A conferência de Bandung

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Por PENILDON SILVA FILHO*

Setenta anos depois, os princípios de Bandung ressurgem nos BRICS e na multipolaridade: como a luta anticolonial do século XX ecoa no tabuleiro geopolítico atual, desafiando a hegemonia ocidental

Em 2025 comemoramos os 70 anos da Conferência de Bandung, na Indonésia, um marco na geopolítica e nas ações dos países em processo de descolonização, de fortalecimento de sua autonomia e soberania e de construção de uma lógica pós-neocolonial. Hoje essa lógica ameaça decisivamente a lógica imperial, no que podemos denominar de “Ecos de Bandung”.

A gênese do sistema mundial moderno

A consolidação dos Estados nacionais na Europa, por volta do século XIV, foi acompanhada por um processo de expansão marítima e colonialismo que permitiu a acumulação primitiva de capital. Este processo, fundamental para a posterior Revolução Industrial, foi marcado pela violência extrema: o genocídio de populações indígenas nas Américas, a destruição de civilizações complexas (astecas, incas, maias), a escravização de indígenas e africanos. Esses foram pilares fundantes da economia mercantilista europeia, e o colonialismo e o neocolonialismo estão na sustentação do sistema capitalista.

A independência formal das nações latino-americanas no século XIX não rompeu com as estruturas de dependência. O caso do Brasil é emblemático: a manutenção de uma monarquia ligada à coroa portuguesa, a economia agroexportadora escravista e a substituição de Portugal pela Inglaterra como potência hegemônica ilustram a transição para uma relação neocolonial. Esta relação foi consolidada pela Doutrina Monroe, que estabeleceu a hegemonia dos EUA no hemisfério através do controle econômico e de intervenções militares e políticas sobre os países da América Latina.

Paralelamente, o neocolonialismo do século XIX manifestou-se de diversas maneiras, dentre elas na invasão e no saque da África e da Ásia. A Conferência de Berlim (1884-1885), da qual nenhum representante africano participou, estabeleceu o princípio da “ocupação efetiva” europeia, legitimando a conquista militar e a exploração econômica do continente.

Na Ásia, o “Século da Humilhação” chinês (1839-1949) exemplifica a subjugação por múltiplas potências (Reino Unido, França, Japão, Rússia, Alemanha, EUA), que impuseram tratados desiguais, concessões territoriais e esferas de influência.

A conferência de Bandung

Realizada em 1955, a Conferência de Bandung reuniu 29 países recentemente independentes da Ásia e África. Seu principal legado foi a articulação de uma agenda comum anticolonial e a proclamação dos “Dez Princípios de Bandung”, que se tornaram a base filosófica e política do Movimento dos Não-Alinhados.

Esses princípios eram: (i) Respeito pelos direitos fundamentais do homem e para os fins e princípios da Carta das Nações Unidas. (ii) Respeito pela soberania e integridade territorial de todas as nações. (iii) Reconhecimento da igualdade de todas as raças e de todas as nações, grandes e pequenas. (iv) Abstenção de intervenções ou ingerências nos assuntos internos de outro país. (v) Respeito pelo direito de cada nação de defender-se, individual ou coletivamente, em conformidade com a Carta das Nações Unidas.

(vi) Abstenção de participação em acordos de defesa coletiva destinados a servir aos interesses particulares das grandes potências. Abstenção por parte de qualquer país de exercer pressões sobre outros países. (vii) Refutar-se de todo ato ou ameaça de agressão ou do emprego da força contra a integridade territorial ou independência política de qualquer país.

(viii) Solução de todos os conflitos internacionais por meios pacíficos, tais como negociações, conciliação, arbitragem ou composição perante tribunais, assim como outros meios pacíficos, à escolha das partes, em conformidade com a Carta das Nações Unidas. (ix) Estímulo aos interesses mútuos de cooperação. (x) Respeito pela justiça e obrigações internacionais.

A Conferência de Bandung foi um marco simbólico enorme. Pela primeira vez, nações há pouco tempo colonizadas se reuniram sozinhas, sem a presença de suas antigas metrópoles, para definir uma agenda comum e uma voz independente no cenário mundial. Ela pavimentou o caminho para a criação formal do Movimento dos Não-Alinhados em 1961 e representou o nascimento político do “Terceiro Mundo”, não alinhado nem com a OTAN (EUA) nem com o Pacto de Varsóvia (URSS).

Ecos de Bandung no século XXI

O fim da Guerra Fria e a breve unipolaridade norte-americana, marcada pela ideologia do “fim da história”, foram contestados no século XXI pela emergência de novos polos de poder. Podemos considerar essa nova fase em que a Humanidade adentra como uma fase dos “Ecos de Bandung”. A ascensão econômica e política da China, a reestabilização da Rússia, o crescimento da Índia e a onda de governos progressistas na América Latina (Venezuela, Brasil, Argentina, Bolívia, Uruguai, Chile, México e outros) reconfiguraram o cenário global.

