A Alemanha agoniza sob a sombra da Ucrânia

imagem : Silvio Pelegrin
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Por HUGO ALBUQUERQUE*

Grandes corporações alemãs anunciam cortes e demissões, enquanto eleições antecipadas possivelmente derrubarão o atual governo

Com eleições previstas para setembro do ano que vem, a Alemanha vive em compasso de espera para um voto de confiança do parlamento em breve – o que pode antecipar as eleições para fevereiro de 2025. Há pouco, o ministro das Finanças, Christian Lindner, do Partido Liberal-Democrata, foi demitido, desmanchando a coalizão semáforo – que unia o vermelho dos social-democratas, o amarelo dos liberais-democratas e o verde.

A disputa orçamentária que serviu como pretexto para a demissão de Christian Lindner, no entanto, deriva de um cenário onde a economia alemã dá mostras de crise severa. A razão é o fato da explosão do preço da energia para o país, causada pela intervenção da Otan contra a Rússia na Ucrânia, ter esgotado a poderosa indústria alemã, levando a uma gradual queda na atividade econômica. Com quase três anos de conflito, a Alemanha dá poucas mostras de como reverter o quadro.

Com menos crescimento econômico, mais inflação e um enorme gasto determinado pela ajuda econômica à Ucrânia, Berlim tem pouco a fazer. Até as pedrinhas na rua sabiam que a expansão da Otan até a Ucrânia levaria a uma crise bélica com a Rússia, abalando o vantajoso comércio que Berlim tinha com Moscou. Essa possibilidade foi, inclusive, mais um benefício que ingleses e franceses viam no confronto.

Uma guerra curta, com a vitória ocidental e uma possível queda do regime de Vladimir Putin levaria a um caos temporário, mas poderia trazer ganhos para a Alemanha – ou, ao menos, não seria um pedágio tão caro para o governo liderado pelo social-democrata Olaf Scholz. No entanto, o prolongamento do conflito e a vantagem russa numa guerra de atrito jogou o prejuízo econômico para o outro lado do mar Negro.

Demissões e cortes no grande capital

A história da Alemanha Unificada se confunde com a das suas grandes corporações. Não há momento, de democracia parlamentar ou autoritarismo, em que o capitalismo alemão não gire em torno de gigantes setoriais e seu jogo com o Estado – que hoje subsume sindicatos e movimentos populares em sua estrutura institucional. Mesmo o nazismo não foi um capítulo de estatização, mas de avanço dessas corporações, inclusive em uma economia de guerra.

Os últimos resultados da indústria alemã são descritos como um crash formidável. Ainda que seja impossível negar o papel dos custos causados pela guerra na Ucrânia, a mídia global busca emplacar uma narrativa sinofóbica: seria a indústria automobilística chinesa a destruir a Volkswagen ou a Mercedes. Em parte é sim, mas inclusive porque os chineses têm sua demanda energética assegurada, inclusive pelos russos.

Repassar os cortes para o trabalho, cortando subsídios para a agricultura – para, assim, aumentar a oferta de mão de obra – e praticando demissões em massas se torna o caminho mais fácil para as corporações alemãs. O governo social-democrata, com seus históricos vínculos sindicais, se torna a bola de vez e o alvo do grande capital local. É preciso um governo que avance no arrocho.

Depois de eleições estaduais que mostraram, recentemente, um periclitante avanço da extrema direita, no plano federal, no entanto, os democratas cristãos surgem à frente nas sondagens. Os alemães foram convencidos a combater a Rússia, o que não foi muito difícil, mas isso não quer dizer que eles simplesmente não possam culpar o governo de Olaf Scholz pelo desastre econômico – e nem sempre veem uma ligação entre as duas coisas.

Scholz, assim como Joe Biden nos Estados Unidos, sempre buscou maquiar os custos e efeitos reais da guerra – inclusive para ter apoio popular na guerra santa contra Vladimir Putin. Evidentemente, isso foi a guerra santa da administração Biden, mas para Olaf Scholz foi um desastre que tirou a Alemanha de uma situação confortável, mas que não poderia ser evitada, sob pena de desviar de compromissos constitutivos do país.

Entre a salvação econômica e a sujeição estratégica aos Estados Unidos – ainda mais sob governo democrata, que é simpático ao establishment alemão e europeu – é óbvio que prevaleceu o segundo item. Joe Biden, então, se tornou uma espécie de flautista de Hamelin suicida, e Olaf Scholz uma das crianças que foram hipnotizadas, ao final da trama, pelo mágico, até desaparecerem nas montanhas.

Uma volta ao passado

Os alemães parecem esperar, em um primeiro momento, que a velha democracia cristã restabeleça a estabilidade estagnada do longo governo de Angela Merkel. Não falta na esquerda quem, inclusive, insista na ideia que com Merkel teria sido diferente – muito embora a ex-premiê insista em apoiar o que o governo Olaf Scholz fez na Ucrânia, tentando renegar seu passado e afirmar seu papel pacificador com a Rússia como dissimulação.

Hoje, no entanto, os democratas cristãos da Alemanha têm um outro líder: Friedrich Merz, advogado e lobista do trilionário fundo de capitais Black Rock, que foi um concorrente à direita de Merkel pelo poder na Democracia Cristã. Derrotado e isolado por Merkel, Friedrich Merz se retirou brevemente da política eleitoral, continuando, entretanto, como um grilo falante de crítica à direita dos governos de Merkel.

O processo de ascensão de Friedrich Merz foi, no entanto, um acidente. Principal assessor econômico de Edmundo Stoibel em 2002, ele perdeu terreno com a liderança de Merkel, só retornando para tentar disputar a liderança do partido no contexto de aposentadoria dela. Perdeu para a sucessora designada de Merkel, Annegret Kramp-Karrenbauer, que depois cairia em desgraça, mas perdeu a indicação para as eleições de 2021 para Armin Laschet.

Após a vitória social-democrata em 2021, Friedrich Merz tentou e, finalmente, conseguiu a liderança do partido. Mas dificilmente gostaria de assumir o poder em um país devorado por uma guerra que ele, igualmente, aceitou de maneira bovina – mesmo que tenha buscado assumir uma linha crítica até os primeiros meses de 2022, quando Kramp-Karrenbauer fazia ameaças nucleares à Rússia.

As posições de Friedrich Merz são de defesa mais enfática do neoliberalismo e, ainda, uma crítica à política de refugiados e imigração. Nos anos Merkel, ele disse que sua correligionária foi fraca com Donald Trump, em seu primeiro mandato como presidente americano. Hoje, Friedrich Merz busca um acordo com o Trump. A mesma coisa se pode dizer sobre a expansão da Otan para a Ucrânia, sobre a qual ele foi contra até dar um giro de 180 graus no começo de 2022.

A aposta em Friedrich Merz parece ser o derradeiro suspiro do hiperpoderoso establishment político alemão. Depois dele, os eleitores tenderão a olhar com mais carinho para os extremos do espectro, seja o socialismo linha-dura de uma Sahra Wagenknecht ou a extrema direita da Alternativa pela Alemanha (AfD, em alemão) – que está rachada ao meio por suas duas grandes linhas.

Nada indica que Friedrich Merz poderá salvar a Alemanha, uma vez que dificilmente fará algo fora da linha da Otan e, por essa razão, não vai poder emendar a relação com os russos. Mesmo que Friedrich Merz tente, os compromissos do presidente russo Vladimir Putin com seus aliados chineses vão fazer da Europa a segunda opção. De resto, fica a enésima lição da incapacidade de liberais, e da linha moderada da social-democracia fazerem frente a essa crise global.

*Hugo Albuquerque é advogado e editor da Autonomia Literária.

Publicado originalmente no site Opera Mundi.


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