A busca do leitor sobrevivente

image_pdf

Por PAULO GHIRALDELLI*

Entre a extinção do leitor de Hegel e a profecia de Nietzsche sobre a imprensa, emerge a figura do videota: o homem da tela, cuja interação aloprada com o digital molda uma esfera pública fraturada e regida pela pós-verdade

1.

Eugênio Bucci saiu à procura do leitor de jornais que Hegel consagrou, o cidadão racional em busca de fatos e argumentos. Ao escrever sobre isso, Eugênio Bucci desconfiou que podia não ser lido. Não existiria mais esse leitor. Assim, seu artigo estaria sendo notado apenas por alguma máquina que atualmente faz o serviço de clipagem que, por sua vez, alimenta outras máquinas, aquelas do marketing.

Nesse enlace, espera-se que alguma informação chegue ao ser vivo de carne osso dotado de alguma massa encefálica funcionante, e que este possa agir como consumidor, movido por um cutucão passional. Nessa figura, Eugênio Bucci acredita. Ela existe. Ah, só para esclarecer: eu sou o leitor de Eugênio Bucci que ele qualifica como quimera. Sinto-me de carne e osso. Possuo a noção, escolar é claro, de que tenho algo em mim que pensa.

Eu li o Eugênio! Conheço o leitor desenhado por Hegel. Acho que fui um deles. Havia em minha mesa um café quente, um jornal em papel, como existiu na mesa dos meus avós. Um dia, isso acabou. Não consigo mais recordar se acabou antes ou depois do jornal impresso sumir. O certo é que em uma noite nada alvissareira até mesmo as bancas de jornais e revistas sumiram.

Desapareceram por meio de um itinerário menos sofrido que o dos cinemas: estes tiveram de virar salas de filme pornô, templo evangélico, estacionamento de automóveis e, enfim, lugares a serem tomados pelos sem-teto ou simplesmente ganharam a demolição. As bancas fizeram uma trajetória de calvário menor: venderam doces, Playboys velhas e, depois, novamente jornais: para xixi de cachorro. Finalmente, então, foram desativadas. Nas cidades maiores, permanecem como trambolho de lata de modo que a preservar o museu a céu aberto. Muitos jovens já não sabem o que é aquilo.

Hegel descreveu não o século em que ele viveu, mas sim o próximo, o século no qual nasci. O século que Eugênio nasceu. Eugênio Bucci e eu somos quase da mesma idade. Na verdade, sou um ano mais velho. Não somos os que tiveram a adolescência nos anos sessenta, mas sim nos anos setenta. Quando fizemos o colégio, Richard Nixon decretou o fim do padrão ouro para o dólar, a moeda mundial continuou sendo a moeda americana, mas sem qualquer preocupação com lastro material.

Foram as portas abertas para o câmbio variável, para as flexibilizações que caracterizaram o neoliberalismo e a financeirização da economia mundial. A cereja nesse bolo foi a internet e o surgimento de uma nova infosfera, esta que, agora sob a alavanca da Inteligência artificial, transforma rapidamente o que entendemos por mídia. Foi nessa passagem de meio século que o leitor descrito por Hegel foi tendo sua morte anunciada. Todavia, se nos recordarmos do século XIX para além da dialética, podemos notar aquele que vislumbrou a nossa época mais recente, o século XXI. Nietzsche pensou em outro tipo de leitor de jornais.

2.

Foi Friedrich Nietzsche quem ridicularizou o leitor de Hegel com o célebre aforismo sobre a imprensa. Ele perguntou: como que os jornais poderiam dizer a verdade se traziam o mesmo número de páginas todos os dias? Haveria o mesmo número de fatos todos os dias? Para muitos jornais, essa crítica (na verdade, um chiste) serviu até a semana passada. Acho que o Estadão funcionou assim.

Nietzsche foi o filósofo que desconfiou de um tipo de credulidade que podia se alastrar. Não se trata de falar de epidemia de fake news, mas sim do que hoje vivemos: parece que, para a atualidade, podemos falar em época da pós-verdade, não? Os critérios do que tomávamos como verdade perderam a importância. Jean Baudrillard falou que iríamos ver a repetição de tipo fractal. Gilles Deleuze disse que toda repetição é também produção, que o simulacro não é cópia. Sim, Nietzsche não escreveu que o jornal dizia as mesmas coisas, ele disse que o número de páginas era igual! O eterno retorno é um conceito que tem seus truques.

Alguém poderia objetar: nem Hegel e nem Nietzsche são válidos. Afinal, o leitor do “mesmo número de fatos” existe tão pouco quanto o leitor racionalmente bem informado de Hegel. A infosfera atual trouxe o leitor par excellence: o manchete man, o homem que só lê manchetes, e que, apesar de leitor, não vai além do jardineiro Chance, o personagem do romance Being There, de Jerzy Kosinski. O livro foi publicado significativamente em 1970 e traduzido no Brasil como O videota. Em 1979 ganhou sua versão cinematográfica, que chegou às salas brasileiras com o título de Muito além do jardim.

No filme, Peter Sellers interpreta o jardineiro Chance.  Trata-se de um simplório. Ele é jardineiro de uma casa da qual nunca saiu. Não sabia ler. Cuidava do jardim e via TV. Não tinha qualquer contato com o mundo exterior. Quando o dono da casa morre ele se vê obrigado a deixar o lugar. É atropelado e recolhido por uma mulher rica e influente, Eve Rand, papel de Shirley MacLaine.

A partir daí as coisas começam a acontecer: cada frase banal que ele pronuncia é interpretada como de grande sabedoria; cada gesto de inaptidão é visto como idiossincrasia de rico, nobre ou gênio. Quando fica em silêncio, com ar abobado, cada pessoa presente inicia uma conjectura: o que estaria ele querendo dizer ao não dizer nada?

Seu caminho, claro, não poderia ser outro: influência sobre a Casa Branca. Nem mesmo a intimidade lhe tirava a autoridade adquirida e por ele mesmo jamais percebida. Em uma cena que seria de sexo, ele se mostra inapto e diz o que realmente o apetece: “eu gosto de ver”. Ele queria apenas ver TV. E eis que a moça o entende como um sofisticado adepto do voyeurismo. Ela se despe e tenta uma masturbação! Mas o jardineiro Chance, criado desde pequeno pela tela, era o que tinha que ser: assexuado.

3.

Caso Jair Bolsonaro e Donald Trump não fossem os calhordas que são, nós os veríamos como sendo do tipo do jardineiro. Imbecis não propriamente assexuados, mas claramente impotentes. Jair Bolsonaro perguntando o que é Golden Shower ou Donald Trump mudando o nome do Golfo do México colocam Chance na atualidade. Mas, nos anos 1970, nós não pensávamos em simplórios como podendo fazer o mal. Simplórios eram simplórios. Devíamos ter lido melhor Platão, pois Sócrates sempre desconfiou que o não inteligente acaba fazendo o pior também do ponto de vista moral.

A infosfera atual nos deu Donald Trump e Jair Bolsonaro com dotes como aqueles que Chance ganhou, quando passou a se tornar próximo dos círculos de poder. O que vivemos não é a ficção virando realidade, mas pastiche se tornando factual. Não devemos nos esquecer que muitos compraram indicações de leituras desses parvos, e que Olavo de Carvalho chegou a indicar ministro da Educação. Nos Estados Unidos, muitos achavam, antes de Donald Trump, que Bush filho era o videota. Eles não sabiam o quanto a infosfera atual poderia tornar a realidade do jardineiro a hiperrealidade real de nossos dias.

O videota de hoje não é mais o homem passivo diante da TV. Ele é o homem ativo, com o polegar ou o indicador roçando a tela de seu celular como uma ninfomaníaca incapaz de parar sua masturbação. Chance se deleitava com o controle remoto da TV. Esse exercício, o de passar o dedo na tela como um chipanzé aloprado era esquisito até ontem, agora é patético, uma vez que o conteúdo todo é gerado por máquinas que pasteurizam tudo. Elas impõem uma semelhança de modelos que fascina os olhos já treinados por um século de tela. A TV na sala era a antessala do chipanzé do selfie.

Entre Hegel e Nietzsche, não temos como ainda não render homenagem ao segundo, no caso de nossa compreensão da infosfera. Há algo no desenho que caracteriza o leitor, feito por Nietzsche, que não desapareceu. Se existe um leitor, ele é o homem descrito por Nietzsche: ele se conforma com a ideia de que há o mesmo número de fatos, só que agora, sem as páginas ou editores, apenas a máquina dando o movimento infinito às imagens que ele escolhe (ou pensa que escolhe) na sua tela. Não me vejo como alguém superior por ainda ser um leitor. Sinto-me como naufrago sendo engolido por ondas de Tik Tok.

A Austrália é o único país realmente bucciano. Os líderes de lá baniram as telas da escola. Eles esperam que a geração pós geração Z saiba quem foi Hegel ou Nietzsche. Eles esperam que diminua o número de tontos que criam canais na internet e compram inscritos, participando da enganação que é a autoenganação. Há uma tentativa de fazer parar essa bola de neve que rola a ladeira, engolindo mais e mais gente na necessidade de se comportar histericamente, ou seja, vivendo a imposição de que cada um de nós tem de se comportar teatralizando a si mesmo.

Para terminar: ao verem ou reverem Muito além do jardim, notem que a música chave é a sinfonia de Richard Strauss, Assim falava Zarathustra, feita em homenagem ao livro homônimo de Nietzsche. Essa sinfonia se tornou icônica no cinema, após Kubrik tê-la usado em 2001: uma odisseia no espaço.

*Paulo Ghiraldelli, filósofo, youtuber e escritor, é pós-doutor em Medicina Social pela UERJ. Autor, entre outros livros, de Capitalismo 4.0: sociedades e subjetividades (CEFA Editorial) [https://amzn.to/3HppANH].


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
C O N T R I B U A

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
Estoicismo e mindfulness
16 Dec 2025 Por PAULO VITOR GROSSI: Considerações sobre técnicas mentais para a sobrevivência humana no século XXI
2
Por uma escola com exigência intelectual
19 Dec 2025 Por JEAN-PIERRE TERRAIL: Prefácio do autor
3
A riqueza como tempo do bem viver
15 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: Da acumulação material de Aristóteles e Marx às capacidades humanas de Sen, a riqueza culmina em um novo paradigma: o tempo livre e qualificado para o bem viver, desafio que redireciona o desenvolvimento e a missão do IBGE no século XXI
4
Escalas da liberdade: Hegel e a questão social do nosso tempo
18 Dec 2025 Por TERRY PINKARD: Prefácio ao livro recém-lançado de Emmanuel Nakamura
5
A crise do combate ao trabalho análogo à escravidão
13 Dec 2025 Por CARLOS BAUER: A criação de uma terceira instância política para reverter autuações consolidadas, como nos casos Apaeb, JBS e Santa Colomba, esvazia a "Lista Suja", intimida auditores e abre um perigoso canal de impunidade, ameaçando décadas de avanços em direitos humanos
6
Norbert Elias comentado por Sergio Miceli
14 Dec 2025 Por SÉRGIO MICELI: Republicamos duas resenhas, em homenagem ao sociólogo falecido na última sexta-feira
7
A contradição entre o discurso nacionalista e a prática neoliberal do governo Lula
13 Dec 2025 Por VICTOR RIBEIRO DA SILVA: A escolha política por um neoliberalismo de "rosto humano", visível no Arcabouço Fiscal, no leilão do petróleo equatorial e na hesitação com a Venezuela e a Palestina, expõe uma soberania apenas discursiva, que evita confrontar os pilares do poder
8
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
9
Devastação materna – um conceito psicanalítico
16 Dec 2025 Por GIOVANNI ALVES: Comentário sobre o livro recém-lançado de Ana Celeste Casulo
10
Benjamim
13 Dec 2025 Por HOMERO VIZEU ARAÚJO: Comentário sobre o livro de Chico Buarque publicado em 1995
11
Violência de gênero: além do binarismo e das narrativas gastas
14 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Feminicídio e LGBTfobia não se explicam apenas por “machismo” ou “misoginia”: é preciso compreender como a ideia de normalidade e a metafísica médica alimentam a agressão
12
Amoreira e outros poemas
15 Dec 2025 Por RAQUEL NAVEIRA: Poemas
13
A dança de guerra do Ocidente
17 Dec 2025 Por GILBERTO LOPES: A dança de guerra baseada na expansão da OTAN e na demonização da Rússia ignora os avisos históricos, arriscando uma conflagração final em nome de um mundo unipolar que já se mostra falido
14
Manuela D’Ávila no PSol
20 Dec 2025 Por VALERIO ARCARY: A mudança de Manuela para o PSol sinaliza um projeto que visa derrotar a extrema-direita e construir uma alternativa de esquerda para além da conciliação de classes do governo Lula
15
Marx, automação e a busca pelo tempo livre emancipatório
13 Dec 2025 Por THIAGO TURIBIO: O percurso do pensamento de Marx, dos Grundrisse a O Capital, delineia a automação como condição material para o tempo livre, mas a realidade do capitalismo converte a máquina em arma de guerra contra a classe trabalhadora
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES