Surgimento do preconceito contra banqueiros

Wols (Alfred Otto Wolfgang Schulze), sem título (tempo_dinheiro), 1988.
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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

A Igreja no século XIII não se contentou em prometer ao usurário o inferno, ela incentivava o calote pelos cristãos

Jacques Le Goff, no livro A Idade Média e o dinheiro: ensaio de uma antropologia histórica, publicado em 2014, narra: até o século XIII, no quadro reduzido das necessidades da época, as instituições monásticas eram as emprestadoras para os camponeses. Depois, quando o emprego do dinheiro se urbanizou, os judeus puderam desempenhar um demandado papel de emprestadores.

Os judeus, mantidos fora da agricultura, acharam em certos ofícios urbanos, como a medicina, uma fonte de rendimentos para sobreviver. Emprestavam a sobra de renda, a pedido, para cristãos urbanos sem fortuna e demandantes de crédito.

Segundo a Bíblia e o Antigo Testamento, o empréstimo a juro era, em princípio, proibido entre cristãos, por um lado, e judeus, por outro, mas autorizado se fosse de judeus para cristãos e vice-versa. Logo, os judeus já no século XII e principalmente no XIII foram substituídos pelos cristãos. Eles foram expulsos de grande parte dessa Europa na Idade das Trevas: da Inglaterra em 1290, da França em 1306, depois definitivamente em 1394, da Espanha em 1492, de Portugal em 1496.

A imagem do judeu como “homem de dinheiro” nasceu não da realidade dos fatos, apesar da existência de emprestadores judeus com pequenos prazos e grandes juros. Nasceu sim de uma discriminação religiosa, prenunciando o antissemitismo do século XIX e o nazi-fascismo do século XX.

O empréstimo fazia-se acompanhar do pagamento de um juro por parte do devedor para cobrir o custo de oportunidade do credor. O cinismo era a Igreja proibir qualquer credor cristão cobrar esse juro de um devedor cristão, mas não de outras religiões.

A Igreja no século XIII não se contentou em prometer ao usurário o inferno, ela incentivava o calote pelos cristãos, caso não necessitassem de mais empréstimos ou não quisessem pagar o devido. Nasceu desde então a classificação da sociedade pela Igreja medieval em três gêneros de humanos: os que rezam, os que combatem e os que trabalham.

O diabo teria criado uma quarta categoria: os usurários. Sem participarem do trabalho dos homens, seriam castigados como demônios pela Inquisição católica. Detalhe: os judeus não tinham terras e tampouco eram aceitos como lavradores…

Jack Weatherford, no livro A história do dinheiro, publicado em 1999, narra o empréstimo de dinheiro, de uma forma ou de outra, ser conhecido desde quando o dinheiro existe, mas o banco tornou-se algo mais além de ser uma instituição de empréstimo. Os banqueiros não negociavam muito com ouro e prata, mas sim com escrituras em papéis comprovantes de representar reservas em ouro e prata.

A atividade bancária enfrentava uma grande limitação porque a Igreja proibia a usura, ou seja, a cobrança de juros sobre os empréstimos. Essa barreira foi um dos maiores obstáculos para as famílias italianas das Cidades-Estados pré-Renascimento superar e construir suas redes de filiais bancárias em outros países.

A proibição cristã da usura baseava-se em duas passagens da Bíblia. Uma era: “Não cobrarás dela juros nem usura; Antes, teme o teu Deus […] Não lhe cobrarás juros pelo dinheiro e pela comida lhe emprestada” (Levítico, 25:36-37)”. Outra era: “um filho […] usurário não viverá. Por cometer essas coisas más, ele morrerá e seu sangue cairá sobre ele” (Ezequiel, 18:13). Credo! Creio em deus-padre…

A proibição bíblica nunca erradicou totalmente a usura, mas a dificultou. Os judeus tinham a oportunidade de agir como agiotas, pois aos olhos da Igreja Católica já estavam mesmos condenados ao fogo eterno. Em lugar deles, se os cristãos emprestassem dinheiro a juros, para os irmãos crentes, a Igreja Católica os excomungava, excluindo-os de todos os serviços religiosos e da sagrada comunhão.

A lei estabelecia muito especificamente: quidquid sorti accedit, usura est (“qualquer excesso sobre a quantia devida é usura”). Mas os banqueiros italianos encontraram uma maneira de contornar essa proibição e enriquecer sem arriscar suas almas não serem aceitas no prometido paraíso.

A usura aplicava-se apenas a empréstimos, portanto, por meio de uma sutil diferença técnica entre um empréstimo e um contrato de compartilhamento de risco, os mercadores italianos forjaram toda uma rede de empréstimos por trás de uma fachada sem mostrar nenhum sinal de usura. Evitavam, escrupulosamente, os “endividamentos” e, em vez disso, negociavam letras de câmbio.

Uma letra de câmbio era um documento escrito com previsão do pagamento de uma determinada quantia em dinheiro a uma determinada pessoa em uma determinada data e local. O nome latino para este documento, ainda segundo Jack Weatherford, é cambium per letras. Significava “mudança através de documentos ou cartas escritas”.

A transação era a venda de um tipo de dinheiro por outro tipo, pago ao indivíduo em outra moeda, em alguma “data próxima e já especificada” e determinado local. Por exemplo, um comerciante necessitado de dinheiro procurava um banqueiro na Itália. O banqueiro entregava-lhe o dinheiro em espécie, em florins ou ducados venezianos, e ambas as partes assinavam a letra de câmbio pela qual o mercador concordava em pagar uma quantia um pouco mais alta, em outra moeda, na próxima feira de Lyon ou Champagne na França.

O comerciante não necessitava ir pessoalmente à feira para pagar a conta. Ambas as partes sabiam: se o comerciante não aparecesse na feira, o escritório de Florença cobraria o valor devido.

Esse “me engane que eu gosto” se alterou pouco no mundo muçulmano, onde o Alcorão proibia a usura de forma mais estrita e definitiva em comparação à Bíblia. Proibia qualquer tipo de lucro obtido na troca de ouro e prata entre pessoas.

Muhammad teria dito: “Não troque ouro por ouro, exceto em quantidades iguais […], nem prata por prata, exceto em quantidades iguais”. O Alcorão proibiu especificamente as letras de câmbio, condenando a troca de “nada presente pelo ainda ausente”.

Nas práticas financeiras islâmicas, ao se buscar alternativas a cobrança de juros, trocaram a ideia clássica de juros cobrir o custo de oportunidade de um possuidor de dinheiro transferir seu usufruto lucrativo para um empreendedor. Apresentaram a operação como fosse uma parceria ou associação em um empreendimento com risco. A partir dessa ideia, islâmicos organizaram um sistema financeiro sem juros.

Nesse sistema alternativo, a cobrança de juros seria substituída por combinações de sociedades ou consórcios chamados mudarabah. Apresentam-nos como “um contrato de consorciação (parceria) entre capital e trabalho, isto é, entre duas partes, sendo um ou mais proprietários do capital ou financistas […] e um empresário investidor”.

Acrescenta: “O lucro será distribuído entre as duas partes consoante uma proporção pré-determinada, acordada no momento de formação do contrato”. E ainda detalha os riscos: “a perda financeira recairá apenas sobre os financistas”, enquanto “a perda do empresário está em não receber qualquer recompensa por seus serviços”.

Curiosamente, os monarcas espanhóis pagaram por seus pecados em perseguição ou intolerância religiosa. Exacerbaram a crise financeira ao expulsar judeus e muçulmanos em 1492, quando Isabella e Fernando unificaram o país e Colombo fez sua primeira viagem às Américas.

A maioria dos espanhóis cristãos trabalhava como fazendeiros, cultivando trigo e azeitonas e criando vacas e cabras, senão viravam soldados. Quer fossem soldados ou camponeses, tinham pouca instrução e não sabiam ler nem escrever, tampouco sabiam operar com números.

Os judeus e os árabes formavam a classe culta de administradores e comerciantes. Sem eles, os espanhóis se mostraram altamente ineficazes na gestão de seus negócios financeiros e comerciais.

Comerciantes italianos, agiotas alemães e fabricantes holandeses, oportunisticamente, se moveram para preencher o vácuo mercantil, deixado pela expulsão de judeus e árabes. Depois, todos levaram seus lucros de volta para seus respectivos países.

Na ausência de uma classe mercantil nativa do lugar, os galegos – bem como os lusos, cuja Inquisição também perseguiu os judeus –, não tiveram escolha a não ser observar passivamente como a sua prata e o seu ouro, expropriados das colônias das Américas, passavam direto de suas mãos para os cofres de outras nações cristãs (ou anglicana) da Europa. Que dó… o castigo pela intolerância religiosa obscura.

A descoberta da grande riqueza das Américas teve um impacto muito mais imediato na vida das pessoas comuns em vez do provocado pela revolução bancária. Esta aumentou a quantidade de dinheiro em circulação e incorporou os comerciantes de toda a Europa Ocidental em um único sistema comercial e financeiro, mas o aumento das moedas de prata em circulação incorporou as classes menos favorecidas ao sistema.

Segundo Jack Weatherford (1999), “os ofícios tradicionalmente dependentes do dinheiro – soldado, pintor, músico e preceptor – concentravam-se ainda mais no pagamento do serviço e menos na prática de trocá-lo por outros serviços, como pensão completa ou rações de pão, álcool ou sal. Mesmo prostitutas e hospedeiros ficaram cada vez mais relutantes em aceitar produtos e mercadorias como pagamento. Todos queriam moedas de ouro ou pelo menos prata”.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP).


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