Neste contexto, surgiram instituições que ecoam os princípios de Bandung. Os BRICS,bloco econômico que promove a cooperação Sul-Sul, o multilateralismo e o desenvolvimento sem as condicionalidades austeras do FMI, reuniu primeiramente Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, sendo que hoje foi expandido para o BRICS+ e tem dezenas de países associados.

O Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), sob a liderança de Dilma Rousseff, simboliza esta nova arquitetura financeira e a busca pela superação das instituições resultantes do tratado de Bretton Woods, que estabeleceu o dólar como moeda do comércio internacional, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM) como instituições que regulavam e ditavam a agenda econômica e financeira internacional.

A Organização de Cooperação de Xangai (OCX)é outra organização que é herdeira de Bandung, e foca na segurança e cooperação regional, respeitando a soberania e não-interferência, e hoje se torna uma plataforma de cooperação econômica muito forte, a partir do projeto One Belt, One Road.

Tanto o BRICS quanto a OCX adotam posições comuns em questões como a condenação da interferência em assuntos internos de outros países, a busca da cooperação econômica, a resolução de conflitos por meios pacíficos, o que são “ecos de Bandung”.

A política de invasão, ocupação e desestabilização no Iraque, os ataques ao Irã, a contínua desestabilização do Oriente Médio pelos Estados Unidos e Israel, a tentativa de anexação da Ucrânia pela Otan, o que ocasionou o conflito na região com a Rússia, assim como a longa ocupação do Afeganistão, o financiamento da oposição Síria que destruiu aquele país, e do mesmo modo a destruição armada do regime líbio são estratégias da potência decadente (EUA) para comprometer o processo de integração da região pela Nova Rota da Seda e outras iniciativas.

A crítica do Norte Global de que os países do Sul Global seriam um “clube de autocratas”, onde muitos dos seus membros supostamente teriam regimes autoritários e procurariam suprimir a dissidência política interna cai por terra com o genocídio contra os palestinos em Gaza, as perseguições contra universidades e intelectuais nos Estados Unidos, as sanções contra o Brasil para defender de forma escancarada o grupo golpista de 8 de janeiro de 2023, atacando a soberania brasileira.

Fica claro também que o conflito na Ucrânia não termina apenas para manter uma pressão contra a Rússia e dar escoamento aos armamentos da OTAN, garantindo a produção da indústria bélica do Norte Global.

Estes blocos, BRICS e OCX, não procuram replicar um modelo ideológico único (socialista ou capitalista), o que os diferencia de blocos da época da Guerra Fria. Eles respeitam os regimes internos na Economia e na Política, mas defendem uma ordem multipolar baseada no direito internacional, na autodeterminação dos povos e na cooperação económica mutuamente benéfica.

Conclusão

A Conferência de Bandung não foi um evento isolado, mas um momento culminante de séculos de resistência anticolonial. Seus princípios de não-alinhamento, autodeterminação e cooperação continuam a ressoar na atual reconfiguração geopolítica. Compreender Bandung é, portanto, essencial para decifrar os desafios e possibilidades da ordem global do século XXI.

Estamos com a possibilidade de criar uma ordem de concertação mundial, onde o desenvolvimento de um grupo de nações não precise depender da exploração de outras. Esse empreendimento é complexo e não trivial para ser construído, mas as bases para o mesmo passam pelo fortalecimento e pelo aprofundamento da dinâmica dos BRICS, da OCX e de outras instituições regionais na busca por um desenvolvimento de outra ordem.

A progressiva consciência dos povos e seu protagonismo na arena internacional, com Estados fortes que representem nações e não mais aglomerados econômicos, pode indicar um caminho de inclusão social, sustentabilidade, equidade, dignidade humana, respeito à diversidade e ao pluralismo.

Nessa concertação de países soberanos, os desafios da transformação radical do mundo do trabalho, que pode gerar a exclusão e miséria de milhões ou a ascensão social de todos; a necessidade de uma transição energética e socioecológica e de um mundo de paz dependerão necessariamente da construção de novos valores e culturas. Dependerão de uma relação de integração no campo da educação, da ciência, das trocas simbólicas e civilizacionais, e não apenas econômicas.

O papel das Universidades nesse mundo em disputa, e da cultura e das artes se fazem mais do que estratégicos, assim como a integração pela ciência para a sustentabilidade do planeta. Por outro lado, os riscos de guerra se intensificam, pois justamente num momento de declínio de impérios podem se sobrepor ações desesperadas no sentido de impedir a mudança da ordem global.

*Penildon Silva Filho é professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA).


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