As armas da crítica e a crítica das armas

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por PAULO SILVEIRA*

Memória da concessão do título de doutor “honoris causa” a Florestan Fernandes, na Universidade de Coimbra

Fim de junho. O verão já ameaçava queimar. Pequena Praça de Coimbra. Vou chamá-la de Praça da Revolução, da Revolução dos Cravos. Logo ali em frente, não demoraria muito, seria inaugurado um pequeno museu. Digamos, por que não, Museu da Liberdade. O edifício, ainda guardando um aspecto sombrio, era uma antiga sede da PIDE, a polícia política portuguesa – lugar de horror e de tortura. Guardadas as devidas proporções, sucedeu o mesmo com o edifício onde funcionava o antigo DOPS aqui em São Paulo.

Nesta pequena praça, um punhado de pessoas. Não muito mais do que uma centena. Naquele momento, discursava o então presidente de Portugal, o doutor Mario Soares. Avisto logo ali em frente um sujeito que julgo identificar como o major Otelo Saraiva de Carvalho. Justamente aquele que dera início à Revolução de Abril, sublevando as tropas sob seu comando.

Não perderia essa ocasião por nada. Fui até ele, confirmei a identidade; era ele mesmo: o major Otelo Saraiva de Carvalho, e me permiti cumprimentá-lo.

Voltando ao meu lugar, Florestan Fernandes, que estava próximo, havia percebido em meu movimento algo da ordem de um reconhecimento simbólico. Imediatamente me perguntou quem era a pessoa que eu fora cumprimentar. Quando lhe contei quem era, Florestan foi incisivo: já que você o cumprimentou, leve-me até lá e me apresente.

Peso sobre os ombros! Apresentar Florestan Fernandes a Otelo Saraiva de Carvalho não deixou de ser para mim algo de extraordinário. Dois grandes lutadores, de continentes distintos. Um manejando as armas da crítica e o outro a crítica das armas. Ambos almejando, cada um a seu modo, no seu canto e no seu tempo, a queda da longa ditadura de Salazar: um amanhã que finalmente chegara e que se chamou Revolução dos Cravos. Seu dia é o “25 de Abril”, sua canção, “Grândola Vila Morena”.

Cumpri a formalidade da apresentação que Florestan havia pedido. Otelo contou a Florestan que não morava em Coimbra e que estava ali justamente para assistir à solenidade de outorga do título de doutor “honoris causa” que lhe seria concedida no dia seguinte na Universidade de Coimbra.

No dia seguinte, de fato lá estava Otelo Saraiva de Carvalho numa capela da Universidade de Coimbra.

Desta vez, quem fazia o discurso de apresentação do candidato ao colegiado da Universidade era o professor proponente do título, Boaventura de Sousa Santos. Num dado momento recordou alguns aspectos da biografia de Florestan, que, filho de uma camponesa portuguesa e analfabeta, começou a vida como engraxate e, depois, pouco a pouco, e com uma vontade férrea, lapidou a si mesmo: pelas palavras, pelos livros, pela leitura e pela escrita e, claro, escolhendo e fazendo amigos, tantos.

Ali por perto, dois desses amigos de Florestan, dos mais antigos, e que, por isso, conheciam muito bem sua biografia. Miguel Urbano Rodrigues e Fernando Henrique Cardoso. O primeiro, um comunista histórico do partido português; Fernando Henrique, à época, senador da república. Ambos, por escolha, vestidos de uma couraça de proteção contra a demonstração de seus próprios sentimentos.

Heloísa Fernandes, ao meu lado, chamou-me a atenção para as lágrimas que, em vão, Miguel Urbano e Fernando Henrique tentavam disfarçar. Talvez estivessem tocados pela fala de Boaventura recordando a carreira do menino engraxate que nesse momento estava se tornando doutor honoris causa da prestigiosa e multicentenária Universidade de Coimbra.

*Paulo Silveira é psicanalista e professor aposentado do departamento de sociologia da USP. Autor, entre outros livros, de Do lado da história: uma leitura crítica da obra de Althusser (Polis).

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Bento Prado Jr. Osvaldo Coggiola Eliziário Andrade Alexandre Aragão de Albuquerque Samuel Kilsztajn Jorge Luiz Souto Maior Michael Roberts Eleonora Albano André Singer Benicio Viero Schmidt Michael Löwy Gilberto Lopes Paulo Fernandes Silveira Ricardo Abramovay Sandra Bitencourt Thomas Piketty Luiz Renato Martins Alexandre de Lima Castro Tranjan Paulo Nogueira Batista Jr Érico Andrade João Lanari Bo Jean Marc Von Der Weid Valerio Arcary Plínio de Arruda Sampaio Jr. Marilena Chauí Luciano Nascimento Luiz Marques Luiz Roberto Alves Luís Fernando Vitagliano Salem Nasser Paulo Martins Leda Maria Paulani Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Ari Marcelo Solon João Sette Whitaker Ferreira Rodrigo de Faria Renato Dagnino Tadeu Valadares Daniel Brazil Alysson Leandro Mascaro Luiz Werneck Vianna José Costa Júnior Mário Maestri Liszt Vieira José Machado Moita Neto Matheus Silveira de Souza Bernardo Ricupero Carla Teixeira João Feres Júnior Bruno Machado Ricardo Musse Vladimir Safatle Ronaldo Tadeu de Souza Slavoj Žižek José Dirceu Igor Felippe Santos Celso Frederico Marcos Silva Gabriel Cohn Marjorie C. Marona Daniel Afonso da Silva Marilia Pacheco Fiorillo Atilio A. Boron José Geraldo Couto João Carlos Loebens Claudio Katz Fernando Nogueira da Costa João Carlos Salles Leonardo Boff Paulo Capel Narvai Chico Whitaker Everaldo de Oliveira Andrade Fábio Konder Comparato Lincoln Secco José Luís Fiori Manchetômetro Anselm Jappe Bruno Fabricio Alcebino da Silva Leonardo Sacramento Gerson Almeida Juarez Guimarães João Paulo Ayub Fonseca Airton Paschoa Andrew Korybko Francisco de Oliveira Barros Júnior Afrânio Catani Eduardo Borges Boaventura de Sousa Santos Luiz Eduardo Soares Rafael R. Ioris Armando Boito Vanderlei Tenório Henry Burnett Jorge Branco Mariarosaria Fabris Jean Pierre Chauvin Alexandre de Freitas Barbosa Marcelo Módolo Rubens Pinto Lyra Leonardo Avritzer Otaviano Helene Gilberto Maringoni Carlos Tautz João Adolfo Hansen Vinício Carrilho Martinez Michel Goulart da Silva Berenice Bento Marcus Ianoni Dênis de Moraes José Raimundo Trindade Flávio Aguiar Daniel Costa Annateresa Fabris Remy José Fontana Eugênio Bucci Luis Felipe Miguel Maria Rita Kehl José Micaelson Lacerda Morais Eugênio Trivinho Ricardo Fabbrini Andrés del Río Kátia Gerab Baggio Sergio Amadeu da Silveira Heraldo Campos Tales Ab'Sáber Marcos Aurélio da Silva Julian Rodrigues Celso Favaretto Tarso Genro Yuri Martins-Fontes Antonio Martins Luiz Carlos Bresser-Pereira Milton Pinheiro Valerio Arcary Antônio Sales Rios Neto Elias Jabbour Eleutério F. S. Prado Francisco Pereira de Farias Ladislau Dowbor Luiz Bernardo Pericás Henri Acselrad Antonino Infranca Lucas Fiaschetti Estevez Dennis Oliveira Chico Alencar Priscila Figueiredo Flávio R. Kothe Ronald León Núñez Paulo Sérgio Pinheiro Walnice Nogueira Galvão Caio Bugiato Denilson Cordeiro Fernão Pessoa Ramos Lorenzo Vitral Manuel Domingos Neto André Márcio Neves Soares Ronald Rocha Francisco Fernandes Ladeira Ricardo Antunes Marcelo Guimarães Lima

NOVAS PUBLICAÇÕES