Destruir monumentos

Imagem: Oto Vale
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Por SLAVOJ ŽIŽEK*

Pessoas brancas politicamente corretas que praticam autodesprezo não contribuem na luta contra o racismo.

Destruir monumentos e renegar o passado não é o caminho para lidar com o racismo e demonstrar respeito a pessoas negras. Sentir-se culpado leva a um tratamento condescendente das vítimas e alcança pouco.

Foi amplamente noticiado na mídia o quanto, em 21 de Junho de 2020, as autoridades alemãs ficaram chocadas com um tumulto de “escalas sem precedentes” no centro de Stuttgart: entre 400 e 500 foliões causaram distúrbios durante toda a noite, quebrando janelas, saqueando lojas e atacando a polícia.

A polícia – que precisou de quatro horas e meia para conter os tumultos – descartou quaisquer motivos políticos para as “cenas de guerra civil”, descrevendo os perpetuadores como pessoas da “cena festiva ou de eventos”. Não havia, é claro, bares nem baladas para eles irem, por causa do distanciamento social – logo, eles estavam nas ruas.

Tal desobediência civil não tem sido limitada à Alemanha. Em 25 de Junho, milhares se aglomeraram em praias na Inglaterra, ignorando o distanciamento social. Em Bournemouth, na costa sul, noticiou-se: “A área foi tomada por carros e banhistas, levando a um congestionamento. Catadores de lixo também sofreram abusos e intimidações enquanto tentavam remover as montanhas de dejetos a beira-mar, e houve um número de incidentes envolvendo abuso de álcool e brigas”.

É possível associar essas explosões de violência à imobilidade imposta pelo distanciamento social e pela quarentena, e é razoável esperar que veremos incidentes similares ao redor do mundo. Pode-se argumentar que a onda recente de protestos antirracistas também segue uma ordem similar: pessoas ficam aliviadas ao lidar com algo que acreditam poder desviar o foco de sua atenção para além do coronavírus.

Estamos, é claro, lidando com tipos diferentes de violência. Na praia, as pessoas simplesmente queriam desfrutar de suas férias de verão, e reagiram violentamente contra aqueles que queriam lhes prevenir.

Em Stuttgart, a satisfação era gerada pela pilhagem e pela destruição – pela própria violência. Mas, o que vimos ali foi, no máximo, um carnaval de violências, uma explosão de raiva cega (mesmo que, como esperado, alguns esquerdistas tenham tentado interpretá-la como um protesto contra o consumo e o controle policial). Os protestos antirracistas (amplamente não-violentos) simplesmente ignoraram as ordens das autoridades na busca por uma causa nobre.

É claro, esses tipos de violência predominam nas sociedades Ocidentais – estamos ignorando aqui a violência mais extrema que já acontece e que, certamente, explodirá em países como o Yemen, Afeganistão e Somália. “Esse verão inaugurará algumas das piores catástrofes que o mundo jamais viu se a pandemia continuar a se espalhar rapidamente pelos países já convulsionados pela violência crescente, pela pobreza aprofundada e pelo espectro da fome”, noticiou o The Guardian essa semana.

Há um elemento chave compartilhado por esses três tipos de violência, apesar de suas diferenças: nenhum deles expressa um programa sociopolítico consistente. Os protestos antirracistas podem até parecer expressar, mas eles falham na medida em que estão dominados pela paixão politicamente correta de apagar os traços do racismo e do sexismo – uma paixão que se aproxima de seu oposto, o controle neo-conservador do pensamento.

A lei aprovada em 16 de Junho pelos parlamentares da Romênia proíbe todas as instituições educacionais de “propagar teorias e opiniões sobre identidade de gênero segundo as quais o gênero é um conceito separado do sexo biológico”. Até Vlad Alexandrescu, um senador de centro-direita e professor universitário, notou que, com essa lei, “a România se alinha a posições promovidas pela Hungria ou pela Polônia e se torna um regime introdutor do policiamento de ideias”.

A proibição direta de teorias de gênero é, certamente, parte do programa da nova direita populista, mas, agora, ela ganhou novo embalo com a pandemia. Uma reação típica de um populista da nova direita à pandemia é assumir que sua eclosão é, ultimamente, o resultado de nossa sociedade global, onde misturas multiculturais predominam. A forma de lutar contra ela é, então, tornar nossas sociedades mais nacionalistas, enraizadas em uma cultura particular com valores firmes e tradicionais.

Deixemos de lado o óbvio contra-argumento de que países fundamentalistas como a Arábia Saudita e o Qatar estão sendo arrasados, e foquemos no procedimento de “policiamento de ideias”, cuja expressão última foi o famoso Index Librorum Prohibitorum (Lista dos Livros Proibidos), uma coleção de publicações consideradas heréticas ou contrárias à moralidade pela Sagrada Congregação do Index, de modo que Católicos eram proibidos de lê-los sem permissão.

Essa lista esteve em operação (e foi regularmente atualizada) desde os princípios da modernidade até 1966, e todos os pensadores que realmente importaram para a cultura europeia fizeram, em algum momento, parte dela. Como meu amigo Mladen Dolar comentou alguns anos atrás, se você imaginar a cultura europeia sem todos os livros e autores que estiveram, em algum momento, na lista, o que sobra é pura terra devastada.

A razão pela qual eu menciono isso é que eu penso que o recente impulso de limpar nossa cultura de todos os traços de racismo e sexismo flerta com o perigo de cair na mesma armadilha do index da Igreja Católica. O que sobra se descartamos todos os autores nos quais encontramos traços de racismo e anti-feminismo? Quase literalmente todos os grandes filósofos e escritores desaparecem.

Tomemos Descartes, que, em certo momento, esteve no index católico, mas também é visto, hoje, por muitos como o filósofo que deu origem à hegemonia Ocidental, que é eminentemente racista e sexista.

Não podemos esquecer que a experiência de fundamentação da posição cartesiana da dúvida universal é precisamente uma experiência ‘multicultural’ de como a própria tradição de alguém não é mais do que aquilo que aparece, para nós, como as tradições ‘excêntricas’ dos outros. Conforme ele escreveu em seu ‘Discurso do Método’, ele reconheceu, no decorrer de suas viagens, que tradições e costumes que são “contrários aos nossos nem por isso são bárbaros ou selvagens, e que muitos, tanto quanto nós, usam da razão”[i].

É por isso que, para um filósofo cartesiano, raízes étnicas e identidades nacionais simplesmente não são categorias da verdade. É por isso, também, que Descartes imediatamente ficou popular entre as mulheres: de acordo com um de seus primeiros leitores, o cogito – o sujeito de puro pensamento – não tem sexo.

As declarações atuais de que identidades sexuais são socialmente construídas e não biologicamente determinadas apenas são possíveis contra o pano de fundo da tradição Cartesiana; não existe feminismo moderno e antirracismo sem o pensamento de Descartes.

Então, apesar de seus ocasionais lapsos racistas e sexistas, Descartes merece ser celebrado, e devemos aplicar o mesmo critério para todos os grandes nomes de nosso passado filosófico: de Platão e Epicuro a Kant e Hegel, Marx e Kierkegaard… O feminismo moderno e o antirracismo emergiram dessa longa tradição emancipatória, e seria pura loucura abandonar essa nobre tradição nas mãos dos populistas e conservadores obscenos.

E o mesmo vale para diversas figuras políticas disputadas. Sim, Thomas Jefferson tinha escravos e se opôs à revolução do Haiti – mas ele dispôs as fundações político-ideológicas da posterior libertação negra. E sim, ao invadir as Américas, a Europa Ocidental causou o que talvez tenha sido o maior genocídio da história mundial. Mas o pensamento Europeu lançou as bases político-ideológicas para que nós hoje possamos ver a dimensão total desse horror.

E não se trata apenas da Europa: sim, enquanto o jovem Gandhi lutava na África do Sul por direitos iguais para os indianos, ele ignorava a condição dos negros. Mas, de todo modo, ele liderou bem sucedidamente o maior movimento anticolonial.

Então, enquanto devemos ser impiedosamente críticos de nosso passado (e especialmente do passado que continua em nosso presente), não devemos sucumbir ao autodesprezo – o respeito aos outros baseado em autodesprezo sempre, e por definição, é falso.

O paradoxo é que em nossas sociedades, as pessoas brancas que participam em protestos antirracistas são majoritariamente pessoas de classe média-alta que gozam hipocritamente de sua culpa. Esses manifestantes talvez devam aprender a lição de Frantz Fanon, que certamente não pode ser acusado de não ser suficientemente radical:

“Todas as vezes em que um homem fizer triunfar a dignidade do espírito, todas as vezes em que um homem disser não a qualquer tentativa de opressão do seu semelhante, sinto-me solidário com seu ato. De modo algum devo tirar do passado dos povos de cor minha vocação original. (…)  Minha pele negra não é depositária de valores específicos. (…) Eu, homem de cor, não tenho o direito de procurar saber em que minha raça é superior ou inferior a uma outra raça. Eu, homem de cor, não tenho o direito de pretender a cristalização, no branco, de uma culpa em relação ao passado de minha raça. Eu, homem de cor, não tenho o direito de ir atrás dos meios que me permitiriam pisotear o orgulho do antigo senhor. Não tenho nem o direito nem o dever de exigir reparação para meus ancestrais domesticados. Não existe missão negra. Não existe fardo branco. (…) Vou exigir do homem branco de hoje que se responsabilize pelos negreiros do século XVII? Vou tentar por todos os meios fazer nascer a Culpabilidade nas almas? Não sou escravo da Escravidão que desumanizou meus pais.”[ii]

O inverso da culpa (do homem branco) não é a tolerância por seu persistente racismo politicamente correto, famosamente demonstrado no notório vídeo de Amy Cooper que foi filmado no Central Park de Nova Iorque.

Em uma conversa com o acadêmico Russel Sbriglia, ele assinalou que “a parte mais estranha, mais chocante, do vídeo é que ela diz especificamente – tanto para o homem negro antes de ela chamar a polícia quanto para o policial assim que ela está no telefone com ele – que um ‘Afro-americano’ está ameaçando sua vida. É quase como se, tendo dominado o jargão politicamente correto apropriado (‘Afro-americano’, não ‘negro’), o que ela estava fazendo não poderia ser racista”.

Em vez de gozar perversamente de nossa culpa (e, dessa maneira, ser condescendente com verdadeiras vítimas) precisamos de solidariedade ativa: culpa e vitimização nos imobilizam. Apenas nós todos, juntos, tratando a nós e a cada um como adultos responsáveis, poderemos acabar com o racismo e com o sexismo.

*Slavoj Žižek é professor do Instituto de Sociologia e Filosofia da Universidade de Ljubljana (Eslovênia). Autor, entre outros livros, de O ano em que sonhamos perigosamente (Boitempo).

Tradução: Daniel Pavan

 

Notas do tradutor


[i] DESCARTES, René. O Discurso do Método. Trad. João Cruz Costa. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2011.

[ii] FANON, Frantz. Pele Negra Máscaras Brancas. Trad. Renato da Silveira. EDUFBA, Salvador, 2008, p. 187-190.

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