Por JÚLIO FISHERMAN*
O desafio final não é apenas descansar mais, mas resgatar o tempo e o sentido da atividade humana, interrompendo a espiral de moer a vida para multiplicar capital
“[O trabalho] não está limitado ao tempo físico efetivo na fábrica ou no escritório. O trabalho transpõe qualquer limite atribuído ao tempo de trabalho, ele mobiliza a personalidade por inteiro” (Christophe Dejours, Trabalho vivo).
1.
O campo do trabalho na sociedade capitalista está cindido em inumeráveis ofícios de gente sobrecarregada que, assumindo grandes riscos, custosos sacrifícios, sofrimentos e adoecimentos, sustentam a febre, a fissura, a compulsão, pela multiplicação incessante e insensível do capital, vulgo, grana.
É comum que os que vão adquirir um frango congelado, um leite de soja numa gôndola de supermercado, ou a gasolina com benzeno num posto de combustíveis, já não deem mais conta da existência desta densa paisagem poluída: a brutalidade presente nas relações trabalhistas.
O dinheiro opera uma mágica: a produção é consumida sem que se leve em conta as atividades das quais decorrem, tudo é visto apenas em seu estado final. Há um efeito estufa social de imensas implicações como que invisibilizado por sua naturalizada onipresença.
Ademais, e ao mesmo tempo, o trabalho não deixou completamente de ser fonte de realização e distribuir algum reconhecimento (esse capaz de subverter o próprio sofrimento), o que revela algum grau de suspiro experimentado no reino de seu estranhamento.
Mas o trabalho alienado/estranhado é desastre e a luta por sua abolição é a principal e decisiva batalha pela superação da sociedade capitalista. Como Marx apontou e defendeu, embora boa parte da própria esquerda marxista nunca tenha tirado daí as maiores implicações: suplantar a sociedade capitalista passa rigorosamente pela superação do trabalho estranhado.
Nesse sentido, embora cada dia aparentemente mais improvável, a disputa cidadã, de todos os que vivem do próprio suor e não do suor alheio, deve exigir e alcançar uma drástica redução da jornada de trabalho máxima para toda e qualquer pessoa. Se necessário: de modo compulsório.
Convém então o parêntese: o atual debate sobre o fim da escala 6×1 no Brasil expressa um sinal de vitalidade política no interior do campo do trabalho. A crítica a esse modelo, que garante apenas um dia de descanso por semana, ganha força justamente por tornar visível o desgaste sistemático a que milhões de trabalhadores estão submetidos.
Deve-se reconhecer o mérito da mobilização e o alcance da proposta: trata-se de tensionar o pacto tácito de exaustão que sustenta o funcionamento da economia. Ainda assim, é preciso dizer que se trata de uma reivindicação mínima, que apenas toca a superfície do problema estrutural da superexploração e do estranhamento.
2.
A emancipação só irá se construir com uma redução muito mais drástica. E trabalhar além dessa jornada muito mais reduzida, deve ser considerado “coisificação da pessoa” e direito indisponível. Assim como hoje é tratado o trabalho escravo e análogo a escravo: que se criem mecanismos para prevenir e combater as práticas em contrário. E, ironia, com todos trabalhando menos, algum emprego sempre existiria para todos, diferente da massa de desempregados e precarizados que hoje se avoluma.
E mesmo isso, no entanto, ainda não resolveria tudo. É, por outro lado, uma pauta nítida, absolutamente fundamental e já no radar do desejo comum! É do interesse do(a) trabalhador(a), que é gente, que possa trabalhar menos e possa viver mais e melhor! (E com viver mais e melhor, não está a se referir à mediocridade da longevidade, indicador limitado e sacrossanto com o qual os liberais alegam que a vida hoje é melhor que nunca.)
Por ser uma sociedade mediada pelo trabalho estranhado – fonte do valor das mercadorias e de tudo que se torna mercadoria, garrote impessoal e coercitivo diante do qual todos se curvam sem saber quem enfrentar – é que justamente quando imensos potenciais produtivos, socialmente constituídos, já poderiam libertar Adão do suor de seu pecado e Sísifo de seu suplício, que cresce a exigência para que todos se convertam em máquinas de rentabilidade e: trabalho!
Gente é então convertida em dínamos de uma dita luta pela sobrevivência que não é outra coisa senão um movimento cego de competição. Como também o pouco lido Marx anotou: ingressando numa espiral de destrutividade! Afinal, também o planeta é explorado. Absolutamente invulnerável às ideologias legitimadoras, no entanto, aponta seus limites.
A vitória da pauta pelo fim da escala 6×1, quando alcançada, terá valor prático e pedagógico. Será um marco a ser comemorado por afirmar mais direito ao tempo e à recomposição do corpo e da convivência social, elementos quase extintos nas rotinas marcadas pelo esgotamento. Mas não se deve perder de vista que esse passo, embora necessário, ainda se move dentro da moldura do trabalho alienado.
A luta não se esgota em descansar dois dias em vez de um: trata-se de interrogar o próprio lugar do trabalho na vida, seus ritmos impostos e seus sentidos expropriados. O que está em jogo, afinal, é mais que alívio: é emancipação e mudança do metabolismo humano e com a natureza.
O desafio é interromper o movimento contínuo e incessante de moer o viver para acumular e multiplicar riqueza destituída de qualquer propósito sensível. É afirmar os caminhos para uma (con)vivência socialmente saudável e autenticamente sustentável. Conquistas que jamais serão viáveis nos marcos do capitalismo, metabolismo que achata o pensamento e reprime a sensibilidade já que estranha da atividade humana sua vitalidade por destituí-la de implicação com o viver.
*Júlio Fisherman é jornalista. Graduado em comunicação pela Universidade de Brasília (UnB).
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA





















