Por GARCIA NEVES QUITARI*
O recurso às mentiras como arma política encontra seu limite na ressonância global de vozes que defendem uma nova ordem multilateral
1.
A forma como o Donald Trump tratou o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, durante uma reunião na Casa Branca no começo deste ano, foi considerada como uma humilhação. Foi de tal forma que, na reunião seguinte, vários representantes dos estados membros da União Europeia, encabeçada pela Ursula Von De Leyen, acompanharam o presidente da Ucrânia para garantir que ele não fosse humilhado de novo. Se juntaram ao Zelensky para que ele não fraquejasse diante da pressão de Donald Trump e viesse a aceitar um eventual acordo com Vladimir Putin que não alinhasse com os interesses da Ucrânia e da União Europeia.
Mas a repercussão da primeira reunião com Volodymyr Zelensky parece ter dado ao Donald Trump um gosto de quero mais. A inquisição continuou, vários presidentes e chefes de Estados foram convidados a se deslocar para Washington a fim de dar explicações e receber orientações sobre o que deveriam fazer em seus países no que concernia aos interesses de Donald Trump. Ao que parece, terá feito uma lista de motivos para tentar enquadrar cada um dos convidados.
No mês de maio, teria sido a vez do presidente da África do Sul, Ciryl Ramaphosa. Como de práxis, Donald Trump armou uma cilada para este presidente, que julgava deslocar-se à Casa Branca para tratar de assuntos sérios como a questão da palestina, por exemplo. A África do Sul é um país que, mesmo muito antes do ataque de Israel contra o povo palestino na Faixa de Gaza, já classificava publicamente a ocupação de territórios palestinos como um Apartheid. As manifestações públicas contra esta ocupação na África do Sul ocorrem com frequências desde o fim do apartheid.
África do Sul, que conhece bem o apartheid e a colonização, não apenas discursa contra as investidas de Israel como foi um dos primeiros países a entrar com uma ação na Corte Internacional de Justiça, acusando Israel de genocídio na Faixa de Gaza na sequência dos ataques do Hamas a 7 de outubro de 2023.
Provavelmente, era sobre isso que Ciryl Ramaphosa devia ter se preparado para abordar, embora também soubesse que Donald Trump abraçara uma campanha de desinformação sobre a matança de fazendeiros brancos na África do Sul, um ato que contaria a conivência do seu governo.
No decorrer do encontro, na presença da imprensa, Donald Trump tentou constranger Ciryl Ramaphosa mostrando vídeos que, supostamente, provavam o genocídio de sul africanos brancos, exigindo, por isso, a uma rápida resposta do governo sul africano.
A surpresa de Ciryl Ramaphosa não pareceu ter sido tanto pelo assunto que se destacava naquela encenada reunião, mas sim, pelo vídeo exibido e algumas folhas que o presidente Donald Trump tinha em mãos. O desconforto momentâneo de Ramaphosa foi seguido por tentativas vãs de explicar a Donald Trump aspetos da reforma da terra em seu país, falas diversas vezes interrompidas pelas reiterações do próprio Donald Trump.
Em meio ao bate-boca, Ciryl Ramaphosa teria considerado que a conversa com o presidente dos Estados Unidos da América ainda não havia começado, uma forma de desvalorizar aquele show off, tendo pontuado que ambos tratariam de outra agenda depois das câmeras.
2.
Tratava-se de mais uma das desinformações propaladas propositadamente pelo Donald Trump, pois é difícil pensar que ele não soubesse o que verdadeiramente acontece na África do Sul. Sim, existe uma tensão social por causa da reforma da terra com a qual se espera devolver parte das terras expropriadas aos africanos ao longo do regime do apartheid.
Mas o vídeo a que recorre Donald Trump para tentar encurralar Ciryl Ramaphosa mostrava um dos incendiários discursos de Julius Malema no parlamento sul africano. Julius Malema é um político polêmico, um dissidente do ANC (African National Congress), atualmente, líder do EFF (Economic Freedom Figthers), partido considerado por alguns como sendo de extrema esquerda.
Com alguma recorrência, Julius Malema defende vias radicais para solucionar problemas sociais e políticos, dentre as quais, a ocupação de terras e a expulsão dos fazendeiros brancos. Porém, tal como Ciryl Ramaphosa disse a Donald Trump, esta não é uma visão do governo sul africano e o Estados Unidos da América sabem bem disso. Aliás, as intempéries de Julius Malema muitas vezes se voltam para o próprio parlamento sul africano também. Já se lhe ouviu, por exemplo, o desejo de condenar a morte deputados a quem ele chama de criminosos.
Para o governo da África do Sul, a reforma da terra é um imperativo moral, social e econômico e um instrumento para reduzir inequidade no acesso à terra (veja aqui). E não há nada de novo nisso, considerando que esta e outras reformas estão previstas na constituição desde 1994. São reformas necessárias à democratização da África do Sul pós-apartheid.
Já passam 31 anos desde que acabou o regime oficial de segregação racial e, desde então, a reforma da terra tem vindo a enfrentar bastante dificuldades de implementação, incluindo entre as causas a resistência de alguns fazendeiros brancos. É a narrativa destes fazendeiros, que perderam ou temem perder parte das terras, que Donald Trump tenta explorar.
O tipo de crime que mais preocupa Donald Trump está ligado com as ocupações de terras, que acontecem no âmbito da luta pela terra, muitas vezes, tipificada como crime de invasão de propriedade privada. Porém, como em muitos países da região, a entrada de pessoas nas fazendas também ocorre por causa da fome. Pessoas entram para roubar animais e outros alimentos ou mesmo para ter acesso à água.
No contexto da África do Sul, qualquer entrada de pessoas estranhas nas fazendas, dado a dimensão da disputa pela terra, é um ato perigoso e, muitas vezes, passível de reação armada. A violência no campo está intrinsecamente ligada com a luta pela terra e a desigualdade de acesso aos recursos de sobrevivência.
Contudo, não ocorre uma matança seletiva de pessoas brancas. De modo geral, o que vem ocorrendo neste país é o aumento da violência impulsionado pela crescente pobreza. A África do Sul enfrenta uma crise econômica prolongada e aumento considerável na taxa de desemprego. A criminalidade, como as taxas de homicídios e de sequestros, por exemplo, que sempre foram altas, têm observado aumento nos últimos anos, possivelmente, relacionado com a piora da situação econômica.
Ainda assim, quando se comparam as cores das pessoas vítimas de crimes, os dados oficiais demonstram que a incidência destes é duas vezes maior entre pessoas da cor preta em relação aos classificados como coloured, por exemplo.
As pessoas pretas sofrem três vezes mais com crimes quando comparadas com pessoas brancas. Ou seja, das quatro classificações raciais que existem oficialmente na Africa do Sul (African Black, Asian, Coloured, White), a população preta constitui o grupo que está mais exposto a quase todos os tipos de violência (veja aqui). O genocídio de pessoas brancas na África do Sul é uma mentira.
3.
A intenção de Donald Trump de enquadrar o presidente da África do Sul parece não ter dado certo. Ciryl Ramaphosa é um político bastante experiente, um player africano que tem vindo a assumir importância na geopolítica mundial. Teria enfrentado Donald Trump no mesmo tom, com ironias e risos que compunham aquela encenação.
Na troca de acusações, Ciryl Ramaphosa sugestionou, com piada e risadas, que Donald Trump teria aceitado suborno, referindo-se ao avião de luxo oferecido a ele pelo Catar: I`m sorry! I dont have a plane to give you.
Na verdade, o sucesso das emboscadas de Donald Trump reduz a cada vez que recebe um novo convidado. Se Ciryl Ramaphosa levantou uma informação para tentar comprometer idoneidade de Donald Trump, colocado de modo quase despercebido, já o chanceler da Alemanha, Friedrich Merz, foi mais astuto e imagético em uma de suas visitas à Washington naquele mesmo período da inquisição.
Friedrich Merz não perdeu tempo ao entregar a Donald Trump, logo no início da conversa e diante da imprensa, uma cópia de certidão de nascimento de seu avô, o que naquele momento colocava o presidente dos Estados Unidos da América na situação de descendente de alemães numa altura em que ele reforçava as ações de repatriamento de imigrantes.
Sobre a reunião com Ciryl Ramaphosa, o que não repercutiu tanto na imprensa internacional foi que, dias depois, Donald Trump terá feito comentários no seu perfil no X de que se sentia mal depois da passagem de Ramaphosa pela Casa Branca. A informação foi divulgada também numa edição on line do The News Vine com a seguinte manchete: I Haven´t been well since that South African Chap came to the White House, says Donald Trump (veja aqui).
Segundo a matéria, Donald Trump desconfiava de ter havido alguma coisa no forte aperto de mãos que recebera de Ciryl Ramaphosa. Mais ainda, desconfiava de que um presente oferecido por Ramaphosa, na ocasião daquela visita – uma cortesia normal nestes casos – poderia ter sido o feitiço deixado por ele em seu escritório.
Na verdade, Donald Trump sabe que Ciryl Ramaphosa é mais um dos presidentes que não tem medo dele. Isso também ficou evidente nas imagens. O presidente da África do Sul é um dos membros atuantes dos BRICS e tem defendido contundentemente o multilateralismo e, principalmente, a urgente necessidade de se instituir uma moeda alternativa ao dólar. Ele é a voz dos BRICS em África e seus discursos contra os monopólios financeiros, contra engenharia de dominação euro-estadunidense são tão frontais quanto aos de Lula.
Ciryl Ramaphosa tem um percurso político que passa pelo ativismo contra o regime do Apartheid. Também foi sindicalista, tendo sido preso mais de uma vez ao longo deste regime. A questão é que, assim como na justificativa das tarifas impostas contra Brasil, alegadamente, como uma resposta contra a perseguição política ao ex-presidente Jair Bolsonaro, o suposto genocídio de fazendeiros brancos foi mais um embuste.
Experientes como são, Lula e Ciryl Ramaphosa sabem que Donald Trump é especialista em cortina de fumaça. Sabem que um dos principais problemas de Donald Trump em relação aos dois presidentes está relacionado com os BRICS.
As mentiras são os principais pontos fracos de Donald Trump, mas nem sempre é fácil enfrentá-lo apenas com a verdade. Ele nega, falando, falando mais alto ou, simplesmente, calando. Parece ser necessário também enfrentá-lo com coragem. O presidente Donald Trump não tem medo de feitiço. Ele teme a quem lhe enfrenta ou lhe trata com igualdade. Não é por acaso a sua fraqueza diante de Vladimir Putin, Xi Jinping e, paradoxalmente, diante de Benjamin Natanyahu. Ele reconhece que somente pessoas extraordinariamente corajosas conseguem o desafiar com sucesso.
Ao que tudo indica, foi o caso de Ciryl Ramaphosa, que começou o embate vencendo ao apertar mais forte a mão de Donald Trump, um tipo de saudação musculada que, frequentemente, ele próprio utiliza para exibir a sua superioridade diante dos seus convidados ou anfitriões. Ademais, a contra-emboscada parece ser também um bom truque para descortinar as fraquezas do presidente Donald Trump.
*Garcia Neves Quitari é professor do Departamento de Sociologia da Universidade Agostinho Neto, em Angola.
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