Nada será como antes

Frame de Nada será como antes/ Divulgação
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JOSÉ GERALDO COUTO*

Comentário sobre o documentário dirigido por Ana Rieper

Não é de hoje que o cinema brasileiro tem uma dívida inestimável com a nossa música popular. Pelo menos desde Carmen Miranda e os musicais carnavalescos dos anos 1930, ela tem sido um manancial inesgotável a animar nossas imagens em movimento. Agora se nota um movimento inverso, uma tentativa de retribuir um pouco dessa dádiva, em filmes documentais e de ficção dedicados a músicos, compositores, cantores e cantoras de destaque.

O documentário Nada será como antes, de Ana Rieper, se enquadra nessa linha, ao contar a história do Clube da Esquina, aquele grupo de músicos e compositores mineiros que marcou nossa cultura para sempre desde o início dos anos 1970. Melhor dizendo: a diretora deixa que os próprios membros do clube contem sua história pessoal e coletiva.

Começa com imagens em preto e branco de Milton Nascimento, ainda jovem, traçando no programa de TV “Ensaio” as coordenadas geográfico-afetivo-musicais do movimento: “Clube da Esquina. Rua Divinópolis, bairro de Santa Tereza, Belo Horizonte, casa de Salomão Borges, pai. Pai, mãe e a prole, onze filhos, dez agregados, entre eles eu – e todos músicos”.

Localização espaço-temporal

As imagens seguintes, filmadas hoje, mostram o prédio em que moravam os Borges, enquanto os dois irmãos mais famosos, Lô e Marcio, rememoram o início de tudo, o encontro casual entre Lô, então com dez anos, e Milton, dez anos mais velho, quando este dedilhava o violão e cantava sentado num degrau da escada do edifício.

A partir dessa localização histórico-geográfica, que inclui tomadas atuais e de época nas ruas centrais de Belo Horizonte, o filme se desdobra em depoimentos e conversas do pessoal do “clube”, rememorando casos, parcerias, encontros, composições. Algumas histórias são divertidas, outras comoventes, todas saborosas.

O mérito maior do documentário, a meu ver, é equilibrar a música e a amizade, mostrando que, no caso dessa turma, os dois termos são quase sinônimos.

Para os cinéfilos, um atrativo especial é a relação dos músicos mineiros com o cinema. Assistir juntos a Jules e Jim, de François Truffaut, reforçou a afinidade e selou a amizade entre Marcio Borges e Milton Nascimento. “Minhas músicas são sempre pedaços de filmes”, diz Milton Nascimento. E os depoimentos são justapostos, no documentário, a trechos de fitas dos anos 1960, como o curta Documentário, de Rogério Sganzerla, e o longa Jardim de guerra, de Neville d’Almeida.

Influências díspares

Nada será como antes ganha uma relevância cultural extraordinária quando os músicos falam sobre as influências díspares que os inspiraram.

Beto Guedes, por exemplo, fala dos Beatles (tema de uma canção famosa de Lô e Marcio Borges, “Para Lennon e McCartney”), Wagner Tiso cita uma “base sólida do erudito” (Chopin, Ravel) e uma proximidade com a música cigana do leste europeu, Nivaldo Ornellas destaca o influxo do jazz de Miles Davis e John Coltrane, Flavio Venturini relembra o rock progressivo do Genesis, Robertinho Silva diz que sua percussão vem dos batuques dos terreiros de candomblé. Ao cantar e batucar “Cravo e canela”, Robertinho diz, radiante: “Isso é rock? Não, né? Isso é afro”.

Nada, portanto, das frias explanações externas de “especialistas” e comentadores, tão comuns em documentários desse tipo, mas sim depoimentos calorosos de quem aprendeu e descobriu fazendo. Um ponto alto desse desnudamento da música do grupo é a demonstração dada por Toninho Horta de um solo de guitarra (de “Trem azul”, se não me engano) em que ele funde o estilo jazzístico de Wes Montgomery e as terças dos violeiros caipiras.

Desse tipo de alquimia sonora surgiu um dos momentos mais altos da música popular brasileira, o álbum duplo Clube da esquina, de 1972, que irrigou nossa cultura e alavancou as carreiras de uma dúzia de músicos e compositores de primeira linha. “Um grande país eu espero/ do fundo da noite chegar”, diz a letra de “Clube da Esquina 1” (Milton Nascimento, Lô e Marcio Borges). Um dia esse país tão torto e cruel há de merecer a música maravilhosa que produz.

*José Geraldo Couto é crítico de cinema. Autor, entre outros livros, de André Breton (Brasiliense).

Publicado originalmente no blog de cinema do IMS.

Referência


Nada será como antes.
Brasil, Documentário, 79 minutos.
Direção e roteiro: Ana Rieper.
Montagem: Pedro Asbeg & André Sampaio.
Elenco: Milton Nascimento, Lô Borges, Beto Guedes, Wagner Tiso, Toninho Horta, Ronaldo Bastos, Flavio Venturini, Marcio Borges, Murilo Antunes, Tavinho Moura, Nivaldo Ornellas, Robertinho Silva, Novelli, Nelson Ângelo, Luiz Alves, Duca Leal, Telo Borges, Marilton Borges, Paulinho Saturnino, Beto Lopes, Paulo Vilara.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

A crônica de Machado de Assis sobre Tiradentes
Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Uma análise machadiana da elevação dos nomes e da significação republicana
Dialética e valor em Marx e nos clássicos do marxismo
Por JADIR ANTUNES: Apresentação do livro recém-lançado de Zaira Vieira
Ecologia marxista na China
Por CHEN YIWEN: Da ecologia de Karl Marx à teoria da ecocivilização socialista
Umberto Eco – a biblioteca do mundo
Por CARLOS EDUARDO ARAÚJO: Considerações sobre o filme dirigido por Davide Ferrario.
Cultura e filosofia da práxis
Por EDUARDO GRANJA COUTINHO: Prefácio do organizador da coletânea recém-lançada
Papa Francisco – contra a idolatria do capital
Por MICHAEL LÖWY: As próximas semanas decidirão se Jorge Bergoglio foi apenas um parêntesis ou se abriu um novo capítulo na longa história do catolicismo
Kafka – contos de fadas pra kabeças dialétikas
Por ZÓIA MÜNCHOW: Considerações sobre a peça teatral, dirigida por Fabiana Serroni – em cartaz em São Paulo
A greve da educação em São Paulo
Por JULIO CESAR TELES: Por que estamos em greve? a luta é pela educação pública
O complexo de Arcádia da literatura brasileira
Por LUIS EUSTÁQUIO SOARES: Introdução do autor ao livro recém-publicado
Jorge Mario Bergoglio (1936-2025)
Por TALES AB´SÁBER: Breves considerações sobre o Papa Francisco, recém-falecido
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES