A África do Sul dos negros

Germana Monte-Mór (Jornal de Resenhas)
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Por AFRÂNIO CATANI*

Comentário sobre o livro “O Pessoal de July”, de Nadine Gordimer

Nadine Gordimer (1923-2014), prêmio Nobel de Literatura em 1991, publicou mais de três dezenas e meia de livros entre os de ficção, coletânea de contos e de ensaios, sendo que a maioria de sua obra se constituiu em preciosos relatos envolvendo a deterioração racial vivenciada pela África do Sul durante o regime do apartheid (1948-1994) no país.

O Pessoal de de July foi publicado originalmente em 1982, portanto, mais de uma década antes das eleições multirraciais e democráticas de 1994, vencidas pelo Congresso Nacional Africano (CNA), sob a liderança de Nelson Mandela.

Imaginemos uma África do Sul em que os negros estão no poder da minoria branca. Como os negros foram dominados durante inúmeras gerações, o país experimenta um caos generalizado, a violência se instaura de maneira mais acentuada e a debandada por parte dos brancos é completa: os aeroportos se congestionam, os outros países tratam de retirar rapidamente seus cidadãos de lá, propriedades são saqueadas, inúmeras mortes ocorrem e muitos ainda conseguem fugir para o interior do país.

Esse é o pano de fundo de O Pessoal de July, oitavo romance de Gordimer, amplamente conhecida em vários países, tendo seus livros alcançado inúmeras traduções. July… acompanha a fuga dos Smales, uma família branca de classe média, para as aldeias nativas localizadas no interior da África do Sul, narrando toda a sorte de dificuldades que enfrentam.

A bordo de uma pick-up amarela, Bamford Smales, pouco mais de 40 anos, que trabalha no “Smales, Caprano e Associados Arquitetos“, foge juntamente com sua mulher Maureen Hetherington, com os filhos pequenos (Victor, Gina e Royce) e com o negro July, seu criado doméstico há mais de 15 anos. July salva vida dos patrões guiando-os, durante três dias e três noites, ao longo dos 600 quilômetros que separam Johannesburg de sua aldeia natal. Normalmente, essa viagem era concluída num único dia. Entretanto July, que já havia feito o trajeto a pé, na primeira vez que viera à cidade em busca de trabalho, conduz a pick-up através de picadas e atalhos, “conseguindo evitar tanto as patrulhas quanto os bandos errantes” (p. 17)

Refugiados na aldeia de July em choças precárias, os “hóspedes” não se dão bem com a comida, estranham as precárias condições de higiene, sofrem com as doenças desconhecidas, encontram na língua e nos costumes barreiras praticamente intransponíveis e não desgrudam os ouvidos de um rádio de pilha, o único contato com o mundo exterior. Na aldeia o tempo parou: as choças foram  construídas há dezenas de anos, a eletricidade ainda está longe de chegar, as ferramentas rudimentares passam de geração a geração e as tradições tribais em larga medida dão o tom. O dinheiro que entra na aldeia vem de fora, remetido pelos homens que trabalham, durante décadas, nas minas.

A presença na aldeia, pensada inicialmente como provisória, vai se prolongando e os membros da família Smales tentam se adaptar como podem: a pequena Gina arruma uma amiguinha (Nyiko) e se entende muito bem com ela; Victor e Royce andam o dia todo com os garotos nativos, em jogos e brincadeiras recentemente aprendidos; Maureen começa a colher folhas e ervas e a conversar com Martha, mulher de July, que compreende um pouco de africânder. O mais desadaptado é Bamford que, com o passar do tempo, se entrega à apatia (as coisas pioram quando sua arma de caça e a caixa de munição são roubadas) e ao desesperero.

Maureen, 39 anos, é quem enfrenta melhor a nova situação, tentando estabelecer um dialogo (tenso) com July sobre o futuro dela e da família, procurando entender por que eles não saíram logo da África do Sul, pois desde 1976 os distúrbios de Soweto começam a deixar claro que os brancos iriam enfrentar dias cada vez mais adversos no futuro. Foram ficando “e diziam a si mesmos e a quem quisesse ouvir que esse, e nenhum outro, era seu lar, embora soubessem, à medida que passava o tempo, que o motivo verdadeiro era o fato de não poderem levar o dinheiro para fora – os investimentos e a poupança de Bam sempre crescentes, a pequena herança de ações (…) deixada para Maureen pelo avô materno, a casa de sete quartos com piscina cada dia mais difícil de vender à medida que os tumultos se tornavam parte do cotidiano” (p. 14); relembrando o dia a dia da família em Johannesburg, dividido, grosso modo, entre trabalho e repouso, sendo que a categoria lazer existia apenas para Bam “sob a forma de conversa acompanhada de cerveja que tinha início no sábado de manhã, se extinguia com o sono e ressucitava com novas forças até tarde na noite de domingo” (p. 39).

Além disso, Maureen, “das Minas de Ouro da Região Ocidental” (p. 8), “a filha do cara simpático que trabalhava dentro da mina a vida inteira” e que perdeu um dedo lá no triturador (p. 109) faz um balanço de sua vida nas duas últimas décadas, desde o tempo em que usava malha de balé e dava aulas noturnas de dança moderna para os negros, “sob os olhos do namorado arquiteto, arquétipo de sua consciência social” (p. 110). Após um casamento que já durou 15 anos, em que sua atividade se restringiu quase que exclusivamente a cuidar da casa e dos filhos, Maureen vê que, além das crianças, quase nada restou: o amor por Bam se esgarçou, todas as economias e propriedades se perderam, o futuro é sombrio, não sabe se conseguirão sair do pais.

O Pessoal de July é um romance de incertezas, inseguranças e transformações. Isso já pode ser percebido na epígrafe, extraída de uma passagem das Cartas do Cárcere, de Antonio Gramsci: “O que é velho está morrendo e o que é novo não consegue nascer; nesse meio tempo surge uma enorme variedade de sintomas mórbidos”.

*Afrânio Catani é professor aposentado da USP e professor visitante na UFF. Autor, entre outros livros, de História do cinema brasileiro: quatro ensaios (Panorama).

Referência

Nadine Gordimer. O Pessoal de July. Tradução de Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

Nota

(1) O presente artigo é uma versão, com algumas modificações, da resenha publicada no extinto suplemento “Cultura”, de O Estado de S. Paulo, ano VIII, no 458, 06/maio/1989, p. 5.

 

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