Por VICTOR RIBEIRO DA SILVA*
A escolha política por um neoliberalismo de “rosto humano”, visível no Arcabouço Fiscal, no leilão do petróleo equatorial e na hesitação com a Venezuela e a Palestina, expõe uma soberania apenas discursiva, que evita confrontar os pilares do poder
Recentemente, após a retirada das tarifas impostas ao Brasil por parte de Donald Trump – presidente de um império em declínio –, o recuo foi visto como uma vitória do governo brasileiro, em particular a postura do presidente Lula diante das ameaças de sua contraparte norte-americana. Este texto é uma resposta ao artigo de Emiliano José (“O recuo de Donald Trump”) também publicado no A Terra é Redonda.
Em seu artigo, José apresenta a ideia de um Lula defensor intransigente da soberania nacional, militante contra o genocídio em Gaza e defensor da Venezuela diante das agressões estadunidenses. Dada a importância deste debate na atual conjuntura, minha intenção com o presente artigo é apresentar uma fraterna e respeitosa crítica ao companheiro — propomos ir além da superfície do discurso e examinar a política de Estado com o máximo de aproximação de sua totalidade, afinal de contas, se a soberania é um conceito a ser celebrado, ele deve ser medido não pelas palavras, mas pelas ações concretas que definem um projeto de nação.
De início, reconhecemos ter sido salutar a postura correta e firme do governo Lula ao enfrentar a tentativa de intimidação de Donald Trump sobre as tarifas. Ainda que isso seja o mínimo a ser esperado de um líder nacional, como bem exposto no artigo de José, isso não tem sido verdadeiro nem mesmo para os outros países do centro do sistema capitalista, via de regra agindo de forma completamente vassala ao “Papai Trump”. Que se dê a César o que é de César — é crucial não subestimar a importância simbólica e prática desse ato.
No entanto, tirado isso do caminho, a verdadeira análise não pode parar no episódio isolado. O Governo Lula, na prática, tem gerido um Estado de subsoberania — uma condição na qual a retórica independente esconde uma submissão estrutural a interesses financeiros e geopolíticos externos e à sua própria classe dominante associada. E esta subsoberania, importante ressaltar, se trata de uma escolha política, não uma fatalidade.
O Contraste entre o Discurso e Prática
Seria impossível passar por este debate sem colocar em questão o Novo Teto de Gastos, o verdadeiro pilar da subsoberania econômica, endossado pelo governo Lula, principalmente na figura do ministro Fernando Haddad. Como se pode falar em um projeto soberano quando se mantém, na essência, a âncora fiscal que estrangula o Estado?
O Teto de Gastos, eufemizado como “Arcabouço Fiscal” (melhor definido como “Calabouço Fiscal”), é a perpetuação de uma lógica que prioriza os contos de fadas neoliberais do “superávit primário” e “responsabilidade fiscal” sobre a vida, a educação, a saúde e a pesquisa. É a rendição aos interesses dos rentistas que limita a capacidade do Estado de investir no próprio povo — condição sine qua non de qualquer nação que se coloque como “soberana”.
Tal regra fiscal se apresenta, na forma, como uma “disciplina” técnica, mas sua implementação e conteúdo são inerentemente políticos. Se render aos interesses dos rentistas é uma escolha política que afeta diretamente a soberania nacional, tendo em vista seus efeitos nefastos, para dizer o mínimo, no desenvolvimento técnico-científico e industrial do país. Um Estado que não assegura saúde e educação universais vê minada sua legitimidade e autonomia estratégica — falta de investimento em capital humano reduz capacidades produtivas e tecnológicas nacionais, forçando o país a manter sua condição semicolonial e dependente de importações, impedindo o desenvolvimento de uma autossuficiência, por exemplo, tecnológica e farmacêutica. Além disso, o contínuo desmonte do orçamento para universidades públicas e para a pesquisa (especialmente nas humanidades) não é um acidente; é a garantia de que não formaremos pensadores críticos e tecnólogos verdadeiramente independentes. A fuga de cérebros já é uma realidade conhecida no Brasil.
