O espelho da República

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Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR*

O espelho da República não reflete uma mera disputa de poder, mas o colapso do pacto fundacional de 1988 ante a ressurgência de um arranjo oligárquico que sempre soube instrumentalizar o povo como massa de manobra, nunca como sujeito soberano

1.

O 7 de Setembro de 2025 será lembrado como um dia em que a República olhou para si mesma no espelho e hesitou. As imagens das avenidas Paulista e Atlântica tomadas por cerca de quarenta mil pessoas, bandeiras verde-amarelas hasteadas, gritos de “anistia já” e cartazes atacando o Supremo Tribunal Federal, são mais que registro jornalístico. São sintoma de um país que se encontra novamente na encruzilhada entre aprofundar a democracia ou ceder a soluções de força.

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, discursou diante da multidão, acusando ministros do STF de agirem como “tirânicos” e anunciando que não cumprirá decisões que considere inconstitucionais. Ao seu lado, Romeu Zema e Cláudio Castro transformaram o ato em palco de aliança política entre os três estados mais poderosos da federação. Não se tratava apenas de comício: foi demonstração de força, recado explícito às instituições e ensaio para 2026.

No mesmo dia, manifestações convocadas pela esquerda reuniram pouco mais de oito mil pessoas na cidade de São Paulo, em clima defensivo, reiterando a defesa da democracia e das instituições. A disparidade é eloquente: a direita mostrou capacidade de mobilização superior, hegemonizou o espaço público e se apresentou como voz de uma indignação nacional.

A história da República ajuda a compreender o alcance deste gesto. Desde 1889, o país vive sob o signo da exclusão política e da modernização conservadora. A proclamação foi um golpe militar que afastou a monarquia, mas não ampliou a cidadania: a Constituição de 1891 manteve analfabetos fora do voto e deixou o poder nas mãos das oligarquias regionais (BRASIL, 1891).

Como sublinha Francisco de Oliveira (2013), a razão dualista do capitalismo brasileiro integrou e excluiu simultaneamente: criou polos dinâmicos de acumulação e manteve vastas áreas de marginalidade social. O povo foi convocado às ruas apenas como massa de manobra, nunca como sujeito soberano. A Primeira República era um pacto de elites para garantir exportação de café, controle dos fluxos financeiros e estabilidade do latifúndio.

2.

A Revolução de 1930 rompeu o pacto oligárquico, mas não destruiu a máquina de exclusão: apenas a tornou mais eficiente. Getúlio Vargas centralizou o poder, criou o Ministério da Educação e Saúde, instituiu a legislação trabalhista e expandiu o ensino técnico, mas subordinou os sindicatos ao Estado. Florestan Fernandes (2006) classificou esse processo como “revolução passiva”: transformações profundas realizadas de cima para baixo, sem participação popular autônoma.

Durante o Estado Novo, o 7 de Setembro foi convertido em ritual cívico-militar, com desfiles que exaltavam a unidade nacional e silenciavam dissenso. Os anos de 1946 a 1964 representaram respiro democrático, mas insuficiente para resolver a questão agrária e as desigualdades. A radicalização das reformas de base, somada à Guerra Fria, precipitou o golpe de 1964, que reinstaurou o padrão de controle das classes subalternas e alinhou o país ao capital internacional.

O regime militar promoveu modernização capitalista e dependência financeira: abriu o país ao capital estrangeiro, endividou-se em dólar e transformou a universidade em aparelho técnico de formação de mão de obra para o chamado “milagre econômico”. Houve crescimento, mas com concentração de renda e repressão. A abertura lenta e gradual e a Constituição de 1988 pareciam inaugurar nova era de direitos, mas o pacto resultante foi marcado pelo presidencialismo de coalizão e pela manutenção da dependência externa.

O ciclo lulista (2003-2016) ampliou o consumo popular, criou programas sociais como Bolsa Família e expandiu as universidades federais. Mas o crescimento se apoiou no boom das commodities e no aumento da arrecadação fiscal, sem enfrentar a regressividade tributária ou o peso da dívida pública (MARINI, 2011). Quando a economia desacelerou, o pacto se rompeu. As Jornadas de Junho de 2013 revelaram a insatisfação de uma juventude que já não se via representada.

Os protestos pelo impeachment de Dilma Rousseff (2015-2016) mostraram que a direita aprendera a ocupar as ruas. A prisão de Lula e a eleição de Jair Bolsonaro em 2018 consolidaram o deslocamento do eixo político para a extrema-direita. O 8 de janeiro de 2023, com a invasão das sedes dos Três Poderes, foi o ápice da tentativa de ruptura institucional.

O ato de 2025 insere-se nesta sequência, mas inaugura fase nova. Pela primeira vez desde a redemocratização, governadores de estados-chave se colocaram frontalmente contra o STF, recusando-se a acatar ordens. Não é apenas retórica: é desafio federativo, que testa os limites da Constituição. A sociologia das ruas também se transformou. Os manifestantes são majoritariamente brancos, de classe média, proprietários de pequenos negócios, autônomos e profissionais liberais.

O ethos é o da “gente de bem” que se sente injustiçada por políticas fiscais, insegurança e perda de status. Igrejas neopentecostais fornecem enquadramento moral; redes sociais funcionam como veículos de mobilização. A direita tornou-se hábil em produzir narrativa de resistência, apresentando o STF como inimigo da liberdade.

A esquerda enfrenta dificuldades para responder. Os sindicatos foram enfraquecidos pela reforma trabalhista, os partidos disputam protagonismo e as universidades enfrentam cortes e assédio ideológico. Mesmo quando chama atos em defesa da democracia, não consegue mobilizar para além de sua base tradicional. O discurso da defesa do Estado de Direito soa abstrato para quem enfrenta fome, desemprego ou violência policial. A democracia precisa ser sentida como algo que melhora a vida material, caso contrário vira apenas palavra de ordem.

3.

Os desdobramentos possíveis são três. O primeiro é a escalada de confronto. Se o STF adotar medidas cautelares contra Tarcísio ou outros líderes, a direita responderá com atos maiores e possivelmente violência. O ciclo de ação e reação pode levar a um novo 8 de janeiro, desta vez mais organizado.

Há risco de bloqueios de estradas, paralisação de setores produtivos, enfrentamento com forças policiais leais ao governo federal. Experiências internacionais mostram o perigo desse caminho: nos Estados Unidos, cada indiciamento de Donald Trump fortaleceu sua base; na Espanha, o Vox explora o sentimento de perseguição judicial; na Argentina, Javier Milei convoca atos para pressionar Congresso e Suprema Corte. Se o Brasil seguir essa trilha, pode ver crescer uma direita ainda mais coesa, que transformará 2026 num plebiscito contra o STF.

O segundo cenário é o pacto de apaziguamento. O Congresso pode aprovar anistia parcial, o STF modular penas e os governadores recuar. Essa saída traria trégua temporária, aliviaria tensões e agradaria ao mercado, que valoriza previsibilidade. Mas o preço simbólico é alto: legitima a tentativa de golpe e cria incentivo para novas aventuras autoritárias. A anistia de 1979 foi celebrada como passo para a democracia, mas deixou crimes impunes. Um pacto agora poderia esvaziar a pedagogia republicana, reforçando a percepção de que as instituições cedem à pressão de massas.

O terceiro cenário é a crise federativa. Se governadores de outros estados aderirem à desobediência, a União será forçada a reagir, possivelmente com intervenção federal. Isso exigiria maioria no Congresso e apoio das Forças Armadas, algo incerto. A crise poderia se agravar com prefeitos e polícias militares aderindo à insubordinação.

O resultado seria paralisia administrativa e fragmentação da autoridade estatal, algo comparável apenas à Revolução de 1932, mas em escala nacional. Os desfechos possíveis são a centralização autoritária — um “Estado Novo digital”, com controle de redes e repressão ampliada — ou a fragmentação, com estados adquirindo autonomia de fato, acirrando desigualdades regionais.

Esses cenários não são mutuamente excludentes. Uma escalada pode levar a pacto forçado; um pacto mal desenhado pode ser rompido e precipitar crise federativa. O que se vê é o esgotamento do pacto de 1988: a Constituição já não consegue conter as tensões de uma sociedade polarizada, financeirizada e mediada por algoritmos. A democracia precisa se reinventar, ou será corroída por dentro.

4.

A esquerda tem papel crucial nessa reinvenção. Precisa voltar às ruas, mas não apenas para reagir — deve apresentar projeto de país que combine soberania, inclusão social e democracia participativa. É hora de reconectar universidade e periferia, formar novos quadros, disputar o imaginário popular. Sem esperança concreta, a população será capturada pelo discurso da ordem autoritária.

As elites também têm escolha. Podem apostar na ruptura, como em 1964, ou sustentar a institucionalidade mesmo que isso signifique aceitar decisões judiciais desfavoráveis e conviver com governos de outro espectro ideológico. O empresariado precisa entender que a instabilidade política custa caro: afasta investimentos, desvaloriza o real, aumenta juros. A mídia tem papel pedagógico fundamental: precisa sair da posição de mera narradora para explicar o valor da democracia.

O 7 de Setembro de 2025 é, portanto, espelho e aviso. Mostra que a extrema-direita mantém vigor, que a esquerda perdeu capacidade de mobilização e que as instituições estão em teste de estresse. A pergunta é se o país quer continuar refém de conciliações que adiam conflitos ou se deseja afirmar uma República de princípios, na qual ninguém está acima da lei. Não é apenas decisão do STF ou do Congresso — é escolha da sociedade.

Se aceitarmos a apatia, entregaremos o futuro a quem grita mais alto. Se escolhermos protagonismo, poderemos reconstruir a democracia sobre bases mais sólidas. Talvez este seja o último chamado antes que a democracia se torne apenas lembrança em livros de história. O dever é mover a sociedade, convocar reflexão, despertar esperança. Este é o desafio que cabe à nossa geração: decidir se seremos espectadores ou autores de um novo capítulo da República.

*João dos Reis Silva Júnior é professor titular do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Autor, entre outros livros, de Educação, sociedade de classes e reformas universitárias (Autores Associados) [https://amzn.to/4fLXTKP]


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