A baleia

Ceri Richards, E a morte não terá domínio, 1965
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por GUSTAVO TORRECILHA*

Comentário sobre o filme de Darren Aronofsky

O filme A baleia, o mais recente de Darren Aronofsky, possui forma e estrutura simples, mas que funciona bem para sua proposta: a de um drama psicológico com um certo otimismo ao final. A estrutura é simples não apenas pela utilização de apenas um espaço, o apartamento do protagonista Charlie, algo comum para filmes adaptados de peças teatrais (a peça de mesmo nome escrita por Samuel D. Hunter estreou em 2012), mas também pelo fato de desde o início o filme já deixar claro seu final.

Em decorrência das relações conflituosas entre os personagens, só se pode esperar que as emoções e conflitos entre eles eventualmente atinjam um clímax que poderia ser resolvido tanto para o bem quanto para o mal. E o principal conflito, o de Charlie e sua filha, Ellie, é resolvido para o bem, o que se mostra um traço surpreendente de Darren Aronofsky, ainda mais se tivermos como parâmetro um de seus primeiros filmes, Réquiem para um sonho, lançado no ano 2000.

Ambos os filmes têm temas semelhantes: são dramas psicológicos que abordam o sofrimento em torno de vícios e compulsões causados em indivíduos que se encontram vulneráveis e sozinhos. Essa dimensão está presente em todos os quatro personagens mais importantes de Réquiem para um sonho, Tyrone, Marion, Harry e sua mãe, Sara, sendo esta última comparável com o protagonista de A baleia.

Embora todos sejam viciados em drogas, o caso de Sara talvez seja o mais fácil para traçar paralelos com o filme mais recente de Darren Aronofsky, pois seu vício também decorre de uma situação de vulnerabilidade, ao ter de lidar com a solidão após a morte do marido e a mudança do filho, que sai de casa após a formatura. O sentimento de solidão, aliado ao consumo excessivo de televisão e ao sonho de participar de um programa de auditório, fazem com que Sara recorra a uma dieta à base de pílulas para emagrecer e participar do programa utilizando o mesmo vestido da festa de formatura do filho, que já não cabe mais. Mas as anfetaminas das pílulas geram alucinações e a levam a ser internada em estado sério, recusando-se a se alimentar.

Semelhantemente, Charlie também se encontra em uma situação de vulnerabilidade, causada pela solidão, que o leva a prejudicar sua própria saúde. Por mais que não seja propriamente um vício, após a morte de seu companheiro, ele passa a comer compulsivamente (duas pizzas inteiras por jantar ou mesmo uma gaveta cheia de doces e produtos industrializados) até chegar ao ponto da obesidade mórbida. O filme conta seus últimos dias após uma crise de saúde, quando ele é ajudado por um missionário que se insere na dinâmica de relações conflituosas de Charlie, que também inclui uma amiga, que é enfermeira e irmã do falecido companheiro, além de sua filha e sua ex-esposa.

Ainda que se trate, para Darren Aronofsky, mais das situações psicológicas dos personagens, é possível ver críticas à sociedade estadunidense nos filmes: em Réquiem para um sonho, a influência negativa do excesso de televisão para pessoas de classe média baixa com pouca instrução e os efeitos nocivos tanto de drogas quanto de remédios para emagrecimento, e em A baleia,o resultado do fundamentalismo religioso e do preconceito com a homossexualidade, que leva o companheiro de Charlie ao suicídio. No filme mais recente, há também a questão da falta de saúde pública, pois Charlie prefere não ser tratado após seu mal-estar para deixar dinheiro para Ellie, bem como a temática do abandono parental, o que mostra que Charlie não é apenas uma vítima e ressalta esse caráter humano ambíguo do personagem.

Sua tentativa de acertar suas relações com Ellie após ele tê-la abandonado é a principal relação conflituosa (ainda que ele também as tenha com todos os outros personagens). Charlie tenta, em seus últimos dias de vida, reconciliar-se com ela, por mais que ela constantemente o afaste e o humilhe, o que ele sempre perdoa por sentir que está realmente muito próximo da morte, tentando se redimir com Ellie. Porém, essa reconciliação não vem de maneira fácil, e se soma aos conflitos de Charlie com os demais personagens.

Mas pelo menos essa relação principal recebe um tratamento otimista ao fim, quando Charlie consegue, de certa maneira, utilizando-se de um trabalho escolar em que Ellie interpreta o romance Moby Dick, mostrar a ela que ela ainda era capaz de ser uma pessoa boa e honesta para além das mágoas causadas pelo abandono do pai, que escolheu deixá-la para viver com outro homem, contribuindo para o comportamento agressivo e até mesmo antissocial da jovem.

Em A baleia, por mais que essa reconciliação final tenha o seu preço, Darren Aronofsky deixa bem claro seu otimismo na mudança do tempo: enquanto nos últimos dias de Charlie a chuva caía constantemente fora do apartamento, com o seu desenlace, aparece o sol pela primeira vez no filme. E isso se contrapõe diretamente a Réquiem para um sonho, que também se utiliza do simbolismo do tempo, pois o início do filme se dá no verão, com os personagens em situações bem melhores do que se encontram ao final, no inverno, com a câmera mostrando cada um deles sozinho e sofrendo em decorrência dos acontecimentos durante esse período.

Tanto A baleia quanto Réquiem para um sonho tratam de temas como  solidão e luto e os vícios e compulsões que funcionam como maneiras de escapar da realidade. A diferença fica no tom mais otimista do filme recente, cujo final, apesar de previsível e triste para os personagens envolvidos restantes, acena para uma perspectiva mais positiva, pelo menos na vida de Ellie, não obstante os traumas dos últimos dias e de sua relação com seu pai.

*Gustavo Torrecilha é doutorando em filosofia na USP.

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Michel Goulart da Silva Slavoj Žižek Daniel Brazil Jean Pierre Chauvin Fernando Nogueira da Costa Eliziário Andrade Eleutério F. S. Prado Caio Bugiato Celso Frederico Michael Löwy Luciano Nascimento Marcus Ianoni Walnice Nogueira Galvão Andrés del Río Claudio Katz Milton Pinheiro Leonardo Avritzer Gerson Almeida Henry Burnett Daniel Afonso da Silva Anselm Jappe Carla Teixeira Bernardo Ricupero Otaviano Helene Manchetômetro Lincoln Secco Eugênio Trivinho Renato Dagnino Vinício Carrilho Martinez Valerio Arcary Gilberto Lopes Juarez Guimarães João Lanari Bo Carlos Tautz Gilberto Maringoni Henri Acselrad José Geraldo Couto Luiz Marques Marcelo Módolo Ari Marcelo Solon Daniel Costa Andrew Korybko João Adolfo Hansen Luiz Bernardo Pericás Eugênio Bucci Manuel Domingos Neto Fernão Pessoa Ramos Thomas Piketty Matheus Silveira de Souza Luís Fernando Vitagliano Atilio A. Boron Ricardo Antunes Denilson Cordeiro Paulo Martins Luiz Werneck Vianna Tales Ab'Sáber Chico Alencar Salem Nasser Flávio Aguiar Leonardo Boff Ronaldo Tadeu de Souza Paulo Capel Narvai Marcos Aurélio da Silva Paulo Nogueira Batista Jr Afrânio Catani Luiz Carlos Bresser-Pereira Marcelo Guimarães Lima José Raimundo Trindade Antonino Infranca Fábio Konder Comparato Valerio Arcary Yuri Martins-Fontes Paulo Sérgio Pinheiro Remy José Fontana João Feres Júnior Julian Rodrigues Osvaldo Coggiola Sergio Amadeu da Silveira Alexandre Aragão de Albuquerque João Sette Whitaker Ferreira Lucas Fiaschetti Estevez Sandra Bitencourt Luiz Roberto Alves Ladislau Dowbor Berenice Bento Alysson Leandro Mascaro Everaldo de Oliveira Andrade Eleonora Albano Bruno Fabricio Alcebino da Silva Dênis de Moraes João Carlos Salles Paulo Fernandes Silveira Eduardo Borges Luiz Eduardo Soares Tarso Genro Leda Maria Paulani Plínio de Arruda Sampaio Jr. Priscila Figueiredo Chico Whitaker Jean Marc Von Der Weid José Micaelson Lacerda Morais Heraldo Campos Dennis Oliveira Francisco Fernandes Ladeira Alexandre de Freitas Barbosa Airton Paschoa Ricardo Musse André Singer Lorenzo Vitral Érico Andrade Maria Rita Kehl Francisco de Oliveira Barros Júnior Flávio R. Kothe Ronald León Núñez José Luís Fiori Mário Maestri Bento Prado Jr. Celso Favaretto Leonardo Sacramento Alexandre de Lima Castro Tranjan Tadeu Valadares Ricardo Fabbrini Jorge Luiz Souto Maior Elias Jabbour José Costa Júnior Jorge Branco Vanderlei Tenório Bruno Machado Rodrigo de Faria Mariarosaria Fabris Rubens Pinto Lyra Marilena Chauí Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Luiz Renato Martins Gabriel Cohn Marjorie C. Marona Annateresa Fabris Samuel Kilsztajn Benicio Viero Schmidt Francisco Pereira de Farias Michael Roberts Ricardo Abramovay Vladimir Safatle Luis Felipe Miguel Armando Boito Kátia Gerab Baggio Boaventura de Sousa Santos Antônio Sales Rios Neto José Dirceu Antonio Martins Marcos Silva Marilia Pacheco Fiorillo João Carlos Loebens Igor Felippe Santos João Paulo Ayub Fonseca Liszt Vieira Ronald Rocha André Márcio Neves Soares Rafael R. Ioris José Machado Moita Neto

NOVAS PUBLICAÇÕES