E já que estamos falando do Ministério da Fazenda, falemos de seus recentes esforços em “atrair investimentos em Data Centers no Brasil”. Enquanto se enfrenta Trump em uma frente, o Ministro Fernando Haddad lidera uma ânsia em aliar-se a grandes monopólios norte-americanos. Travestindo-se de uma política modernizante e benéfica, a MP nº 1.318/2025 (REDATA) trata de incentivos fiscais mas não garante transferência tecnológica, autonomia sobre hardware/software e nem mesmo proteção dos fluxos de dados. Ou seja, o Brasil fornece energia e espaço, fica sem a tecnologia, não desenvolve um complexo verdadeiramente nacional de Data Centers, gera pouquíssimos empregos e ainda arrisca deixar os dados dos brasileiros (incluindo do governo!) nas mãos das Big Techs norte-americanas. Isso é soberania? Nesse sentido, talvez o governo Lula possa aprender uma coisa ou duas com a Rússia e a China.
Tal retórica de soberania cria uma ilusão que mistifica a realidade das políticas concretas do governo Lula. Austeridade e privatizações (incluindo até presídios, e com apoio do BNDES! Algo que nem Temer ousou fazer) fragilizam as capacidades do Estado, reforçam a lógica de uma economia que se limita a fornecer recursos primários e reduzem o poder de barganha e autonomia geopolítica do país, colocando-o numa perigosa posição que invariavelmente redunda em erosão da soberania e subordinação dos interesses nacionais a exigências de mercados intimamente associados com uma burguesia subserviente ao capital estrangeiro.
Mas talvez um dos pontos fulminantes da contradição entre retórica e prática do presidente se exponha no não-cumprimento de suas promessas de campanha: a reestatização da Eletrobrás e das refinarias privatizadas da Petrobrás. Estas últimas não só não foram reestatizadas, como o entreguismo dos recursos naturais do país foi aprofundado com o leilão dos blocos de exploração de petróleo na margem equatorial brasileira. Mais uma vez, o discurso é de defender a soberania, mas, na prática, se trata de uma exportação bruta de matéria-prima sem processamento interno, não detendo valor estratégico. Talvez a “soberania” a que se referem não seja a do Brasil, mas sim dos Estados que efetuaram o arremate dos blocos de exploração?
Em cima disso tudo, ainda temos o impacto direto sobre povos tradicionais. Aumento de conflitos e violações de direitos indígenas, por exemplo, criam tensões que enfraquecem a base social do Estado e afetam diretamente a soberania nacional. Povos indígenas esses que demonstraram, na prática, e não somente no discurso, que as conquistas vêm com enfrentamento e não conciliação, após conseguirem fazer pressão o suficiente para extrair uma vitória de uma COP30 que contou com a presença mais lobistas de petróleo e mineração do que membros das delegações de cada país.
E se a entrega do petróleo soa como um déjà vu dos anos 90, é porque o projeto de subsoberania energética e industrial se repete. No entanto, ele ganha contornos ainda mais dramáticos e fatais quando observamos a ausência criminosa de qualquer política de Estado para as terras raras – recursos estratégicos para a produção de celulares, carros elétricos, etc. — e que, mais uma vez, o Brasil, mesmo sendo detentor da segunda maior concentração de reservas do planeta, assiste passivamente à espoliação neocolonial desse recurso. O que se vê é a mesma lógica extrativista e primária do século XVI: mineração predatória, às vezes em territórios tradicionais, para exportar material bruto e importar o produto final a preços exorbitantes. O que é isso senão uma renúncia a um projeto de nação tecnologicamente autônoma? Senão a aceitação de um lugar na divisão internacional do trabalho que nos condena à eterna periferia?
Aliás, para não dizer que não há política nenhuma sendo debatida, o que está sendo colocado em pauta neste momento é a não-diferenciação entre empresa nacional e internacional, com empresas estrangeiras podendo ter, inclusive, isenção fiscal e financiamento do BNDES para explorar nossos recursos. Inclusive, já temos uma empresa de capital estadunidense e britânico explorando de vento em popa.
Quando se fala em transição energética, o governo celebra acordos com potências estrangeiras, mas nega ao país a soberania sobre os minérios que podem ser a base material dessa mesma transição. Trata-se de uma opção política pela vassalagem.
Jamais esqueçamos a célebre frase do Ministro Haddad, quando questionado pela deputada Fernanda Melchionna acerca do Teto de Gastos: “agora é hora do investimento privado”. Tal declaração é uma síntese da rendição ideológica deste governo e, rendido como é, não é capaz de produzir soberania para além da retórica.
A Geopolítica da “soberania”
Ainda no ensejo das relações exteriores do governo, talvez um ponto crucial para o qual deva se chamar a atenção é a recusa em aderir à Iniciativa Cinturão e Rota (BRI), para manter “equidistância entre China e EUA”, quando, ao mesmo tempo, se opta por avançar um questionável acordo Mercosul-UE. Enquanto a China oferece parcerias em infraestrutura que podem reindustrializar e integrar logisticamente o Brasil, o governo opta por avançar num acordo assimétrico que, novamente, nos condena ao papel de exportador de commodities e importador de manufaturados, a essência de um pacto colonial. A intenção é clara: privilegiar o decadente eixo atlântico e não melindrar os EUA e a elite local. Mais uma vez questiona-se: isso é soberania?
O artigo de José elogia a defesa da Venezuela por parte do governo frente aos ataques de Donald Trump. Certo, isto é verdadeiro. No entanto, Lula foi um dos únicos líderes de esquerda(?) a questionar publicamente as eleições venezuelanas e, pior ainda, vetou a entrada da Venezuela no BRICS. Este ato é um claro aceno aos EUA e à mídia burguesa e demonstra que, quando a pressão da classe dominante é forte, o “progressismo” cede e a soberania fica só na retórica.
Ainda no contexto internacional, vimos realmente o presidente Lula, diversas vezes, denunciar publicamente em seus discursos o genocídio em curso contra o povo Palestino. No entanto, foi só depois de muita pressão que paramos de exportar petróleo para o regime sionista, e precisou que o embaixador brasileiro em Tel Aviv passasse por um enorme constrangimento para que algo mudasse no que se refere às relações diplomáticas. Como se não bastasse, permite-se que setores do próprio governo articulem um “Dia da Amizade Brasil-Israel” em pleno genocídio. A contradição é ululante.
A caravana passa, sim, mas para onde?
Lula é neoliberal porque quer e não porque é obrigado. É importante encarar isso de frente. A “correlação de forças no Congresso” é usada para justificar contradições como as expostas acima, mas isso se demonstra uma falácia esvaziada quando se observa a falta de uma luta política real pelo povo. O governo não enfrenta o agronegócio para promover a reforma agrária; ele concilia. O governo não tenta mobilizar a população contra uma barreira imposta por um Congresso reacionário (como sempre o foi), a exemplo do vizinho Gustavo Petro; ele concilia. Nenhum congresso obrigou Haddad a dizer que “é hora do capital privado” — é uma escolha política. Quantas reuniões foram feitas com lideranças de movimentos sociais? Em eventos do Banco Safra sabemos que ele esteve.
A constante opção pelo caminho do menor ruído, de não confrontar os reais pilares do poder no Brasil e, por conseguinte, do capital estrangeiro, é uma escolha ideológica. É a preferência por um neoliberalismo de “rosto humano” em vez de um projeto soberano e popular. Isso não é soberania; é vassalagem consentida.
A ladainha dos cães da mídia burguesa, tão bem citada por Emiliano José, não deve nos impedir de criticar o rumo da caravana. A verdadeira lealdade à esquerda e ao povo brasileiro exige uma crítica implacável aos desvios e às concessões. A comparação com Lênin e a autodeterminação dos povos soa, no mínimo, como um anacronismo diante de uma prática que beira o fisiologismo neoliberal. Reconhecer isso não é negar os feitos passados de Lula ou sua habilidade política; é exigir coerência e um projeto verdadeiramente ousado para o futuro. A tarefa que se impõe é lutar por um Brasil que seja genuinamente soberano – o que significa romper com o Teto de Gastos, reestatizar o que foi vendido, investir massivamente em educação pública, redirecionar nossas alianças para a multipolaridade real e ter a coragem de enfrentar, e não apenas administrar, a classe dominante e seu projeto de nação subalterna. A verdadeira soberania não será um presente do planalto; será conquistada na luta das ruas, dos sindicatos, dos movimentos sociais e das universidades. É para essa luta, e não para os acordos de gabinete, que devemos voltar nossa energia.
*Victor Ribeiro da Silva é militante comunista é pós-doutorando na Universidade de Nanjing, China.
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