Contra Hannah Arendt

Imagem: Natalya Letunova
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Por DYLAN RILEY*

Enquanto liberais invocam Arendt para defender um suposto consenso civil, o verdadeiro jogo político acontece na guerra de posições gramsciana, onde a direita mobiliza e a esquerda academicizada fala para si mesma

1.

Entre as muitas lições do retorno de Donald Trump à Casa Branca, uma crucial concerne a sociedade civil: um conceito confuso e frustrante, mas ainda assim inescapável. Tirado da Filosofia do Direito, de Hegel – onde Bürgerliche Gesellschaft fazia referência ambígua tanto ao emergente reino da troca mercantil quando às Stände do final do período medieval – Karl Marx buscou expor sua estrutura subjacente e as leis de seu movimento.

Mas ao realizar essa inovação intelectual ele perdeu algo da importância política e cultura da esfera de associações e grupos de interesse que caracterizavam esse “segundo nível da superestrutura”, enfiado, como Antonio Gramsci apontou, entre a economia produtiva e o Estado. (É verdade que, em sua análise do bonapartismo, Marx retomou esse significado anterior, contrapondo o Estado francês tardio-absolutista e excessivamente dominante à sociedade civil)

Uma outra linhagem vai de Alexis de Tocqueville até Émile Durkheim na sociologia política contemporânea e na ciência política. Ela focava nas virtudes de estruturas intermediárias (lembrando em alguns momentos os poderes intermediários de Nicolau Maquiavel) cuja função principal era conter os excessos da democracia moderna – um regime que, Tocqueville argumentava, poderia ser compatível com a liberdade desde que existisse uma florescente esfera associativa (substitua funcional das grandes famílias apanagistas do Antigo Regime).

Foi Hannah Arendt que fusionou as tradições marxianas e tocquevillianas em sua descrição do totalitarismo moderno (ainda que não haja nenhuma evidência de que ela tenha lido Antonio Gramsci). Para Hannah Arendt, a precondição fundamental para o totalitarismo era a pulverização da sociedade civil, que produzia o isolamento da sociedade de massas, cheia de indivíduos desorientados disponíveis para movimentos de massa demagógicos.

2.

Depois de algumas décadas de hiato, o conceito ressurgiu com muita força no breve período dos anos 1990 conhecido como “o fim da história”, que foi caracterizado por uma peculiar dualidade: a celebração da derrota da alternativa comunista e ansiedade com a erosão da democracia liberal no ocidente.

A sociedade civil parecia relevante para os dois casos – na explicação sobre o fim do socialismo de Estado e no oferecimento de uma receita para renovar o eleitoralismo debilitado do núcleo capitalista. Agora, ele volta ao olhar público, embora em um contexto muito diferente, enquanto a intelligentsia liberal e os ativistas de ONGs tiram vigorosamente o pó de seus exemplares gastos de As origens do totalitarismo e conclamam a sociedade civil a resistir à ameaça autoritária em ascensão.

Timothy Snyder, cujo Sobre a tirania é referência obrigatória para comentaristas políticos da esquerda-liberal com pretensões intelectuais, enfatiza a importância de apoiar “organizações preocupadas com os direitos humanos” para evitar “o que Hannah Arendt descreveu como a involução da sociedade a uma ‘multidão’” [mob]. “É crucial lembrar que a sociedade civil já se levantou e derrotou ameaças antes e pode fazer isso de novo”, nota Rebekah Barker, redatora da revista setorial de ONGs Non-Profit Quarterly.

Seu colega David Snyder concorda que “neste momento de crise crescente, a sociedade civil deve agir”. Randi Weingarten, presidente da Federação Americana de Professores, e Amy Spitalnick, diretora-executiva do Conselho Judaico para Assuntos Públicos, definem a sociedade civil na revista Newsweek como uma “rede viva e pulsante de pessoas e organizações que trabalham todos os dias para melhorar nossas comunidades”. Aqui, a sociedade civil age, resiste e até vive e respira.

Por mais justificada que seja a preocupação com o ataque do governo Donald Trump ao setor sem fins lucrativos, grande parte desses comentários sofre de uma dupla confusão: sobre a história do totalitarismo e sobre o que é a sociedade civil. Em relação à primeira confusão, devemos enfatizar que apesar dos muitos pontos interessantes de A origem do totalitarismo – sobretudo em relação ao imperialismo – seu argumento central está em sua maioria errado.

Nos dois países que produziram regimes indiscutivelmente fascistas no período entreguerras, Itália e Alemanha, a sociedade civil era altamente desenvolvida antes da tomada de poder dos autoritários. Nos dois casos cooperativas, igrejas, sindicatos, partidos políticos e sociedades de ajuda mútua haviam experimentado um crescimento maciço a partir de 1870.

3.

A ideia de que a Alemanha e a Itália pré-fascistas eram sociedades de massa atomizadas é enganosa. E o que fizeram os fascistas com essa infraestrutura organizacional uma vez no poder? Eles a ocuparam e a dobraram aos propósitos do regime. Isso contém uma lição importante sobre o que a sociedade civil é (e o que não é). A sociedade civil, como Antonio Gramsci compreendeu — e como os liberais de hoje não compreendem —, é um terreno de luta. Ela não é, e não pode ser, um agente.

Isso é extremamente relevante para o momento atual dos EUA. Pois o MAGA não quer destruir o campo de associações e grupos de interesse – ele quer colonizá-lo. Ele não desincentiva engajamento cívico, ele procura promover as suas formas de engajamento. Assim, depois do assassinato de Charlie Kirk, J. D. Vance exortou os ouvintes de Kirk a “se envolverem, se envolverem, se envolverem”, explicando que a sociedade civil “não é somente algo que flui do governo, mas flui de cada um de nós”.

Ryan Waters, um ex-superintendente de escolas públicas de Oklahoma, anunciou sua ambição de criar um Turning Point [movimento de Kirk] em cada escola e faculdade do Estado. Essa é uma disputa pela hegemonia, feita no terreno da sociedade civil, não uma disputa por um (mítico) campo de consenso pré-político e resolução prática de problemas – o que Antonio Gramsci chamaria de “guerra de posições”.

Mas aqui mora a ironia a que os trumpistas parecem totalmente alheios. Pois, longe de exercerem a grande influência cultural que a direita afirma, intelectuais de esquerda e progressistas nos EUA têm sido, há décadas, isolados como um clero privilegiado, porém em grande parte irrelevante, dentro do complexo universidade–ONG.

Aí formaram o que Antonio Gramsci chamaria de uma intelligentsia tradicional, falando para si mesma em sua própria linguagem obscura e deixando a esquerda em séria desvantagem. Não está fora do âmbito do possível que a tentativa do governo de Donald Trump de destruir esse cordon sanitaire crie as condições para que intelectuais de esquerda estabeleçam um vínculo mais íntimo com as forças políticas e sociais do presente, das quais estão atualmente apartados.

Se assim for, Donald Trump terá tido participação na criação de um novo príncipe moderno, adaptado à era das redes sociais, da viralidade e da inteligência artificial, além da onipresente indústria cultural. O MAGA seria parteira justamente daquilo que mais teme.

*Dylan Riley é professor de sociologia da Universidade da Califórnia, em Berkeley. Autor, entre outros livros, de Microverses: observations from a shattered present (Verso).

Tradução: Julio Tude d’Avila.

Publicado originalmente no blog Sidecar, da New Left Review.


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