A tríplice revolução chinesa – parte 2

Imagem: Polina Kuzovkova
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Por CHENG ENFU & YANG JUN*

Para além da tomada inicial do Estado, a revolução se sustenta na capacidade de adaptação — uma dança estratégica entre a força e a persuasão, o visível e o oculto, que define a sobrevivência do projeto socialista no século XXI

A conquista revolucionária do poder

1.

A primeira ação necessária para levar a revolução até o fim é “a derrubada do poder vigente e a dissolução das antigas relações”.[1] O objetivo principal e a questão central consistem em tomar e consolidar o poder político; caso contrário, o socialismo não pode ser estabelecido. Quanto à China, a fundação da República Popular marca uma vitória decisiva do nosso partido na conquista revolucionária do poder.

Contudo, o fracasso da Comuna de Paris e a restauração do sistema capitalista na União Soviética são motivos de séria reflexão. Mesmo após a tomada do poder, o PCCh continuará enfrentando, ainda por muito tempo, os problemas de garantir a segurança do sistema e a segurança ideológica, assim como a possibilidade de que as forças burguesas retomem o poder.

Portanto, a conquista revolucionária do poder permanece incompleta: “de certa forma, uma restauração temporária também é um fenômeno recorrente e difícil de ser evitado por completo”.[2] Do ponto de vista nacional, “a classe exploradora, enquanto classe, foi eliminada; mas a luta de classes continuará existindo por um longo tempo, dentro de certos limites”.[3]

Quanto aos fatores internacionais, forças hostis do Ocidente intensificam sua luta de classes nas esferas política e militar, recorrendo a métodos de “revolução colorida” para ocidentalizar e dividir a China. Os Estados Unidos e seus aliados consideram a China como sua principal concorrente ou “maior inimiga”, e, sob a bandeira de um suposto reequilíbrio de poder na região da Ásia-Pacífico, procuram restringir integralmente o desenvolvimento pacífico da China nas áreas da ciência, da tecnologia e em outras mais.

Em suma, o sistema socialista, após a tomada do poder, invariavelmente se vê confrontado pelas contradições e conflitos entre a subversão e a antissubversão, entre a evolução e a antievolução, além disso, suas correspondentes lutas podem até se intensificar em determinadas condições. Para defender os frutos da vitória revolucionária, devemos consolidar ainda mais a nova ordem política, por meio da construção econômica, política, cultural, social e de defesa nacional socialistas. Uma vez que a Conquista Revolucionária do Poder tenha sido alcançada, esses elementos constituem o conteúdo vital do poder do Estado.

Globalmente, além dos Estados socialistas – chamados de “um grande e quatro pequenos”, em referência à China, Coreia do Norte, Cuba, Vietnã e Laos –, os partidos comunistas na maioria dos países continuam seus incansáveis esforços para derrubar a velha ordem e estabelecer o novo poder político. No entanto, a influência do socialismo mundial ainda é pequena quando comparada à do capitalismo, e o socialismo permanece na defensiva em todo lugar.

A tarefa global representada pela conquista revolucionária do poder ainda enfrenta obstáculos gigantescos. Em meio à crescente globalização, o objetivo estratégico de tomar e depois defender o poder do Estado exige que os partidos comunistas da maioria dos países empreguem estratégias revolucionárias adequadas e demonstrem um elevado grau de flexibilidade, a fim de responder a situações que mudam rapidamente. Somente assim a classe trabalhadora mundial, e o povo trabalhador em geral, poderão garantir uma verdadeira vitória na conquista revolucionária do poder.

 2.

O caminho revolucionário exige o uso flexível dos conceitos de “tomada violenta do poder” e de “assunção pacífica do poder”. Na prática, os países socialistas que garantiram a vitória inicial da Conquista Revolucionária do Poder vieram a controlar o poder político por meio da revolução violenta. Uma certa corrente da opinião pública considera a revolução violenta em termos absolutos, como o único meio pelo qual o poder político pode ser tomado, equiparando-a, assim, à conquista revolucionária do poder.

Marx de fato afirmou que os objetivos dos comunistas “só podem ser alcançados pela derrubada forçada de todas as condições sociais existentes”.[4] No entanto, embora Karl Marx e Friedrich Engels tenham declarado que “o proletariado não pode conquistar o poder político (…) sem uma revolução violenta”, Marx também observou que “onde a propaganda e o encorajamento pacíficos puderem alcançar esse objetivo de forma mais rápida e com mais segurança, realizar uma insurreição é loucura”.[5]

Em 1886, no prefácio à versão de língua inglesa do primeiro volume de O capital, Engels escreveu sobre Marx: “Deverá ser ouvida a voz de um homem cuja teoria é, toda ela, resultado de uma vida inteira de estudos da história econômica e da situação da Inglaterra, tendo concluído, desses estudos, que, pelo menos na Europa, a Inglaterra é o único país onde a inevitável revolução social poderá realizar-se inteiramente por meios pacíficos e legais. Por certo, nunca se esqueceu de acrescentar ser pouco provável que as classes dominantes inglesas se submetessem a essa revolução pacífica e legal sem uma rebelião pró-escravatura”.[6][i]

Além disso, em sua carta para Richard Fisher, de 8 de março de 1895, Friedrich Engels advertia: “Em minha visão, você não tem nada a ganhar defendendo a total abstenção do uso da força”.[7] Pode-se perceber que os conceitos de “tomada violenta do poder” e “assunção pacífica do poder” devem ser utilizados com flexibilidade. Nos últimos vinte anos, o PCCh tem fornecido um modelo de uso flexível desses dois métodos para assegurar a vitória na conquista revolucionária do poder.

3.

Resultados revolucionários exigem o uso flexível dos conceitos de “luta aberta” e de “luta clandestina”. Os partidos comunistas do mundo, em sua grande maioria, encontram-se hoje legalmente estabelecidos como partidos de oposição aos partidos burgueses que governam seus respectivos países. Com o advento da globalização, dasociedade da informação e da sociedade emrede, a densidade das comunicações humanas foi imensamente ampliada.

Se o regime burguês monopolista não recorrer à política totalitária e à repressão violenta, e se as estratégias dos partidos políticos da classe trabalhadora estiverem corretas, estes partidos poderão expandir sua militância e influência mais rapidamente e de forma ampla. Mas, na verdade, sempre houve a necessidade de duas frentes de luta.

Como escreveu Mao, “além do trabalho aberto, é preciso trabalho secreto para respaldá-lo”.[7] Especialmente quando os Estados capitalistas estão empenhados em destruir a organização do partido comunista, o trabalho secreto pode permitir que os comunistas preservem e acumulem suas forças de modo eficaz, enquanto aguardam a oportunidade de tomar o poder.

Os comunistas podem, por exemplo, ativamente criar e expandir empreendimentos com fins lucrativos de diversas formas, sejam abertas ou veladas, a fim de fornecer uma base econômica confiável para o desenvolvimento do movimento revolucionário proletário. Uma vez que nas sociedades ocidentais os comunistas são estigmatizados e marginalizados, e até mesmo vilipendiados e demonizados, eles podem decidir pela fundação de um partido político que não leve o nome de “partido comunista”, mas que, essencialmente, o seja.

Ao encobrirem suas formas externas, podem ser capazes de realizar a conquista revolucionária do poder no curto prazo. Isso se assemelha ao modelo de partidos políticos da classe trabalhadora como o Partido Republicano do Trabalho e da Justiça, que tem grande influência em Belarus. De modo aberto ou encoberto, por meio da criação de editoras, emissoras de televisão, fóruns, jornais, sites e outros meios de comunicação, bem como através de organizações e canais como fundações, sociedades, escolas, bibliotecas e associações juvenis, os comunistas cooperam para fortalecer a imagem pública do marxismo e do socialismo científico, e promover vigorosamente a posição ideológica do partido comunista.

4.

O uso flexível das noções de “independência” e de “união internacional” é um princípio revolucionário. O espírito burguês transnacional, que determina a lógica do capital privado, assegurou que a Conquista Revolucionária do Poder pelo proletariado jamais se configurasse como um movimento estritamente nacional, mas sim como uma causa internacional inspirada no lema: “Proletários de todos os países, uni-vos!”.

Desde 1864, sucessivas organizações internacionais desempenharam um inestimável papel progressista ao aprofundar a união das forças socialistas mundiais. Embora tenham ocorrido dificuldades, elas se limitaram a formas específicas de união; o princípio fundamental e o espírito da união internacional do proletariado não podem ser negados. Esta união não tem apenas valor histórico, mas também relevância para a nova era.[8]

A unilateralidade de negar por completo qualquer forma de união internacional, ao mesmo tempo em que se enfatizam demonstrações isoladas de sucesso, reside na separação entre “união internacional” e “independência”. Fato é que “a autonomia e a independência estão contidas no próprio conceito de internacionalismo”; ambas estão unificadas. Até mesmo a Constituição chinesa de 2017 enfatiza que o Estado deve promover a educação internacionalista junto ao povo.[9] Assim, não devemos desistir do espírito do internacionalismo proletário, seja no discurso, seja na prática.

Algum tipo de união internacional é indispensável. Como Marx nos lembrou: “A experiência do passado provou que negligenciar a unidade fraterna que deveria existir entre os trabalhadores de todos os países (…) acabará por puni-los – levando ao fracasso comum de seus esforços isolados”.[10] Mesmo em circunstâncias adversas, a união internacional é possível em certa medida, visto que no mundo de hoje os partidos comunistas de todos os países têm trilhado o caminho revolucionário levando em consideração as suas próprias características.

Assim, a “independência” foi consideravelmente ampliada. Isso estabeleceu as bases organizacionais para uma continuidade da união internacional, e criou as condições ideológicas para que ela venha a florescer. Considerando a tendência geral, “o futuro do socialismo mundial depende da ação conjunta e eficaz do proletariado internacional”.[11] Os partidos comunistas da maioria dos países têm alcançado novas formas de união internacional, e esperam alcançar ainda mais no future.[12]

*Cheng Enfu é professor da Universidade da Academia Chinesa de Ciências Sociais.

*Yang Jun é professor no Instituto de Marxismo, Escola do Partido do Comitê Provincial de Zhejiang do Partido Comunista da China.

Tradução: Ricardo d’Arêde.

Publicado originalmente na Monthly Review, Vol. 77. no. 1. Maio de 2025.

Para ler a primeira parte dessa série clique em https://aterraeredonda.com.br/a-triplice-revolucao-chinesa/

Notas dos autores


[1] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Collected Works, v. 3, p. 206.

[2] DENG Xiaoping. Selected Works, v. 3. Beijing: People’s Publishing House, 1993. p. 383.

[3] Constitution of the People’s Republic of China. People’s Daily, 22 mar. 2018.

[4] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Collected Works, v. 6, p. 519.

[5] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Collected Works, v. 48, p. 423; MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. The Marx and Engels Anthology, v. 3, p. 611.

[6] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Collected Works, v. 35, p. 35–36.

[7] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Collected Works, v. 50, p. 457.

[8] MAO Zedong. Anthology of Mao Zedong, v. 2. Beijing: People’s Publishing House, 1993. p. 341.

[9] LIU Xingang; CHENG Enfu. “The Historical Value of the Comintern and the Contemporary Value of Its Spirit, Written on the Occasion of the 100th Anniversary of the Founding of the Comintern”, Research on World Socialism, n. 12, 2019.

[10] XIAO Feng. “‘International Union’ or ‘Successful Demonstration’—On the Prospects of the World Socialist Movement”, Contemporary World Socialist Issues, n. 3, 2013; MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Complete Works, v. 39. Beijing: People’s Publishing House, 1974. p. 84.

[11] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. The Marx and Engels Anthology, v. 3, p. 14.

[12] CHENG Enfu. “The Future of World Socialism Depends on the Effective Joint Action of the International Proletariat”, Foreign Social Sciences, n. 5, 2012. Neste artigo, seis planos específicos para a ação conjunta eficaz do proletariado internacional são propostos pela primeira vez.

[13] XUAN Chuanshu; YU Ming. “Commemoration and Reflection of the Foreign Left Wing on the Comintern”, Marxist Research, n. 3, 2020.

Nota do tradutor


[i] cf. tradução de Reginaldo Sant’Anna, em Karl Marx, O capital. Livro 1, O Processo de Produção do Capital”, vol. 1. ed. Civilização Brasileira, 2020. 37ª edição, p. 43.


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