, permitindo que a extrema-direita atraia o povo, pois este rejeita a censura e demais formas de repressão”.

Já quanto ao caso Poze do Rodo, a defesa da liberdade de expressão vem acompanhada pele referência a processos sociais tais como a “criminalização das culturas periféricas”, os quais constituiriam, enquanto vinculados ao racismo, a causa principal dos ataques a Poze. Partindo daí, a pesquisadora de funk Narie Bento, por exemplo, em entrevista ao canal de YouTube de esquerda Farol Brasil, diz que “O rap, o funk retrata a realidade, né? Qual é a realidade dessa juventude? Qual é a realidade que o Estado propõe pra essa juventude? Não quer que cante facção? Éh, muda a realidade! É muito simples, né?”

Para concluir, é interessante façamos referência ao posicionamento do criminalista Herbert Freitas, no X, sobre os casos Léo Lins e Poze do Rodo, uma vez ele haja resolvido a dialética a qual estamos aqui cultivando (esquerda e direita valendo-se, de forma cruzada, dos mesmos argumentos) para quasi-defender – quasi, porque querendo antes mostrar a incongruência dos defensores da censura, de um lado e de outro, do que emitir um juízo definitivo sobre o tema, qual nós, neste artigo – a ambos no âmbito do debate sobre a liberdade de expressão.

Para ele, que critica a um lado e outro da discussão por não sustentarem verdadeiramente (até o limite) suas opiniões, “estão dizendo que o que o Poze faz é apologia pelo o que ele fez no palco. Se vale para ele, vale para o Leo Lins, que também falou o que eu mencionei no palco. Não há como fugir disso”.

Particularmente sobre a prisão de Lins, diz Freitas que “a decisão não consegue vencer o fato de que artistas são intérpretes e que é muito perigoso deixar a cargo de cada juiz definir se o que é dito ou escrito por um ator, cantor, humorista, etc teve o propósito de ofender ou se trata apenas de interpretação”.

*João Gabriel Gaspar Ballestero é graduando em Relações Internacionais na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Notas


[i] “I do not think that the state ought to have the right to determine the historical truth and to punish people who deviate. I’m not willing to give the state that right (…). But i’m saying: if you believe in freedom of speech, you believe in freedom of speech for views you don’t like. Goebbels was in favor of freedom of speech for views he liked. So was Stalin. If you’re in favor of freedom of speech that means you’re in favor of freedom of speech precisely for views you despise – otherwise you’re not in favor of freedom of speech. It’s two positions you can have on freedom of speech. Now you can decide which position you want.”, defende Noam Chomsky (6:33 – 07:05).

[ii] Agradeço a Alexandre Meyer Luz por este insight.


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