Petróleo no chão – parte 2

Imagem: Kent Tupas
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Por ANA CAROLINA TRINDADE GUILHEN & HENRIQUE N. SÁ EARP*

Manter o petróleo no subsolo é uma decisão economicamente superior, que evita os trilhões em investimentos de risco da Margem Equatorial e direciona capital para empregos verdes e soberania energética já

A proposta do “petróleo no chão”, respaldada pela experiência no Equador, não se limita a um ideal ecológico, mas se sustenta como uma estratégia de valorização e precificação da escassez. Teoricamente, é possível monetizar a renúncia à exploração; no entanto, para que essa alternativa prospere no Brasil, é fundamental expor, com total transparência, o custo de oportunidade da via fóssil.

É nesse sentido que aprofundamos a análise anterior, publicada no site A Terra é Redonda, revelando que a decisão de explorar a Margem Equatorial acarreta em custos (afundados) da extração de petróleo que são muito superiores ao que o discurso oficial da Petrobrás costuma admitir, comprometendo capital e tempo que poderiam ser aplicados imediatamente na construção de um futuro energético limpo e popular.

Os custos (afundados) da extração de petróleo

Qualquer discussão séria sobre um investimento coletivo de grande porte deveria começar pela transparência acerca da escala de capital e tempo necessários para a fruição dos resultados. Só então a população pode sopesar este esforço contra os custos de oportunidade da decisão, ou seja, tudo aquilo que poderíamos obter aplicando os mesmos recursos de outra forma. Este debate público é complexo, pois os custos de perfuração e extração de petróleo no Brasil variam bastante, dependendo de fatores como a localização do poço (em terra ou no mar), a profundidade, as tecnologias necessárias e as características específicas do campo.

Para termos uma ideia de escala, a Petrobras anunciou investimentos – CAPEX (capital expenditures) – para o próximo quinquênio (2024-2028) de US$ 102 bilhões, sendo US$ 91 bilhões correspondentes a projetos em implantação e US$ 11 bilhões para projetos em avaliação (carteira em avaliação), sujeitos a estudos adicionais de financiabilidade antes do início da contratação e execução. Somente na exploração na Margem Equatorial o investimento será de
US$ 3,1 bilhões para exploração de poços de petróleo.[i]

Fonte: CNN Brasil. Imagem da extensão de exploração do petróleo na Margem Equatorial.

Apesar de a Petrobras declarar um investimento de US$ 3,1 bilhões, somente na exploração de poços na Margem Equatorial, analisamos um relatório do grupo de economia e energia da UFRJ de 2016, que demonstra os custos totais do pré-sal para produção de cinco milhões de barris em 2014, o que permite comparação com a exploração na Margem Equatorial, que também é uma exploração offshore. O preço da extração, contudo, depende da escala de produção; o relatório diz que em 2014 os custos de capacidade de produção foram:[ii]


Tabela 1. Preços de plataforma FPSO (Floating Production, Storage and Offloading, navio-plataforma que produz, armazena e escoa petróleo) por capacidade e produção em 2014.

Fonte: Modelo GEE-IBP-Upstream


O custo de abandono representa cerca de 5% do total investido por poço, enquanto os custos para exploração se distribuem entre diversas fases e atividades. A título de exemplo, a tabela abaixo ilustra essa distribuição, sob capacidade produtiva de 120 mil barris/dia:

Tabela 2. Custos totais de produção por atividade em um projeto de pós-sal de 500 milhões de barris (2014)

Fonte: Elaboração própria. Modelo GEE-IBP-Upstream

Os custos totais da extração conforme a Tabela 2 são da ordem de US$ 10,4 bilhões na produção de 500 milhões de barris, o que corresponde a um custo de abandono adicional da ordem de U$500 milhões. O planejamento estratégico da Petrobras pretende perfurar 16 poços na Margem Equatorial, porém os valores podem superar em muito os US$ 3,1 bilhões estimados pela empresa, já que não sabemos a escala de produção por cada poço, nem mesmo a garantia de que todos esses 16 poços serão produtivos.

Por analogia com este projeto offshore no Pré-Sal, que custou portanto US$ 20,8/barril (2014), na mesma proporção os estimados 5,6–6,2 bilhões de barris na Margem Equatorial demandariam investimentos de US$ 116–129 bilhões ao longo da vida útil – ainda subestimados quanto à atualização monetária.

Para além de estimar custos de exploração na Margem Equatorial, fizemos um levantamento também das renúncias fiscais da Petrobras. A renúncia fiscal (ou gasto tributário) é a receita que o governo deixa de arrecadar por meio de isenções, subsídios e benefícios. O Ministério da Fazenda estima que o Brasil abre mão de cerca de R$800 bilhões por ano em renúncias fiscais, entre todos os setores da economia.

Especificamente no setor de Óleo e Gás, um levantamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) registrou R$ 260 bilhões em renúncias fiscais no período de 2015 a 2023. Desse total, a Petrobras foi a mais beneficiada, com R$ 117,2 bilhões, o que representa cerca de 45% do total.[iii] Há também casos específicos de perdão fiscal concedido em acordos judiciais. Por exemplo, em 2021 a Petrobras fechou um acordo que resultou em um perdão fiscal de aproximadamente R$ 600 milhões relativo a uma dívida de royalties no Paraná.

A maior parte dessas renúncias fiscais está ligada a programas federais, como o Repetro (Regime Aduaneiro Especial de Importação e Exportação de Bens Destinados às Atividades de Pesquisa e Lavra das Jazidas de Petróleo e Gás Natural), que isenta a importação de equipamentos e insumos de impostos como PIS e Cofins.

No texto a farsa do outro negro, abordamos esse assunto em detalhes. Apesar de ter a União como acionista majoritária, a Petrobras é uma empresa de capital misto; cabe questionar por que ela deveria beneficiar-se desses subsídios, especialmente em períodos de altos lucros e distribuição de dividendos bilionários a acionistas privados, não-raro estrangeiros.

Transição energética com qualidade de vida e emprego na indústria do futuro

Como alternativa em termos práticos, entre outras possíveis, a aplicação do capital hoje reservado à prospecção e perfuração na Margem Equatorial poderia direcionar-se para uma reconversão domiciliar massiva na Amazônia. Por que não pensar em telhados fotovoltaicos e minirredes para comunidades ribeirinhas, bombas d’água e refrigeração, substituição do GLP e da lenha por fogões elétricos de indução, eficiência energética em escolas e postos de saúde?

Um programa dessa natureza pode ser estruturado com compras públicas escaláveis, crédito popular e cooperativas de energia, formando instaladores locais, inclusive indígenas, quilombolas e ribeirinhos, e ativando imediatamente cadeias de serviços.

A Zona Franca de Manaus e outros polos no Norte-Nordeste podem assumir a montagem de módulos FV, inversores, baterias e cooktops, com conteúdo local e Pesquisa & Desenvolvimento, encurtando a logística e multiplicando postos de trabalho nesta indústria do futuro.

O retorno é rápido em emprego e renda (meses, não décadas), redução do gasto familiar com energia e combustível, melhora direta em saúde, água e alimentação – e, de quebra, diminuição das emissões e da pressão sobre a floresta. Tomando como referência um pacote domiciliar (FV 2 kWp + fogão de indução + instalação: ~R$ 13,5 mil/casa), com prêmio off-grid de R$ 11,5 mil para 82 mil lares remotos, atender toda a população de baixa renda da Região Norte (aproximadamente 40% dos 6,54 milhões de domicílios) custaria R$ 36 bilhões, ou U$ 6,5 bilhões, menos de 6% dos investimentos estimados para extração do petróleo na Margem Equatorial!

Além deste, diversos outros cenários promissores podem ser formulados, caso a inventividade do povo trabalhador brasileiro seja democraticamente convidada à discussão.

