A tibieza da Frente Ampla uruguaia

Imagem: Josie Weiss
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Por EMILIO CAFASSI*

Quando a Frente Ampla troca a clareza ética por uma diplomacia insípida, sua equidistância em Gaza revela mais do que cautela: uma renúncia à sua própria alma

Uma atmosfera morna se instala. O Uruguai vive um paradoxo térmico: um clima temperado que assola a esquerda. Essa temperatura intermediária – que impede o rompimento de relações, mas também dificulta a ignição de convicções – começou a corroer o entusiasmo. Não se trata apenas de inquietação: é uma névoa ética que obscurece o horizonte da Frente Ampla (FA) que prometia dar-lhe um fôlego mais profundo e ousado.

No entanto, o Uruguai avança como alguém que arrasta um casaco fora de época: declarações negacionistas sobre Gaza, hesitações em relação aos impostos, mudanças repentinas na segurança e cortes orçamentários típicos da velha direita. Essa tibieza – modéstia política disfarçada de prudência – levanta uma questão incômoda: o governo está governando para evitar desagradar os mesmos poderes constituídos ou para promover mudanças?

Política externa como eufemismo

Às vezes, a tibieza se mede em eufemismos. Gaza não exige contenção: exige vocabulário. E, no entanto, o governo uruguaio optou por trilhar a tênue linha da diplomacia insípida, como se nomear o massacre pudesse desencadear um furacão.

Quando o presidente Yamandú Orsi afirmou que o Uruguai fez “tudo ao seu alcance” em termos de ajuda humanitária e que o país deveria evitar “tomar partido”, pois a região precisava “ser uma ponte”, estabelecendo uma equidistância que a realidade não permite: entre ocupante e ocupado, entre energia nuclear e população faminta, entre o massacre e o massacrado.

O Ministro das Relações Exteriores, Mario Lubetkin, aprofundou essa ambiguidade ao declarar que o Uruguai só usaria o termo “genocídio” quando a ONU o fizesse. Isso não é cautela diplomática: é abdicação moral. Genocídio não espera por certificação. Ele recebe esse nome porque é repugnante e horripilante. Exige condenação e ação. Mas o governo preferiu administrar o silêncio: chamar de “conflito” onde há um cerco e celebrar a ajuda humanitária sem condenar o agressor.

A pressão não tardou: setores da comunidade judaica organizada acusaram o governo de “ceder” ao enviar ajuda a Gaza, como se a solidariedade exigisse permissão. O efeito foi uma maior cautela por parte das autoridades, com insistência na neutralidade.

O subsecretário Csukasi e o próprio Lubetkin reforçaram uma linguagem de neutralidade geométrica: “não estamos aqui para julgar”, “o Uruguai é uma ponte”, “há violações de ambos os lados”. Mas esse “ambos os lados” só pode ser proferido à distância. Não há simetria entre um exército sofisticado e um povo sitiado. Não há equidistância entre aqueles que bombardeiam e aqueles que recolhem corpos. Não há ponte que não seja também uma fronteira.

As Bases Programáticas 2025–2030, embora provavelmente as mais concisas e moderadas dos programas da Frente Ampla neste século, são claras: a política externa deve ser guiada por uma defesa irrestrita dos direitos humanos (p. 12) e condenar práticas de extermínio ou violência sistemática (p. 14-15). Chamar Gaza de “conflito” não é prudência: é um eufemismo para suavizar o tom da partitura ética.

O programa é explícito: o Uruguai deve adotar posições que “condenem graves violações dos direitos humanos, especialmente quando comprometem o direito à vida e a integridade de povos inteiros” (p. 16). Isso é difícil de conciliar com a insistência de Yamandú Orsi de que o Uruguai não deve “tomar partido”. A Frente Ampla (FA) propõe uma política externa guiada pela ética, não pelo medo de irritar uma embaixada. No entanto, o governo parece estar operando com a bússola invertida: mais preocupado em não ofender do que em nomear a questão candente.

O documento exige que o Uruguai seja uma voz clara contra a agressão desproporcional (p. 21) e pratique a solidariedade ativa com os povos vítimas da ocupação (p. 22). A equidistância do governo quebra essa coerência: não se trata de tomar partido, mas sim de defender um princípio.

Mas, acima de tudo, há uma omissão simbólica. Enquanto a Frente Ampla afirma que o Uruguai deve praticar “solidariedade ativa com os povos vítimas da ocupação ou da violência colonial” (p. 22), o governo se refugia na equidistância, o que só beneficia o agressor. Não se trata de tomar partido, mas de escolher um princípio: o direito à vida. E esse princípio tem sido chamado, em todas as línguas desde 1948, de direitos humanos.

É por isso que a resposta morna em Gaza dói talvez mais do que qualquer outra. Porque o que está em jogo aqui não é um modelo econômico ou uma política de segurança, mas o cerne ético da Frente Ampla. Sua história, seus mortos, seus exilados, sua memória foram tecidos com uma coerência que hoje parece se dissolver em declarações tímidas e pronunciamentos açucarados.

E a pergunta inevitável é se essa Frente Ampla morna pode existir diante do genocídio sem que algo – algo insubstituível – se rompa internamente.

Enquanto o Uruguai pondera cuidadosamente cada adjetivo usado para descrever Gaza, Donald Trump volta a fazer ameaças militares contra a Venezuela. Não se trata de cenários hipotéticos: são manobras e declarações que revivem a Doutrina Monroe.

A Frente Ampla (FA) sempre enfatizou que a paz não se preserva pela neutralidade, mas por meio de posições claras. Isso se torna ainda mais evidente quando diversas vozes – do próprio governo venezuelano a analistas internacionais – indicam que esse destacamento militar busca precipitar uma mudança de regime e controlar os imensos recursos naturais da Venezuela: petróleo, gás e minerais estratégicos.

Tal ameaça não diz respeito apenas a Caracas, mas a toda a América Latina. Já no Uruguai, surgem gestos de solidariedade ativa, como o do ex-ministro Luis Rosadilla, que decidiu viajar à Venezuela não para apoiar um governo, mas para defender a soberania continental contra a possibilidade de uma invasão estrangeira. Esse gesto – compartilhado ou não – resume algo do espírito latino-americanista que a Frente Ampla sempre defendeu: a convicção de que a paz não se preserva por meio de uma equidistância meramente formal, mas sim por meio de posições claras contra qualquer tentativa de recolonização.

Aqui também, o programa da Frente Ampla é inequívoco: a política externa deve denunciar a agressão desproporcional, defender a autodeterminação dos povos e agir eticamente diante da violência imperialista. Manter-se em silêncio sobre Gaza e ignorar as ameaças à Venezuela não é prudência: é uma renúncia que mina a alma internacionalista da Frente Ampla.

Qual é o caminho fiscal de Javier Milei?

Se a tibieza é a temperatura política, em assuntos econômicos e sociais ela se torna uma luz tênue: ilumina sem revelar, aquece sem transformar. O Ministro da Economia, Gabriel Oddone, gerou essa atmosfera sombria quando, após a vitória de Javier Milei, falou com entusiasmo mal disfarçado, como se o que estivesse acontecendo na Argentina não fosse um programa de demolição social, mas um experimento de estabilização bem-sucedido.

Em entrevista ao jornal oligárquico La Nación, confessou ter sido “muito cético” em relação ao plano libertário, mas admitiu que a Argentina havia alcançado “grandes progressos” e que as medidas de choque haviam sido implementadas “sem grandes convulsões macroeconômicas”. As mesmas palavras que soam assépticas vindas de um tecnocrata ressoam como uma cruel ironia aos ouvidos de qualquer trabalhador argentino.

O ministro elogiou Javier Milei por implementar um programa ortodoxo que eliminou o déficit fiscal e reduziu a inflação. Seu relato é prolixo, mas incompleto: ele omite demissões em massa, queda acentuada no consumo, redução das aposentadorias e um aumento brutal da pobreza. Quando afirma que houve ajustes “sem grandes transtornos”, ele está apenas descrevendo o cenário a partir de sua perspectiva.

A mesma lógica ressurge quando, perante a Comissão de Orçamento do Senado, o ministro afirmou que a vitória de Javier Milei consolidou a “estabilidade do mercado”, gerou “continuidade” e abriu um cenário “mais favorável” para o Uruguai, inclusive para o turismo, porque a Argentina “não ficará tão barata quanto antes”. Mais uma vez, a bússola aponta não para as necessidades sociais, mas para as financeiras. A estabilidade é apresentada como uma virtude em si mesma, mesmo sendo produto do ajuste mais regressivo que a Argentina democrática já viu.

O contraste com o programa da Frente Ampla é evidente. As “Bases…” denunciam as experiências ultraliberais que corroem os direitos e aprofundam a desigualdade (p. 14-15). Enquanto Oddone celebra as conquistas fiscais, o programa exige redistribuição, impostos sobre a riqueza e fortalecimento do trabalho. Essas são bússolas incompatíveis.

O programa prevê um Estado que garanta direitos, promova a coesão social e redistribua a riqueza (pp. 10-13). Nenhuma interpretação permite conciliar esse ideal com a reforma da era Javier Milei, que desmantela a proteção social. A contradição não é técnica: é política.

A tensão não reside entre Uruguai e Argentina, mas entre um projeto político e sua própria voz. O programa aponta para um horizonte de igualdade; Oddone destaca as conquistas contábeis de um governo que faz da desigualdade seu método. Quando os números do carrasco são elogiados, parte de sua lógica é validada. Essa tibieza econômica incomoda não por sectarismo, mas por causa da memória histórica.

Imediatamente, o recém-formado comitê de base de Buenos Aires, liderado por Daniel “Ruso” Pisciottano, enviou uma carta aberta ao presidente da Frente Ampla (FA), concluindo com um convite para debate com os principais atores. Porque quando as políticas macroeconômicas do opressor são elogiadas, parte de sua lógica se torna plausível, ainda que por omissão. E essa omissão – essa tibieza econômica – é o que agora começa a incomodar a esquerda: não por sectarismo, mas por um senso de história. Porque a história da Frente Ampla não nasceu para celebrar as medidas de austeridade alheias, mas para construir seus próprios direitos.

Resolver urgentemente a pobreza infantil

Se Gaza demonstra tibieza moral externamente e o julgamento de Javier Milei revela um descaso pelo colapso social, a rejeição da proposta de um imposto único para combater a pobreza infantil no Uruguai expõe a tibieza fiscal interna.

O Uruguai luta para formular uma iniciativa concreta que atinja o cerne do privilégio, com base em uma proposta de seu principal sindicato, o PIT- CNT: um imposto anual de 1% sobre o 1% mais rico para erradicar a pobreza infantil. Isso não é um desabafo jacobino: é quase um gesto sóbrio de justiça, uma ocupação fiscal dos redutos do privilégio para que as crianças não durmam mais ao relento, como argumentamos anteriormente neste espaço (“A Rachadura no Concreto do Privilégio”, 2 de agosto de 2025).

No entanto, onde deveria florescer o consenso mais básico – alimentar as crianças – o medo se instala. O governo se refugia em um tabu litúrgico: nenhum novo imposto será criado, um slogan eleitoral irresponsável e contrário ao seu programa. Como se mexer com quem está no topo fosse um sacrilégio econômico e não um imperativo ético.

As pesquisas revelam claramente que esta não é uma sociedade hostil à redistribuição, mas sim uma elite política assustada com a sua própria agenda. A Usina de Percepción Ciudadana (Centro de Pesquisa da Percepção Cidadã) registrou que 51% concordam com um imposto sobre o 1% mais rico, e entre os eleitores da Frente Ampla (FA), o apoio sobe para 77%. No entanto, 74% também apoiam a promessa do presidente de não criar novos impostos, incluindo uma parcela significativa do eleitorado da Frente Ampla.

O Ministro da Economia, o mesmo mencionado anteriormente, vai ainda mais longe: descreve um imposto sobre a riqueza como “extraordinariamente inconveniente” e se apega ao mantra da eficiência nos gastos. A prioridade não parece ser a fome, mas sim o conforto do 1% que prefere ver a desigualdade como um “exagero”. Esse mesmo 1%, que, segundo pesquisa de Strehl, Bergolo e Leites, tem entre 25% e 33% menos probabilidade de apoiar a redistribuição, acredita mais no mérito individual e se inclina mais à direita do que o resto da sociedade.

O programa propõe políticas proativas contra a pobreza infantil e metas concretas para 2030. Impor um imposto de 1% sobre a riqueza daqueles que detêm um terço da riqueza é uma ferramenta direta, mas o Poder Executivo a trata como uma bomba fiscal. O orçamento consolida essa abdicação.

O paradoxo é tal que, mesmo da direita, parte do discurso soa como uma acusação: Pablo Abdala, presidente do PIT- CNT (Confederação Nacional dos Trabalhadores), definiu o orçamento como “regressivo” devido aos seus efeitos sobre o ensino superior e a descentralização universitária.

Se até mesmo aqueles que nunca defenderam a justiça fiscal o percebem como um retrocesso, como não ser chocante para quem votou em uma plataforma que prometia o oposto: expandir bens e serviços públicos, fortalecer a presença do Estado em todo o país e universalizar as condições para uma vida digna? O resultado é um cenário esquizofrênico: uma plataforma que fala a linguagem da justiça redistributiva e um governo que fala a linguagem da resignação fiscal.

Uma Frente Ampla (FA) que assinou, preto no branco, que a riqueza deve ser tributada segundo critérios progressivos, e um Poder Executivo que transforma esse compromisso em tabu. A postura morna aqui não é neutralidade: é uma forma de tomar partido. Porque, quando se exclui a possibilidade de afetar aqueles que concentram riqueza enquanto uma em cada três crianças luta para sobreviver, a equidistância deixa de existir. Resta apenas uma escolha: ou o concreto do privilégio se quebra, ou os berços continuam a ruir.

Segurança como a de Bukele?

Na plataforma da Frente Ampla, a segurança é concebida como coexistência, não confinamento. A plataforma não descreve uma arena de gladiadores, mas sim uma arquitetura social sustentada pela prevenção, coesão e direitos. Alerta para um clima internacional em que os vieses autoritários e a erosão democrática estão em ascensão (p. 11). Embora não o mencione explicitamente, é improvável que a Frente Ampla desconhecesse o caso salvadorenho: estado de emergência, militarização e suspensão do devido processo legal.

O programa amplia então seu escopo e diagnostica um clima global e local “onde os vieses autoritários são exacerbados, o sistema democrático é enfraquecido e a participação cidadã e as associações sociais estão se deteriorando” (p. 11). O alerta é contundente: o autoritarismo não é um fenômeno distante, mas sim uma atmosfera crescente na região. Bukele governa por meio de estados de emergência, militarização e suspensão do devido processo legal.

O programa propõe abordar os fatores de risco e fortalecer as medidas de proteção para que as pessoas possam viver em ambientes seguros (p. 74). Para a Frente Ampla (FA), a segurança se origina no tecido social, não atrás das grades: prevenção estrutural, não espetáculo punitivo.

O documento estabelece, portanto, um princípio fundamental: democracia e direitos humanos como uma fronteira intransponível. Não se trata de um mero detalhe regulamentar; é o cerne ético do projeto. As páginas iniciais defendem um Estado que “garante direitos” e afirmam que os direitos humanos são “um pilar central de qualquer política pública”, incluindo o respeito pela liberdade, dignidade, expressão e devido processo legal (p. 12).

Bukele, em contrapartida, restringe massivamente as liberdades e transforma a exceção em norma. Se a segurança deve ser construída sobre a democracia e não à sua custa, este texto serve como um forte lembrete: a Frente Ampla não apenas rejeita o autoritarismo; ela o reconhece como a tentação oferecida pelo caminho mais curto para uma aparente calma.

Por isso, soou dissonante quando Bukele interrompeu o discurso do presidente Orsi como um “exemplo a ser analisado”. Foi uma estranha nota quando ele declarou na televisão: “O exemplo é Bukele, é El Salvador. É o exemplo de um processo a ser analisado”. O esclarecimento subsequente, horas depois, assim que o escândalo começou a se espalhar – “impossível e inaceitável” aplicá-lo no Uruguai porque viola a democracia e os direitos humanos – não elimina a ressonância inicial, apenas a atenua.

Porque a questão não é se o Uruguai pretende copiar o modelo salvadorenho – não pode, não quer, não deveria –, mas sim o que significa estabelecê-lo como um quadro analítico. O que acontece quando o exemplo apresentado vem do laboratório autoritário mais celebrado do continente, até mesmo por Donald Trump?

Em El Salvador, a política penal se baseia em um prolongado estado de exceção, prisões sem mandado, julgamentos em massa, encarceramento em massa e um controle vertical do território que só funciona ao anular o que a plataforma da Frente Ampla considera inegociável.

Enquanto as “Bases…” exigem o devido processo legal, a independência judicial e a proteção dos direitos (p. 77), o modelo salvadorenho caminha na direção oposta. Onde a Frente Ampla propõe reabilitação e reintegração (p. 79), Bukele defende megaprisões e controle absoluto. Este não é um debate técnico: é gramática política.

O risco não reside em imitar Bukele, mas em permitir que sua agenda seja usada como ponto de referência. Assim como as “Bases…” alertam para o avanço regional da extrema direita (pp. 97-98), citar Bukele desestabiliza o eixo do debate, mesmo que ele seja descartado como opção.

Uma Frente Ampla que propõe mais democracia para enfrentar a insegurança não deveria buscar alternativas nos templos do autoritarismo. Não por mera formalidade, mas por uma questão de coerência. Porque sua própria plataforma já havia delineado – páginas antes – o único caminho compatível com a tradição política que a sustenta desde sua fundação.

Precisamos conversar?

Que o termo tenha ressurgido em reuniões de ativistas comprometidos, porém perplexos, como uma pulsação que se recusa a parar e que certamente escapa à minha capacidade de prever, por mais que eu conheça as intenções de seus proponentes, não é surpreendente. Ele surge onde declarações desconcertantes complementam um silêncio oficial cada vez mais denso, onde a lacuna entre programa e governo deixa de ser uma nuance e se torna uma fratura.

Não se trata de fomentar a fragmentação – a Frente Ampla nasceu com vocação para a síntese, não para panelinhas – mas sim de salvaguardar a coerência histórica que “as contradições da política do mundo real” (como Seregni gostava de dizer) por vezes corroem. Num contexto em que a plataforma afirma que o país está ameaçado pelo avanço da extrema-direita regional e global, é talvez lógico que alarmes internos também soem quando o próprio governo se desvia dessa bússola.

Se “as Bases…” denunciam expressamente a ofensiva reacionária (p. 97-98), como não seria desconcertante que, perante essa ofensiva, o governo opte por cautela discursiva, elogios macroeconómicos ao seu vizinho libertário e uma política externa que beira a equidistância geométrica?

Quando um projeto começa a se justificar por meio de concessões, o movimento popular – esse sopro coletivo que nenhuma pesquisa capta – reacende palavras proibidas: justiça, igualdade, anti-imperialismo, redistribuição, direitos humanos sem diplomacia vacilante. Palavras que a plataforma abraça de todo o coração, mas que o governo profere em sussurros.

Não sei o que o futuro reserva para “Precisamos Conversar”, mas hoje não é uma ameaça nem uma dissidência: é um lembrete. Uma Frente Ampla sem uma voz de esquerda é uma casca vazia, que apenas administra a resignação. Não posso deixar de aplaudir a proposta de Orsi por um estilo de comunicação direto e pragmático, mas simplesmente praticá-lo não alcançará a profundidade de comunicação que Pepe Mujica atingiu, mesmo que ele não fosse imune a fazer mais de uma declaração absurda.

É essencial evitar improvisações ou opiniões puramente pessoais quando há um mandato programático claro no horizonte. O programa, esse esboço esquecido, que menciona “igualdade” onze vezes em apenas 100 páginas e usa “direitos humanos” como uma bússola, não como um ornamento, exige mais do que silêncio para funcionar: exige convicção.

Se o governo optou pelas sombras e por certa apreensão diante da mudança, serão os seus membros de base que reabrirão as janelas. Não para destruir nada, mas para deixar entrar ar fresco e, com ele, a possibilidade de o projeto voltar a ser aquilo que prometeu: uma força capaz de transformar, e não de apaziguar; de inflamar, e não de acalmar.

Porque o silêncio nunca foi uma opção. Falar abertamente, desta vez, é a maior forma de lealdade.

*Emilio Cafassi é professor sênior de sociologia na Universidade de Buenos Aires. Autor, entre outros livros, de Olla a presion: Cacerolazos, piquetes y asambleas sobre fuego argentino (Libros del Rojas). [https://amzn.to/442vaxw]

Tradução: Artur Scavone.


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