Por PAULO MARTINS*
Considerações sobre o diálogo de Platão, a partir de uma nova tradução recém-publicada
“Mas é doce morrer neste mar / de lembrar e nunca esquecer / Se eu tivesse mais uma alma pra dar / Eu daria, isso pra mim é viver” (Caetano Veloso e Djavan. Linha do Equador).
1.
O escritor italiano Italo Calvino, certa vez, afirmou que toda releitura de uma obra clássica é sempre uma nova leitura, afinal há que se pensar que novos são os tempos e diferentes somos com o passar do tempo, o inexorável.
Assim, as obras clássicas são perenes. Mas, quando se pensa numa obra gigante, o desafio da nova leitura traz um sabor incomparável, pois dela, da nova leitura ou da sua releitura, surgem questionamentos, inquietações e prazer.
Bem, diante de traduções que se fazem de obras como essas, isso é, clássicas, cumpre-se o destino, perenizá-las em línguas exógenas às de origem, e não de outra forma foi com Homero, Virgílio, Platão e tantos outros. É do último que trato neste texto.
Tenho em mãos uma nova tradução do Fédon de Platão, recentemente. Cabe-me a tornar pública – nesse sentido, o autor e a obra, o contexto e a releitura são essenciais.
A tradução e o comentário são de Gabriele Cornelli, professor titular de filosofia da Universidade de Brasília, e fonte de conhecimento inequívoco sobre Platão. Além disso, foi presidente da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, coordena a cátedra da Unesco Archai (voltada a pesquisar as origens plurais do pensamento ocidental) e é o editor-chefe de sua revista homônima. Internacionalmente, o reconhecimento do professor é notável. Circula na África do Sul, Inglaterra, Itália e na China, por exemplo. Já foi presidente da International Plato Society. Mas o essencial: Gabriele Cornelli é um professor, é disso que vive e é isso que importa.
Platão esteve na terra e isso não é uma “viagem”. Foi no chão de Atenas que constitui a Academia, sua escola, onde coube-lhe ensinar filosofia. Viveu entre os séculos quinto e quarto antes de Cristo. Ocupou-se, de forma cabal, de desvelar “questões” sobre as quais alguns atenienses se preocupavam na pólis hegemônica. Ele, na verdade, é uma das vozes de Sócrates, a mais importante. Sua obra é vastíssima.
Seguindo a lição de Trasilo de Mendes, alexandrino, são nove tetralogias fundadas sobre o gênero literário “diálogo” – sim, gênero literário. Fédon faz parte da tetralogia na qual estão inseridos mais três diálogos: Eutífron, Apologia, Críton. Todos tratam da condenação, da defesa e da morte de Sócrates.
2.
De modo geral, ele é figura central, participa direta ou indiretamente de quase todos os diálogos como operador de um pensamento. Seu instrumento era a maiêutica, técnica que visava trazer à tona um conhecimento a partir de perguntas e respostas necessárias em sua argumentação filosófica.
A maiêutica socrática, pois, é essencial para a obra em questão neste texto, pois nela basicamente Sócrates, via Platão, busca persuadir seus interlocutores acerca da imortalidade da alma.
Todos estão dramaticamente sensibilizados com a morte do mestre, entretanto ele está impávido. Fora condenado por não acreditar nos deuses e, por conseguinte, corromper os jovens. São muitas as pessoas presentes (16 citadas nominalmente) nesse encontro, e Fédon é um deles.
É Fédon quem conta as últimas horas do pensador no “corredor da morte”. Sócrates e seus argumentos aparecem assim, reportados pelo interior da memória enlutada de Fédon. Mas é sempre Platão o autor de todas as falas do diálogo, inclusive daquela que o declara ausente naquele dia, por “estar doente”.
Isso quer dizer que toda a filosofia do diálogo é de Platão, inclusive aquela sobre a maneira como um filósofo deve confrontar a morte e a sua ideia de alma. Sobre a construção de seu arcabouço, a estrutura dialógica se institui numa dupla torsão que é assustadoramente engenhosa. Platão é um excepcional prosador, digamos, “bom de prosa”, sem desdourar aquilo que transmite filosoficamente.
O gênero diálogo é a duplicação de uma carta com a necessária dramaticidade. O espaço é fundamental, os atores marcam com clareza seu modo de ser e não se pode minimizar a ideia de tempo, tanto no contexto concreto como no drama que nos vem aos olhos de mente.
Pensemos. Quando responde a uma carta, o interlocutor se coloca em “cena”. Logo, a posição e o éthos de cada um dos participantes impõem ao gênero um teatro, a que o professor de filosofia da UFRJ José Motta Pessanha chamou de um “teatro de ideias”. Sim, a reprodução de um “bate-papo” aponta para algo maior: a ideia de alma, algo muito simples para alguns, mas para outros intransponível.
3.
Nesta edição, o diálogo está dividido didaticamente em 11 partes: Prólogo; A defesa de Sócrates ou a vida filosófica; O argumento dos contrários; Anamnese; O argumento da finalidade; Objeções; Resposta às objeções; Método; O argumento final; O mito final e A morte de Sócrates.
Essa estruturação é extemporânea, entretanto delineia um constructo do pensamento, muito útil para quem não está habituado a ler Platão. O argumento resultante é ético, porque “Sócrates quer” demonstrar a natureza da alma em relação ao corpo e a sua imortalidade.
Platão propõe que, mesmo que o corpo do morto não esteja no mundo dos mortos, suas ações e seus feitos permanecem decalcados na alma. Aquilo que era um ato corpóreo, o comportamento em vida, continua vivo no “morto”, já que a alma está amalgamada com esses atos e feitos.
Bem, pensemos mais uma vez. O que fazer diante de um texto em grego antigo? Aprender grego, é o óbvio. O que fazer diante de um texto que, desde o século quarto a.C, é considerado clássico, que propicia inúmeras leituras por tempos e pessoas diversas, incluindo-nos? Mais do que isso, será que o Platão que lemos hoje é o Platão lido transhistoricamente ou o Platão na realidade ateniense?
O tradutor em sua introdução se diz avesso ao Platão encoberto pelas fuligens, pela poeira, pela apropriação inexata e equivocada. A filosofia pós-kantiana imprimiu-lhe etiquetas e destas outras derivaram.
Gabriele Cornelli diz que Platão não é idealista, mas sim realista. Concordo em termos, pois as etiquetas “realismo e idealismo” são conceitos que também fazem parte da fuligem e do mofo da história do texto sobrepostos ao filósofo.
Platão é alguém que pensa no universo intelectivo, logo distante do concreto e do sensível, mas o mundo concreto não pode ser desconsiderado. A ocasião e o discurso, em largo senso, são inevitavelmente necessários à sua filosofia, contudo não são o seu cerne. Portanto o mundo das representações, o nosso mundo, são flashes ou instantâneos capturados que apenas servem de palco para o nosso intelecto. E isso não é realismo.
O fato de Platão se valer desse palco é a constituição de um verossímil, algo decalcado na realidade crua, pano de fundo para suas reflexões. E isso não significa que não possamos, muitas vezes, refletir sobre ela.
4.
O mundo real, pé no chão, nos é mobilizado em forma e conteúdo, de sorte que o autor é, a um só tempo, filósofo e sofista. Platão, a partir de seu texto eximiamente operado, é um sofista, e nisso dá vezo à filosofia. Desse texto e, apenas dessa matéria, nasce a operação intelectiva, afinal é um filósofo.
Pois bem, Gabriele Cornelli entendeu isso. Tinha de apostar numa tradução, diz-se sempre traidora, que resgatasse a fluidez, a naturalidade, a simplicidade da escritura de Platão. De sua sofística, nasce sua convincente filosofia.
Posso afirmar que em português há muito Platão e poderia evocar dezenas de traduções, e principalmente lembrar do ingente trabalho de Carlos Alberto Nunes que traduziu todo o filósofo.
Gabriele Cornelli, contudo, resgata um detalhe fundamental em Platão, a prosa escorreita de um bate-papo. Entender Platão não é tarefa fácil, mas o tradutor nos coloca em cena, nos faz tomar partido em meio à dialética platônica. A doutrina retórica antiga afirma que é função de um texto ensinar, deleitar e convencer. Isso é Platão, disso trataram a tradução e os comentários de Gabriele Cornelli.
Restam Caetano e Djavan. Suas palavras-chave são: morrer, lembrar, alma, viver. Mera coincidência, creio, mas bem é disso que trata Platão no Fédon. Tais conceitos perpassam o argumento platônico. Platão e Gabriele Cornelli assim o fazem, afinal a alma é eterna, portanto, perene. É assim que se deve entender a empreitada de ambos. Demais, devemos lê-los. Imperdíveis, pois impecáveis.
*Paulo Martins é professor de Letras Clássicas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Autor, entre outros livros, de A representação e seus limites (Edusp). [https://amzn.to/4jMVAIY]
Publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo.
Referência

Platão. Fédon ou Sobre a alma. Tradução: Gabriele Cornelli. São Paulo, Penguin/Companhia das Letras, 2025, 296 págs. [https://amzn.to/4oJLjA1]
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