A baleia

Ceri Richards, E a morte não terá domínio, 1965
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Por GUSTAVO TORRECILHA*

Comentário sobre o filme de Darren Aronofsky

O filme A baleia, o mais recente de Darren Aronofsky, possui forma e estrutura simples, mas que funciona bem para sua proposta: a de um drama psicológico com um certo otimismo ao final. A estrutura é simples não apenas pela utilização de apenas um espaço, o apartamento do protagonista Charlie, algo comum para filmes adaptados de peças teatrais (a peça de mesmo nome escrita por Samuel D. Hunter estreou em 2012), mas também pelo fato de desde o início o filme já deixar claro seu final.

Em decorrência das relações conflituosas entre os personagens, só se pode esperar que as emoções e conflitos entre eles eventualmente atinjam um clímax que poderia ser resolvido tanto para o bem quanto para o mal. E o principal conflito, o de Charlie e sua filha, Ellie, é resolvido para o bem, o que se mostra um traço surpreendente de Darren Aronofsky, ainda mais se tivermos como parâmetro um de seus primeiros filmes, Réquiem para um sonho, lançado no ano 2000.

Ambos os filmes têm temas semelhantes: são dramas psicológicos que abordam o sofrimento em torno de vícios e compulsões causados em indivíduos que se encontram vulneráveis e sozinhos. Essa dimensão está presente em todos os quatro personagens mais importantes de Réquiem para um sonho, Tyrone, Marion, Harry e sua mãe, Sara, sendo esta última comparável com o protagonista de A baleia.

Embora todos sejam viciados em drogas, o caso de Sara talvez seja o mais fácil para traçar paralelos com o filme mais recente de Darren Aronofsky, pois seu vício também decorre de uma situação de vulnerabilidade, ao ter de lidar com a solidão após a morte do marido e a mudança do filho, que sai de casa após a formatura. O sentimento de solidão, aliado ao consumo excessivo de televisão e ao sonho de participar de um programa de auditório, fazem com que Sara recorra a uma dieta à base de pílulas para emagrecer e participar do programa utilizando o mesmo vestido da festa de formatura do filho, que já não cabe mais. Mas as anfetaminas das pílulas geram alucinações e a levam a ser internada em estado sério, recusando-se a se alimentar.

Semelhantemente, Charlie também se encontra em uma situação de vulnerabilidade, causada pela solidão, que o leva a prejudicar sua própria saúde. Por mais que não seja propriamente um vício, após a morte de seu companheiro, ele passa a comer compulsivamente (duas pizzas inteiras por jantar ou mesmo uma gaveta cheia de doces e produtos industrializados) até chegar ao ponto da obesidade mórbida. O filme conta seus últimos dias após uma crise de saúde, quando ele é ajudado por um missionário que se insere na dinâmica de relações conflituosas de Charlie, que também inclui uma amiga, que é enfermeira e irmã do falecido companheiro, além de sua filha e sua ex-esposa.

Ainda que se trate, para Darren Aronofsky, mais das situações psicológicas dos personagens, é possível ver críticas à sociedade estadunidense nos filmes: em Réquiem para um sonho, a influência negativa do excesso de televisão para pessoas de classe média baixa com pouca instrução e os efeitos nocivos tanto de drogas quanto de remédios para emagrecimento, e em A baleia,o resultado do fundamentalismo religioso e do preconceito com a homossexualidade, que leva o companheiro de Charlie ao suicídio. No filme mais recente, há também a questão da falta de saúde pública, pois Charlie prefere não ser tratado após seu mal-estar para deixar dinheiro para Ellie, bem como a temática do abandono parental, o que mostra que Charlie não é apenas uma vítima e ressalta esse caráter humano ambíguo do personagem.

Sua tentativa de acertar suas relações com Ellie após ele tê-la abandonado é a principal relação conflituosa (ainda que ele também as tenha com todos os outros personagens). Charlie tenta, em seus últimos dias de vida, reconciliar-se com ela, por mais que ela constantemente o afaste e o humilhe, o que ele sempre perdoa por sentir que está realmente muito próximo da morte, tentando se redimir com Ellie. Porém, essa reconciliação não vem de maneira fácil, e se soma aos conflitos de Charlie com os demais personagens.

Mas pelo menos essa relação principal recebe um tratamento otimista ao fim, quando Charlie consegue, de certa maneira, utilizando-se de um trabalho escolar em que Ellie interpreta o romance Moby Dick, mostrar a ela que ela ainda era capaz de ser uma pessoa boa e honesta para além das mágoas causadas pelo abandono do pai, que escolheu deixá-la para viver com outro homem, contribuindo para o comportamento agressivo e até mesmo antissocial da jovem.

Em A baleia, por mais que essa reconciliação final tenha o seu preço, Darren Aronofsky deixa bem claro seu otimismo na mudança do tempo: enquanto nos últimos dias de Charlie a chuva caía constantemente fora do apartamento, com o seu desenlace, aparece o sol pela primeira vez no filme. E isso se contrapõe diretamente a Réquiem para um sonho, que também se utiliza do simbolismo do tempo, pois o início do filme se dá no verão, com os personagens em situações bem melhores do que se encontram ao final, no inverno, com a câmera mostrando cada um deles sozinho e sofrendo em decorrência dos acontecimentos durante esse período.

Tanto A baleia quanto Réquiem para um sonho tratam de temas como  solidão e luto e os vícios e compulsões que funcionam como maneiras de escapar da realidade. A diferença fica no tom mais otimista do filme recente, cujo final, apesar de previsível e triste para os personagens envolvidos restantes, acena para uma perspectiva mais positiva, pelo menos na vida de Ellie, não obstante os traumas dos últimos dias e de sua relação com seu pai.

*Gustavo Torrecilha é doutorando em filosofia na USP.

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