Exploração incerta x petróleo no chão

Postos lado a lado, os dois caminhos mostram com nitidez o que é certo, o que é meramente prometido e o que é convenientemente omitido. Se, por um lado, a exploração da Margem Equatorial acena com receita bruta potencial entre US$ 770 bilhões e US$ 2,3 trilhões (ou US$ 409,9 bilhões na conta simples Brent × volume), mas apenas a partir de 2030; carrega um passivo climático de 2,72 bilhões de toneladas de CO₂ (equivalentes a 590 milhões de carros/ano) e se apoia num histórico de baixa conversão de renda petrolífera em políticas públicas e efeitos muito limitados sobre o Índice de Desenvolvimento Humano regional.

Do ponto de vista fiscal, o setor acumulou R$ 260 bilhões (2015–2023) em subsídios (sendo R$ 117,2 bilhões à Petrobras). Onde ainda faltam valores específicos para a Margem Equatorial, extrapolando dados do Pré-Sal estimamos os investimentos em US$ 121,8–135,5 bilhões entre vida útil e descomissionamento, além dos US$ 3,1 bilhões já previstos para prospecção. Isso sem contabilizar custos de atraso e licenciamento, passivos de derrames e litigância e a volatilidade futura do Brent.

Já o “petróleo no chão” elimina as emissões e os riscos ecológicos, libera investimento imediato para reconversão domiciliar na Amazônia, com emprego e renda de curto prazo e queda do gasto familiar. Esse cenário monetiza a renúncia via green royalties de US$ 7–10 por barril, podendo chegar a US$ 43,4–62,0 bilhões, possivelmente ancorados por um fundo fiduciário da ordem de US$ 19 bilhões.

O Brasil ainda dispõe de alternativas internas compatíveis com a transição: tributação de super-ricos (R$ 44,8–260 bilhões/ano) e revisão de renúncias (R$ 800 bilhões/ano). Faltaria ainda estimar, com desenho institucional, o “prêmio de escassez” (títulos de renúncia) e a curva de retorno de um programa massivo de reconversão (compras públicas, crédito popular) criando escala industrial na Zona Franca de Manaus e outros polos na Região Norte-Nordeste.

Posta a escolha na perspectiva do povo brasileiro, o que é certo e imediato no petróleo no chão – benefícios distribuídos, emprego rápido, energia barata e compatibilidade climática – contrasta com um ganho bruto, tardio e arriscado da exploração, cujos custos e passivos tendem a recair, como sempre, sobre a sociedade.

Em suma, manter o petróleo da Margem Equatorial no chão não é renúncia ao desenvolvimento: é uma decisão economicamente racional, climaticamente obrigatória e socialmente justa. Mostramos que o modelo fóssil atual drena recursos públicos, amplia riscos socioambientais e não entrega progresso; que a renúncia pode ser convertida em financiamento estável, liderança internacional e empregos de qualidade. Além disso, ela melhora a vida real – luz, água, saúde e renda – especialmente na Amazônia.

Cabe ao Brasil escolher qual riqueza quer produzir: a volatilidade do barril ou o Bem Viver. Propomos, então, uma agenda imediata: frear a abertura de nova fronteira petrolífera, constituir um fundo robusto para a transição energética e direcionar investimentos já previstos para soluções limpas e populares.

É essa a escolha histórica diante de nós, e por ela convocamos a sociedade a mobilizar-se urgentemente pelo petróleo no chão.[iv]

*Ana Carolina Trindade Guilhen é bióloga, doutora em clínica médica pela Unicamp e MBA em Gestão Ambiental pela Poli-USP.

*Henrique N. Sá Earp é professor no Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica da Unicamp.

Para ler a primeira parte deste artigo, clique em https://aterraeredonda.com.br/petroleo-no-chao/

Notas


[i] https://agencia.petrobras.com.br/w/institucional/petrobras-aprova-plano-estrategico-2024-2028-com-investimentos-de-us-102-bilhoes

[ii] https://www.ibp.org.br/personalizado/uploads/2016/07/TD-custosecompetitividade.pdf

[iii] https://inesc.org.br/wp-content/uploads/2024/09/levantamento-inedito-mostra-renuncias-bilionarias-para-industria-petroleo-docx.pdf

[iv] Agradecemos especialmente pela leitura e comentários feitos pela Sabrina Fernandes e pelo Luiz Marques que tanto contribuíram com a construção da nossa pesquisa e escrita deste artigo


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