Manifesto sobre a reforma curricular

"Fragmentos de um Livro dos Mortos", acervo do MET/ Nova York, c. 1390–1353 AC?
image_pdf

Por COMISSÃO DE PORTUGUÊS*

Considerações sobre a proposta de reforma curricular em debate no âmbito do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo (USP)

1.

É fundamental nos debruçarmos em quais são os critérios para construir uma reforma curricular que busque fomentar uma formação que traga conhecimentos basilares, fomente o pensamento crítico do estudante e o faça ter acesso a fundamentos e possibilidades que o instiguem a refletir quais caminhos quer traçar em seu futuro. É neste sentido que queremos discutir sobre a obrigatoriedade ou não das disciplinas de nosso currículo.

Nas últimas reuniões do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas (DLCV) foi citada uma pesquisa feita pela comissão de professores que estão refletindo a reformulação do currículo, que, de acordo com o departamento, mostrariam uma alta taxa de evasão que temos em nosso curso, assim como a discrepância entre o período mínimo ideal para realizar a graduação e o que ocorre na realidade, em que a ampla maioria dos alunos não conseguem se formar nesse período.

São dados que precisam ser compartilhados para que o conjunto dos estudantes possam analisar com mais profundidade, para que seja possível refletir quais medidas podemos tomar diante disso. Nas reuniões, foi apontado também que há um problema na carga horária de nosso curso, que seria extensa em comparação com outros cursos de Letras, fazendo com que seja difícil conseguir o diploma. Assim, a conclusão do departamento é que seria necessário diminuir essa carga, e portanto o Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas tem apresentado propostas que buscam retirar a obrigatoriedade de algumas disciplinas: se tornariam optativas Introdução ao Latim I e II; 2 semestres de Literatura Portuguesa e de Literatura Brasileira.

Gostaríamos de debater mais a fundo soluções para esses problemas. Vale refletir sobre se o principal elemento que faz com que os estudantes evadam do curso e não consigam se formar é a questão da carga horária. De acordo com a pesquisa de Lobo (2012) citada na pesquisa “Evasão no ensino superior público do Brasil: estudo de caso da Universidade de São Paulo”, de 2022, as causas mais comuns da evasão do sistema de ensino superior, público e privado, relacionam-se à:

(i) baixa qualidade da Educação Básica brasileira, (ii) baixa eficiência e o diploma do Ensino Médio, (iii) limitação das políticas de financiamento ao estudante, (iv) escolha precoce da especialidade profissional, dificuldade de mobilidade estudantil, (v) rigidez do arcabouço legal e das exigências para autorização/reconhecimento de cursos, (vi) falta de pressão para combater a Evasão, (vii) legislação sobre a inadimplência no Brasil, e (viii) enorme quantidade de docentes despreparados para o ensino e para lidar com o discente real.

2.

Assim, consideramos que é necessário fazer uma pesquisa sobre os motivos que levam à evasão do curso, portanto iniciamos essa pesquisa em um forms da Comissão do Português, e pedimos apoio do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas para divulgá-la. Nossa hipótese é que a evasão em nosso curso está profundamente ligada à falta de políticas de permanência estudantil, à necessidade de muitos alunos enfrentarem escalas de trabalho 6×1 (como muitos que trabalham em escolas de idiomas), ao adoecimento mental que muitas vezes é tratado com pouca sensibilidade pela USP e ao sucateamento geral da universidade (filas no bandejão, falta de salas e falta de professores e funcionários) e a frustrações com o ranqueamento que é um segundo vestibular que impede que estudantes possam fazer a habilitação que sonharam.

A resposta a esses problemas não está em uma reformulação curricular, mas sim em exigir assistência estudantil e contratação de mais professores. Diante da falta de professores e da evasão, a solução não pode ser rebaixar o que deve ser transmitido, mas sim mudar a realidade da instituição, exigindo contratação e melhores condições.

 Portanto, acreditamos que é impossível responder ao sucateamento institucional com uma mudança curricular. Isso não significa que o currículo deve se manter como está, afinal já é uma reivindicação de muitos anos pautas como a obrigatoriedade de africanas. Mas a discussão que trazemos aqui é que o critério para pautar as mudanças não pode ser o sucateamento, mas sim quais são os “conhecimentos poderosos” que devem estar no currículo.

Esse é um tema abordado por sociólogos da educação, como Michael Young, que discute como o currículo não deve ser moldado pela “realidade precária” ou pelas “circunstâncias locais” dos alunos, mas sim garantir o acesso a um melhor conhecimento que os habilite a ir além de suas circunstâncias.

Isso faz questionar também a lógica de que a proposta de retirada das obrigatórias teria a ver com uma discussão de alterar uma “filosofia de currículo” muito engessada nas obrigatórias para um currículo mais flexível e com mais margem para optativas e para a escolha dos estudantes. Segundo Young: “As escolas devem perguntar: ‘Este currículo é um meio para que os alunos possam adquirir conhecimento poderoso?’. Para crianças de lares desfavorecidos, a participação ativa na escola pode ser a única oportunidade de adquirirem conhecimento poderoso e serem capazes de caminhar, ao menos intelectualmente, para além de suas circunstâncias locais e particulares. Não há nenhuma utilidade para os alunos em se construir um currículo em torno da sua experiência, para que este currículo possa ser validado e, como resultado, deixá-los sempre na mesma condição”.

Neste sentido questionamos a retirada de Introdução ao Latim, uma vez que, se não for na universidade, quando é que os estudantes (ainda mais os estudantes mais pobres) poderão ter contato com o Latim? Sabemos que vários estudantes entendem a importância da língua e cultura latina, elementar para um estudo diacrônico da língua portuguesa, mas não se sentem contemplados com a maneira como é essa matéria hoje, e essas opiniões são fundamentais para que possamos elaborar uma ementa que sirva também para como transmitiremos esse conteúdo nas salas de aulas.

Quanto à Literatura Brasileira, as quatro matérias que temos são muito importantes para dar um panorama do cânone literário brasileiro e da crítica acerca dele. Os conhecimentos presentes nessas matérias são fundamentais para compreendermos as relações entre literatura e sociedade em nosso país, ainda mais em meio a ataques imperialistas a este país como recentemente temos sofrido: mais que nunca se faz importante valorizarmos esses conhecimentos.

São nessas disciplinas que encontramos ferramentas críticas essenciais para que, através da literatura, possamos analisar e denunciar as estruturas de poder vigentes – internas e externas – que perpetuam as desigualdades. Além disso, o crítico que dá nome a nosso prédio, Antonio Candido, nos deixa lições valiosas para compreender a necessidade de considerar os fatores sociais no seu papel de formadores da estrutura estética da obra, reflexão fundamental para compreender qualquer obra literária, brasileira ou não, e é justamente nessas disciplinas em que temos contato com essas discussões.

Sobre a Literatura Portuguesa, consideramos fundamental que haja uma reformulação da ementa que possa trazer reflexões sobre um conteúdo não-hegemônico sobre essa literatura. Não corroboramos com a ideia de que não há valor em estudar a “literatura dos colonizadores”. Em primeiro lugar porque muitos dos autores dessas obras não corroboravam com a lógica colonialista e foram parte de (de maneira intencional ou não) questioná-la. Em segundo lugar porque, mesmo a literatura que corroborava com essa lógica precisa ser estudada de forma crítica, apresentando suas contradições, inclusive para que a história não se repita.

Diante dessas questões, solicitamos  espaços com ampla divulgação em que os estudantes sejam ouvidos e em que possa haver mais trocas e discussões, para que os estudantes estejam a par de todas as reflexões e possam ser parte de pensar uma reformulação do currículo de maneira mais integral, em que possamos refletir não apenas a retirada ou manutenção de obrigatórias mas sim qual o ideal de currículo que queremos, um currículo que sabemos que implica em uma luta maior de exigência à Reitoria pela contratação de professores e funcionários e por permanência estudantil, uma luta que chamamos todos os professores a travarem junto conosco.

*Comissão de Português é composta por alunos matriculados no curso de Letras da Universidade de São Paulo (USP).

Referências


SILVA, Debora Bernardo da et al. Evasão no ensino superior público do Brasil: estudo de caso da Universidade de São Paulo. Avaliação: Revista da Avaliação da Educação Superior, Campinas, v. 27, n. 2, p. 248-259, maio 2022. Disponível em: https://www.scielo.br/j/aval/a/KJr3VDQdmbJtXJXYzMJVjcw/ GALIAN, Cláudia Valentina Assumpção; LOUZANO, Paula Baptista Jorge. Michael Young e o campo do currículo: da ênfase no “conhecimento dos poderosos” à defesa do “conhecimento poderoso”. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 40, n. 4, p. 1109-1124, dez. 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ep/a/Cqgn6mVxtGt7fLNpTgXwS5L/abstract/?lang=pt

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
3
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
4
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
5
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
9
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
10
A esquerda radical deveria apoiar Lula desde o primeiro turno. Por quê?
04 Dec 2025 Por VALEIRO ARCARY: O voluntarismo não é bom conselheiro. Ideias revolucionárias são poderosas e podem colocar em movimento milhões de pessoas até então desesperançadas. Mas é imprudente desconhecer a impiedosa força da realidade objetiva.
11
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
12
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
13
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
14
A voz da saga
30 Nov 2025 Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO: Prefácio do livro “Melhores contos”, de João Guimarães Rosa
15
Por que a Inteligência artificial não faz justiça? – 2
29 Nov 2025 Por ARI MARCELO SOLON & ALAN BRAGANÇA WINTHER: Os fundamentos da ciência da computação e da filosofia do direito mostram que a Inteligência Artificial é estruturalmente incapaz de realizar justiça, pois esta exige historicidade, interpretação contextual e uma "variável caótica" humana que transcende a mera racionalidade algorítmica
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES