A aceleração dos conflitos em Gaza e na Ucrânia

Imagem: Gizem Gökce
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Por HUGO ALBUQUERQUE*

A análise dos conflitos em Gaza e na Ucrânia revela como a política externa de Donald Trump está impactando o cenário global e exacerbando tensões internacionais

Se o conflito ucraniano foi desenhado e executado pela administração de Joe Biden, tudo para ser uma espécie de obra-prima, obviamente os eventos em Gaza a partir de 2023 fluíram da dinâmica interna da questão palestina, mas em ambos os casos suas consequências – diretas ou indiretas – contribuíram para o retorno de Donald Trump à Casa Branca. Hoje, contudo, ele não consegue se livrar dos conflitos herdados – e possivelmente está piorando-os.

A agenda isolacionista de Donald Trump trouxe um alento inicial por, de um lado, apontar para o término do conflito ucraniano, que ele não iniciou, e do outro lado forçar um cessar-fogo em Israel. Mas em ambos os casos, apesar de que por razões diferentes, Donald Trump vê a aceleração dos conflitos, seja por sua falta de autoridade, o enfraquecimento do poder norte-americano ou por conta de interesses norte-americanos tão maliciosos quanto poderosos.

Gaza é, agora, a capital do século XXI. Uma ilustração perfeita de como o estado de coisas do nosso tempo pode conduzir a um morticínio sem que, por outro lado, nada seja feito porque o sistema global está atado no mais perfeito imobilismo. Mas o impasse no front russo-ucraniano, igualmente, ilustra uma guerra que é retrô e, ao mesmo tempo, ultratecnologia, movimento geopolítico sofisticado e campo de treino de novos armamentos.

Enredado com uma guerra comercial que trouxe mais turbulência e menos respostas do que o esperado, a queda dos preços do petróleo foi como uma “queda do disjuntor” diante da seca internacional de dólares causada pelo travamento do comércio global em abril – junto com a perspectiva de recessão nos EUA. Isso levou à queda da inflação no curto prazo, mas a pressões variadas no futuro, inclusive das pressões da indústria do petróleo.

Donald Trump no olho do furacão do apocalipse

Enquanto mantém tensas negociações com o Irã sobre energia nuclear, com Teerã operando no fio da navalha, sem desarmar seu programa nuclear – o que poderia expor seu país no médio prazo – nem o acelerar – o que poderia levar a um ataque no curto prazo –, obviamente Benjamin Netanyahu deseja a guerra – insana, apocalíptica, mas é o tipo da tensão que o mantém no poder em um país rachado entre diferentes grupos direitistas.

Até as pedrinhas da rua sabem que os republicanos querem, de algum modo, derrubar de forma decisiva o regime dos aiatolás, mas não agora. Na condição atual, como adiantou J. D. Vance ainda em outubro no Tim Dillon Show, isso é impossível agora e poderia comprometer o governo Donald Trump com um atoleiro grande demais – uma vez que um passo em falso de Israel poderia envolver os Estados Unidos diretamente no conflito.

Com o efeito anômico do tarifaço de Donald Trump, com uma queda no valor do dólar seguida de uma incomum e simultânea queda do preço do barril de petróleo, em tese, uma das barreiras para, pelo menos, uma operação militar no Irã estaria removida: haveria um espaço de manobra maior em um cenário inflacionário de uma guerra, na verdade, americano-iraniana. Mas o maior obstáculo, este estratégico-militar, remanesce.

Israel, de todo modo, pressiona, violando o cessar-fogo na Palestina, massacrando habitantes famintos de Gaza enquanto avança com os assentamentos ilegais na Cisjordânia – Donald Trump já declarou expressamente que espera uma não-interferência de Israel durante as negociações com o Irã, mas ele não tem controle sobre isso. Em meio às disputas internas de Israel, criar uma turbulência pode ser o caminho.

Do outro lado, não é apenas como Israel aparece duplamente como aliado norte-americano no Oriente Médio e como lobby poderosíssimo dentro dos Estados, mas como Netanyahu, em particular, é um aliado que Trump não pode prescindir em termos mais globais, muito embora ele esteja cruzando todas as linhas imagináveis que alguém poderia cruzar – mas ele não aparenta arredar o pé.

A escalada na Ucrânia

Em uma direção oposta, Donald Trump teria todos os motivos para derrubar Zelensky na Ucrânia, mas de novo o problema parece apontar para outra direção: a falta de meios. Em um cenário em que a Guerra na Ucrânia gerou uma gigantesca inflação, logo “combatida” com juros altos – e um constante endividamento geral –, por certo só era possível que isso acontecesse porque alguém estava ganhando: o complexo militar industrial e a indústria do petróleo.

Do outro lado, apesar da guerra ter forçado, em tese, “a Europa cortar na carne”, isso foi tanto mais o sacrifício tático de elites liberais empenhadas em fazer o governo de Joe Biden dar certo. Os mesmos cumpridores insatisfeitos de apoio militar e financeiro para Kiev, hoje, redobram seu desafio – quando parecia lógica que eles desembarcassem, uma vez que Joe Biden fosse derrotado. Há uma disputa transnacional entre liberais e extrema direita como já dissemos.

E há um outro fator acerca da Europa: como o lobby das armas norte-americanas atravessa governos europeus, ainda mais se formos considerar a ligação do atual governo alemão com o fundo trilionário BlackRock. Em outros termos, não basta a Donald Trump – literalmente – “combinar com os russos”, mas produzir um acordo entre duas das mais poderosas áreas de interesse de seu país.

Levando em consideração como o cavalo de pau tarifário derrubou o valor do barril de petróleo, tampouco é de se imaginar que haja muita alegria jorrando da indústria petrolífera americana. Um dos temores da manutenção da Guerra na Ucrânia, igualmente, arrefece. Do outro lado, Donald Trump não entregou nada de concreto sobre o que seria um acordo de paz entre ucranianos e russos, nem sua equipe parece ter capacidade de estabelecer isso.

O resultado é a escalada assombrosa dos últimos dias, na qual um enxame de drones pode ter mirado o helicóptero presidencial onde estava Vladimir Putin, respondido por um duro ataque a Kiev que, por sua vez, lançou uma combinação de ataque de drones e ataques à bomba no domingo 1º de junho no interior da Rússia. Tudo isso, às vésperas da segunda rodada de negociações de paz na Turquia, que já iam mal antes de tudo isso.

Conclusão precárias e provisórias

Os dois choques podem, além de causar mais caos e mortes, produzir um curto-circuito complexo dentro do qual será difícil entender como os atores irão se alinhar. Na Primeira Guerra Mundial, algo parecido aconteceu, com múltiplos choques levando a formação de alianças entre os muitos contendores. Europeus apoiaram Benjamin Netanyahu até aqui, mas parecem mais dispostos a largá-lo no caminho, talvez para atingir Donald Trump.

É muito difícil crer que alguém entre os líderes das potências europeias tenha se sensibilizado pelas crianças, mulheres, velhos e civis martirizados em Gaza. Só os efeitos práticos de um deslocamento em massa podem, talvez, ter ligado o alarme desses mesmos líderes, uma vez que países vizinhos da Palestina não possuem condições, políticas e econômicas, de receber milhões de pessoas.

Por outro lado, Israel observa atentamente o conflito na Ucrânia, mas não parece muito engajado por Volodymyr Zelensky, embora mire o Irã, que é, cada vez mais, vital para russos e chineses como um grande entroncamento logístico para ligar a Eurásia – e diminuir a dependência dos mares, ainda controlados pela Marinha norte-americana. O que futuro próximo aguarda para a neutralidade de Benjamin Netanyahu sobre a Ucrânia e a moderação de Vladimir Putin sobre Gaza?

Ainda, líderes liberais europeus miram em largar a mão de Netanyahu e a confrontar Donald Trump, mas sem romper com Israel ou Estados Unidos, enquanto buscam ativamente derrubar Putin na Rússia – o que incluiria, por conseguinte, uma política de mudança de regime também no Irã; numa escalada definitiva, é possível caótico, mas a tendência é a formação de blocos mais simétricos.

O avanço desses conflitos, contudo, eleva a uma contradição antagônica no interior dos Estados Unidos, isto é, a dependência econômica de guerras, mesmo nas quais a presença americana é indireta, e como isso se transformou em algo terrivelmente tóxico e mortal internamente – ainda mais em tempos em que Trump bagunça o coreto na economia, lançando incertezas variadas e gigantescas.

*Hugo Albuquerque é advogado e editor da Autonomia Literária.

Publicado originalmente no site Opera Mundi.


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