A bancada da ciência

Imagem: Aideal Hwa
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Por DIEGO RABELO*

Diante do obscurantismo, a mobilização digital por ciência revela um eleitorado ávido por evidências. Transformar esse capital cultural em poder político é o passo urgente para resgatar o debate público das trevas e recolocá-lo nos trilhos da razão e do desenvolvimento

Em um país onde teorias da conspiração ganham espaço no Congresso e onde negacionismo científico se disfarça de debate legítimo, é natural que surja a pergunta: por que não temos uma bancada da ciência na Câmara dos Deputados? A ideia pode parecer utópica, mas os números mostram que há um público ávido por discussões científicas no Brasil. A popularidade de divulgadores científicos nas redes sociais é a prova de que existe demanda por conteúdo baseado em evidências.

Não sei exatamente quando tive essa ideia. Pode ter sido em algum momento de cansaço, desses que nos atingem quando vemos mais uma notícia de que alguém decidiu que vacinas são desnecessárias, que a Terra é plana ou que chips foram implantados por governos invisíveis para nos controlar. Provavelmente a fagulha veio num grupo de WhatsApp.

Não daqueles grupos familiares típicos, como o do tio do pavê ou do parente evangélico que prega o apocalipse todos os domingos – mas sim de um grupo de ex-colegas da escola, uns dez membros. Três deles se tornaram verdadeiras caricaturas contemporâneas: um defensor fervoroso da cloroquina e do tratamento precoce durante a pandemia; outro fanático religioso que, como todo picareta da fé, rejeita qualquer evidência científica e fala sobre a infalibilidade dos escritos bíblicos, fatalmente tendo que sustentar a sua tese ao ser confrontado se acredita que Eva foi feita da costela de Adão; e um terceiro que é liberal até o talo, embora viva de mesada dos pais mesmo depois dos 40 anos.

O mais pitoresco é o servidor público do Rio de Janeiro que defende com fervor o Estado mínimo – mas, ironicamente, desfruta com gosto do conforto, da estabilidade e do contracheque mensal providos pelo mesmo Estado que ele diz que gostaria de desmontar. É o mesmo que parece acreditar que Eva veio da costela de Adão. Um picareta da fé econômica, digamos assim…

Como lembra o historiador João Cezar de Castro Rocha, que vem se dedicando ao estudo do bolsonarismo, muitos dos que hoje se comportam como extremistas foram capturados por uma maquinaria discursiva altamente sofisticada, impulsionada por algoritmos das big techs. Ele os chama de “extremistas afetivos”, sujeitos que não necessariamente são ruins em essência, mas que tiveram suas emoções sequestradas por uma lógica de guerra cultural permanente.

É preciso, portanto, distinguir entre os operadores do sistema e os capturados por ele – e oferecer caminhos de retorno ao diálogo, à ciência, à democracia. Foi numa dessas discussões surreais, entre memes e deboches, que talvez eu tenha vislumbrado o seguinte pensamento: e se existisse uma bancada da ciência na Câmara dos Deputados? Um grupo com algo entre 50 e 200 parlamentares comprometidos com evidências, com o método científico, com o debate público racional?

Um devaneio, claro.

Mas em uma dessas madrugadas insone, me ocorreu de twittar algo nesse sentido para o professor Miguel Nicolelis, por quem nutro sincera admiração. Escrevi: “Às vezes, no silêncio da noite… eu fico imaginando você liderando uma bancada da ciência com uns 200 deputados”. Ele respondeu com uma ironia resignada: “Eu não duraria cinco minutos lá”. E essa resposta, ainda que melancólica, alimentou este texto.

Não é exagero dizer que vivemos tempos sombrios. O Brasil experimentou, nos últimos anos, um retrocesso no debate público ancorado no obscurantismo. Retornamos a pautas que julgávamos superadas: vacinação em massa virou disputa ideológica; o formato da Terra voltou ao debate; e a negação da ciência tornou-se bandeira política. No entanto, os desafios sociais, econômicos e ambientais continuam exigindo respostas baseadas em evidências. Como nota, pensei lembrando de José Galizia Tundisi, “a Ciência deve voltar-se para a solução de problemas brasileiros e o desenvolvimento do sistema produtivo nacional”.

Esse chamado não é novo. Desde a década de 1940, o Brasil tem se estruturado institucionalmente para promover a ciência como vetor de desenvolvimento. Iniciativas como a criação do CNPq, da Capes, da Finep, da Embrapa e do Ministério da Ciência e Tecnologia mostram que há uma história sólida de aposta na pesquisa científica.

Mas falta representatividade política. Falta voz. Partidos de esquerda como PT, PCdoB, PV, Rede, PSOL e PSB têm, em maior ou menor medida, dado espaço para agendas científicas em suas plataformas. Historicamente ligados à defesa da educação pública, do SUS, das Universidades e dos Institutos Federais, esses partidos foram protagonistas na criação de marcos regulatórios para ciência, tecnologia e inovação.

Foram governos do PT que mais investiram em programas ou os criaram como o Ciência sem Fronteiras e a interiorização da educação superior, e que incentivaram a construção de ministérios dedicados à área. Mesmo no campo do “centro democrático” – representado por partidos (ou figuras em partidos) como o PSDB ou o PSD, dentre outros – houve momentos de valorização institucional da ciência. Governos estaduais tucanos, por exemplo, foram responsáveis por fomentar agências como a Fapesp, que se tornou uma referência internacional em financiamento científico.

O próprio PSD, apesar de sua heterogeneidade, abriga quadros técnicos que reconhecem a importância da inovação para o desenvolvimento. O desafio, contudo, está em transformar esses compromissos difusos em uma frente articulada e programática, que vá além do discurso genérico em favor da “educação” ou da “tecnologia”.

O potencial para isso existe. Um dos maiores obstáculos talvez seja justamente a fragmentação do campo progressista e científico, que não consegue se unificar em torno de uma pauta concreta de representação parlamentar. A bancada da ciência não precisa ser uma utopia; ela pode ser o resultado de uma articulação entre universidades, institutos de pesquisa, divulgadores científicos e setores da sociedade civil.

Os partidos que já se alinham com uma visão desenvolvimentista, ambientalista e democrática têm muito a ganhar ao abraçar essa pauta como estruturante. Afinal, como mostra a popularidade dos maiores divulgadores científicos nas redes sociais, existe sim uma base popular disposta a defender a ciência como valor e como prática.

Os números impressionam: Manual do Mundo, o maior divulgador científico do país, soma mais de 24 milhões de seguidores entre Instagram, TikTok e YouTube. Pedro Loos (Ciência Todo Dia) e Sérgio Sacani (SpaceToday) juntos ultrapassam 10 milhões de seguidores, mostrando o interesse por física e astronomia. Atila Iamarino, virologista e um dos principais nomes da pandemia, tem quase dois milhões de inscritos no YouTube (sem contar o canal Nerdologia).

O melhor disso, não precisam ser identificados com a “revolução socialista” ou mesmo o “comunismo” que nas redes sociais são tratados mais como espantalhos para interditar o debate. Aliás, Sérgio Sacani diz ser de direita e isso não me parece ser nem de longe um problema, em que pese as bobagens que ele costuma dizer quando se mete a falar sobre o que não entende.

O público da ciência no Brasil

Antes de discutir a possibilidade de uma bancada da ciência, é preciso responder a uma pergunta fundamental: existe mesmo um público interessado no tema? A resposta está na popularidade dos maiores divulgadores científicos brasileiros.

A tabela abaixo reúne os 20 maiores influenciadores de ciência do Brasil, com seus respectivos seguidores e áreas de atuação:

Top 20 Divulgadores Científicos do Brasil

NomeInstagram (IG)TikTokYouTubeEstadoIdade (aprox.)Área / Tipologia da Ciência
Manual do Mundo (Iberê Thenório)2,4M3,5M18,7MSP44Ciências gerais / Experimentos
Pedro Loos (Ciência Todo Dia)1,8M1,6M5,3MRS26Física / Astronomia
Sérgio Sacani (SpaceToday)2,0M2,0MPR52Astronomia
Atila Iamarino (Nerdologia)300k1,5M (pessoal) / 2M (Nerdologia)SP40Biologia / Virologia
Nunca vi 1 Cientista768k286kSP30-35Química / Divulgação geral
Henrique Charles1,3MN/DN/DRJ30Biologia
Alessandro Binow1,57MN/DN/DSC35Astronomia
Aquelas Curiosidades1,49MSPN/DCuriosidades científicas
Realidade Simulada1,1MN/DN/DSPN/DFísica / Simulações
Sciencesetfree1,4MSPN/DFísica / Filosofia da ciência
Pido Biologia924kMG30Biologia
Eco Up886kSPN/DSustentabilidade / Ecologia
Filosofia Líquida2,2MSP30Filosofia / Ciências humanas
Biomesquita1,58MBA40Biologia / Ecologia
BlablálogiaN/D500kSP30Ciência geral / Humor
Seja Uma Pessoa Melhor (Felipe Rossi)1,9MSP35Odontologia / Saúde
Juliana Estradioto300k100kRS24Química / Educação científica
Natalia Pasternak250kSP47Microbiologia / Ceticismo científico

Esses dados revelam que milhões de brasileiros consomem ciência diariamente, seja em formatos didáticos, seja em discussões aprofundadas. Se há tanta gente interessada no tema, por que a política nacional ainda é dominada por negacionistas e obscurantistas?

A ciência no Congresso – um vazio a ser preenchido

O Brasil já teve momentos de maior valorização da ciência na política. A criação do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCTI), os investimentos em pesquisa durante os governos petistas e o papel de agências como a Fapesp mostram que há uma estrutura institucional que poderia ser fortalecida.

Nos últimos anos, temos presenciado cortes orçamentários drásticos em universidades e institutos de pesquisa, além de ataques à vacinação e à ciência durante a pandemia. Também surgiram projetos de lei baseados em pseudociência, como a defesa da “cura gay” ou do terraplanismo, acompanhados da instrumentalização da fé por líderes inescrupulosos. Esses aproveitadores, diante da ausência do Estado e da falta de políticas públicas que integrem os cidadãos no sistema produtivo nacional, acabam por excluí-los e escravizá-los, tornando-os dependentes de um discurso pseudospiritual que lhes suga não apenas o espírito, mas também seus últimos recursos financeiros.

Enquanto isso, países como Alemanha, Canadá e Coreia do Sul têm parlamentares com formação científica atuando diretamente na elaboração de políticas públicas. Por que não seguimos esse exemplo?

A ideia de uma bancada da ciência não é absurda. Alguns passos poderiam torná-la realidade: (i) Articulação entre universidades e partidos – Pesquisadores e divulgadores poderiam se aproximar de partidos com histórico de defesa da educação (PT, PSOL, REDE, PSB, PcdoB, dentre outros). (ii) Uma estratégia eficaz são as campanhas de conscientização, nas quais divulgadores científicos utilizam sua influência para pressionar candidatos a adotarem políticas baseadas em evidências. Além disso, muitos desses divulgadores, devido à sua visibilidade e credibilidade conquistadas na internet, podem se tornar candidatos eles mesmos, levando para a esfera política a defesa da ciência, da educação e do pensamento crítico. Dessa forma, além de mobilizar a opinião pública, eles têm a oportunidade de transformar o discurso científico em ação política direta.

(iii) O financiamento coletivo pode ser uma ferramenta poderosa e acessível para apoiar candidaturas de cientistas e professores comprometidos com a ciência e a educação. Plataformas como Catarse, Vakinha, Apoia.se e Benfeitoria permitem que a sociedade contribua de forma transparente, com doações acessíveis, fortalecendo campanhas sem depender de grandes doadores corporativos. Como esses candidatos geralmente têm uma base engajada incluindo acadêmicos, estudantes e apoiadores da ciência –, campanhas bem estruturadas podem viralizar, especialmente com o uso estratégico das redes sociais.

Além disso, a credibilidade desses profissionais tende a inspirar confiança nos doadores, facilitando a arrecadação. Assim, o financiamento coletivo não só democratiza o apoio político, mas também fortalece candidaturas alinhadas com evidências científicas e interesses públicos. O maior obstáculo não é a falta de interesse popular, mas a fragmentação política e a falta de união entre os próprios cientistas. Se os milhões de seguidores de canais como Manual do Mundo e Ciência Todo Dia se mobilizassem, seria possível eleger uma bancada significativa.

Os números não mentem: há espaço para uma bancada da ciência no Brasil. O desafio é transformar o engajamento digital em ação política. Se queremos um país que valorize a educação, a pesquisa e o pensamento crítico, precisamos ocupar os espaços de poder.

Mas talvez Nicolelis tenha razão. Talvez um cientista como ele não durasse cinco minutos na Câmara. Talvez a política brasileira ainda não esteja pronta para uma bancada da ciência. Mas e se, em vez de esperar que a política mude, a ciência decidisse ocupá-la? E se, em vez de devaneios noturnos, essa ideia virasse um projeto real? Afinal, como diria o próprio Nicolelis em uma de suas palestras: “O impossível só leva um pouco mais de tempo”. E o Brasil já esperou demais.

*Diego Rabelo é professor do Departamento de Museologia Conservação e Restauro da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

Referência

Tundisi, J. G. (2023). Ciência e Desenvolvimento no Brasil.

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