A carta de D. Pedro I

Imagem: Renan Almeida
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por HERMES ZANETI*

Carta escrita há quase 200 anos tem passagens atualíssimas para o Brasil de hoje

O coração de D. Pedro I chegou ao Brasil dez dias após a memorável leitura no claustro da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo da Carta aos Brasileiros em defesa da democracia. Mais que reverenciar a relíquia que o responsável pela nossa independência destinou em testamento à cidade do Porto, seria oportuno concentrar nossa atenção em outro legado de nosso primeiro imperador: a “Carta Póstuma”, esta sim destinada a nós, que ele ditou em seu leito de morte, menos de 24 horas antes de falecer de tuberculose, em 24 de setembro de 1834.

Me atrevo a dizer que essa carta, lamentavelmente esquecida, pode ser tão importante para o futuro do Brasil, a despeito de escrita há quase 200 anos, quanto a lida no dia 11 de agosto último. E digo isso porque nessa “Carta Póstuma de d. Pedro, duque de Bragança, aos Brasileiros”, publicada no Rio de Janeiro, no ano seguinte, D. Pedro, com a sinceridade de um moribundo que se confessa, reconhece erros e dá conselhos ponderados que contrastam com sua famosa impetuosidade.

Sobre o Brasil, disse: “Embora nascesse eu em Portugal! É no Brasil que eu nasci ao sentimento de mim mesmo. É no Brasil (…) que a vida com seus mistérios, a mocidade com os seus encantos se manifestaram à minha alma”. Por isso, declarava-se em dívida conosco. “Já estou quite com Portugal (…) regenerei suas instituições; dei-lhe uma Constituição e duas vezes a liberdade e por ele morro na flor dos meus anos” (tinha então 35 anos). “Mas convosco, brasileiros, a minha consciência não me outorga tão satisfatório testemunho (…) o foro interior me acusa de ter parado na metade da tarefa”.

Três conselhos, apresentados em sequência na sexta das oito páginas da edição facsimilar que consultei, são atualíssimos no Brasil de hoje: (i) “Evitem-se os erros que perderam minha administração. Sem criar novos mananciais de rendimento, ela se antecipou por exagerados empréstimos de toda a sorte sobre o futuro e quando chegou a época em que não houve meio para fazer frente ao déficit anual; quando a bancarrota bateu à porta, ela caiu. Meu governo pereceu pelas Finanças como outros muitos Estados”.

Esse conselho me comove em especial porque, como deputado constituinte, fui autor de projeto que determinava a realização de um exame pericial e analítico da dívida brasileira. A proposta acabou convertida no Art. 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que jamais foi cumprido cabalmente. Este fato escandaloso me levou a escrever o livro O complô – como o sistema financeiro e seus agentes políticos sequestraram a economia brasileira, com base no qual em breve será possível aos brasileiros assistirem um documentário homônimo.

(ii) Influência militar – “Também sob este lado minha administração errou completamente. Depositei a minha confiança na tropa. Para sustentar numeroso Exército, eu dizimei a população e esgotei as riquezas do Brasil, e por fim de contas, a tropa deu no meu trono a última pancada”. Ah D. Pedro! Parece ver o que se passa em tua pátria afetiva que acabou nas mãos de um aventureiro, como temia teu pai D. João VI quando recomendou que tomasses para ti a coroa.

(iii) “Não posso deixar de vos dirigir uma advertência acerca da escravidão dos negros. A escravidão é um mal e um atentado contra os direitos e a dignidade da espécie humana, mas as suas consequências são menos danosas aos que padecem o cativeiro do que à nação cuja legislação admite a escravatura. É um cancro que devora sua moralidade”. Uma imoralidade 200 anos depois, D. Pedro, ainda praticada por muitos que juraram defender “a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”, como determina o preâmbulo da Constituição.

*Hermes Zaneti foi deputado constituinte em 1988. Autor de O complô: como o sistema financeiro e seus agentes políticos sequestraram a economia brasileira.

 

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Os véus de Maya
Por OTÁVIO A. FILHO: Entre Platão e as fake news, a verdade se esconde sob véus tecidos por séculos. Maya – palavra hindu que fala das ilusões – nos ensina: a ilusão é parte do jogo, e desconfiar é o primeiro passo para enxergar além das sombras que chamamos de realidade
Régis Bonvicino (1955-2025)
Por TALES AB’SÁBER: Homenagem ao poeta recém-falecido
Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
A fragilidade financeira dos EUA
Por THOMAS PIKETTY: Assim como o padrão-ouro e o colonialismo ruíram sob o peso de suas próprias contradições, o excepcionalismo do dólar também chegará ao fim. A questão não é se, mas como: será por meio de uma transição coordenada ou de uma crise que deixará cicatrizes ainda mais profundas na economia global?
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Síndrome da apatia
Por JOÃO LANARI BO: Comentário sobre o filme dirigido por Alexandros Avranas, em exibição nos cinemas.
O ateliê de Claude Monet
Por AFRÂNIO CATANI: Comentário sobre o livro de Jean-Philippe Toussaint
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Donald Trump ataca o Brasil
Por VALERIO ARCARY: A resposta do Brasil à ofensiva de Trump deve ser firme e pública, conscientizando o povo sobre os perigos crescentes no cenário internacional
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES