O escândalo da PEC dos precatórios

Imagem: Anthony Macajone
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por JOSÉ DIRCEU*

PEC desmonta o Bolsa Família para criar um auxílio eleitoreiro e adota a compra de votos aberta para assegurar sua aprovação

O país se move sempre na direção contrária ao rumo que deveria seguir. A cada decisão e operação política do governo Bolsonaro, as perspectivas para 2022 e para o futuro se tornam piores. Nada ficará de pé e o próximo governo terá que ter como prioridade zero a reconstrução nacional.

A PEC dos Precatórios é um exemplo cabal desse processo de caminhar na contramão, de destruir boas políticas públicas para substituí-las sempre por algo bem pior ou simplesmente pelo vazio. A PEC dos Precatórios enterra um programa social, o Bolsa Família, não apenas bem-sucedido como aclamado em todo o mundo como exemplo de política social com retorno comprovado – inclusive no estímulo ao crescimento econômico, à distribuição de renda e ao incentivo ao estudo. A educação é o maior desafio do Brasil nos próximos 10 anos. O país precisa passar por uma revolução educacional, científica e tecnológica.

O mais grave é que se destrói um programa social sério e consequente com objetivo meramente eleitoral exposto às claras. E nenhuma autoridade toma atitude, como se fosse natural um presidente em fim de mandato começar a desmontar todo e qualquer arcabouço legal, como é o caso da garantia líquida e certa de cumprimento de decisão judicial (o que não nos isenta de exigir transparência e fazer uma auditoria nessa questão dos precatórios oriundos de decisões judiciais).

O vale tudo explícito e a compra de votos aberta para aprovar a PEC – em 1º turno foi aprovada na Câmara por 312 a 144, ou 4 votos a mais que o quórum constitucional –deixam para o Senado a difícil missão de impedir um arranjo eleitoreiro nocivo aos interesses do país. E também revelam o tamanho da hipocrisia e inviabilidade do chamado “teto de gastos”, agora desmoralizado – até o TCU e seu criador Michel Temer reconhecem a necessidade de sua revisão.

O que está sendo feito é um desmonte social, fiscal e tributário que, repito, deixa uma herança maldita para o próximo governo. No lugar de um programa contínuo e com recursos garantidos, que deveria se transformar em algo mais amplo e com mais recursos, o que é óbvio em tempos de recessão, alta inflação, desemprego e aumento da pobreza, da miséria e da fome, temos um auxílio eleitoreiro que acaba em 2022. Sem previsão orçamentária, por exemplo, para a vacinação no ano que vem e repleto de adendos irrealizáveis.

Do lado dos precatórios, cria-se uma bola de neve de dívidas que os próximos governos terão que arcar dentro de um arcabouço institucional impossível de cumprir de teto de gastos, regra de ouro e independência do BC. A isso se soma o custo da alta de juros e o aumento do serviço da dívida pública – pode crescer R$ 360 bilhões com inflação e juros altos. Veremos como é uma falsa discussão a de que não temos recursos orçamentários para o Bolsa Família. Sem falar no aumento da arrecadação pela alta dos preços em geral e dos serviços administrados, combustíveis, energia e telecomunicações.

Nada de reforma tributária, afora o fracasso da proposta de mudanças no Imposto de Renda – precisamos é de um Imposto de Renda progressivo e não o arremedo que temos hoje que se apropria da renda do trabalho e isenta a renda dos 1% de brasileiros que ficam com 28% da renda nacional –, a recusa absoluta em taxar as grandes heranças e fortunas, e as centenas de bilhões de reais escondidos em paraísos fiscais sob a proteção legal de uma legislação permissiva. Nem pensar em cobrar impostos da distribuição de lucros e dividendos ou mesmo por fim a parte importante das renúncias fiscais que mais parecem doações de recursos públicos.

O que estamos assistindo é um amontoado de medidas casuísticas e eleitoreiras – no caso dos precatórios, ainda bem, com risco de serem declaradas inconstitucionais pelo STF, até porque já existem decisões nesse sentido –, um orçamento irreal para 2022 e uma única certeza: se a PEC for aprovada como está, o governo e a maioria do Congresso empurram o país para um precipício, dado o alto risco de entrarmos num ciclo de estagflação. Se isso acontecer, serão exigidas amplas reformas estruturais para fazer frente a esse desafio e às mudanças geopolíticas, climáticas – como a COP 26 apontou – e tecnológicas que, decididamente, nem este governo e, infelizmente, nem a maioria de nossos partidos e congressista parece estar à altura.

Mais uma vez quem dará a palavra final será o povo brasileiro, como o fez em momentos em que tudo parecia perdido. Pelo voto soberano, livre e secreto, o povo disse não às nossas elites que tinham nos conduzido pelos descaminhos do autoritarismo e da renúncia à soberania e ao interesse nacional.

*José Dirceu foi ministro da Casa Civil no primeiro governo Lula. Autor, entre outros livros, de Memórias (Geração editorial).

Publicado originalmente no site Poder360.

 

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Os véus de Maya
Por OTÁVIO A. FILHO: Entre Platão e as fake news, a verdade se esconde sob véus tecidos por séculos. Maya – palavra hindu que fala das ilusões – nos ensina: a ilusão é parte do jogo, e desconfiar é o primeiro passo para enxergar além das sombras que chamamos de realidade
Régis Bonvicino (1955-2025)
Por TALES AB’SÁBER: Homenagem ao poeta recém-falecido
Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
A fragilidade financeira dos EUA
Por THOMAS PIKETTY: Assim como o padrão-ouro e o colonialismo ruíram sob o peso de suas próprias contradições, o excepcionalismo do dólar também chegará ao fim. A questão não é se, mas como: será por meio de uma transição coordenada ou de uma crise que deixará cicatrizes ainda mais profundas na economia global?
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Síndrome da apatia
Por JOÃO LANARI BO: Comentário sobre o filme dirigido por Alexandros Avranas, em exibição nos cinemas.
O ateliê de Claude Monet
Por AFRÂNIO CATANI: Comentário sobre o livro de Jean-Philippe Toussaint
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Donald Trump ataca o Brasil
Por VALERIO ARCARY: A resposta do Brasil à ofensiva de Trump deve ser firme e pública, conscientizando o povo sobre os perigos crescentes no cenário internacional
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES