Como será o golpe no Brasil?

Alex Katz, Filial Noturna, 1994.
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Por LINCOLN SECCO & FERNANDO SARTI FERREIRA*

O golpe já foi anunciado pelo próprio presidente da república. É ele ou alguém em seu nome que vai desferir o golpe

Quem dará o golpe no Brasil? Com esse título Wanderley Guilherme dos Santos publicou seu livro em 1962[i] apenas dois anos antes do golpe de primeiro de abril de 1964. Em 2022 a dúvida não é quem, mas como. É claro que se pode indagar sobre o suporte: policial, miliciano, “popular” ou militar. Mas o golpe já foi anunciado pelo próprio presidente da república. É ele ou alguém em seu nome que vai desferir o golpe.

A declaração do Ministro da Defesa em 10 de junho de 2022 afrontando o TSE reforçou o total alinhamento do exército com o governo Bolsonaro. Depois de 25 anos de voto eletrônico agora os militares começaram a suspeitar do processo eleitoral. Ao contrário do que se imagina, isso não é a politização do exército, pois ele nunca deixou de agir politicamente a favor dos seus privilégios corporativos e dos interesses dos Estados Unidos. A única novidade dos últimos anos foi a descoberta do seu baixo nível cultural e despreparo técnico.[ii]

Diferentemente de 1964 nenhuma força golpista dispõe de projeto ou disposição para exercer uma ditadura e o golpe pode muito bem se dar naquilo que Maringoni denominou “o modo xepa” que “não tem plano, projeto ou roteiro”.[iii]

 

Paralelos

Portanto não há paralelo com o que houve em 1964. Talvez o mais parecido com a forma do novo Coup d’état seja a revolta integralista de 1938 porque o bolsonarismo, assim como as galinhas verdes de Plinio Salgado, é um fenômeno de massa e um conjunto bizarro de ideias incoerentes de natureza fascista.

A tentativa de tomada do poder em 10 de maio de 1938 contou com apoio da oposição liberal ao governo Vargas, como alguns ex-líderes do levante paulista de 1932 (Júlio de Mesquita Filho, por exemplo). O mais grave, porém, foi o fato das tropas de Severo Furnier[iv] terem cercado o Palácio Guanabara sem resistência da polícia ou das forças armadas. Só a guarnição pessoal do presidente chefiada por Benjamin Vargas e Gregório Fortunato (ex combatentes contra a revolta paulista de 1932) resistiram.

Naquela noite o Exército nada fez e só interveio em defesa do governo depois de horas de passividade, à espera de um desfecho que poderia ter significado a morte de Getúlio Vargas. Finalmente, Eurico Gaspar Dutra debelou a intentona integralista. Até hoje não temos certeza do que esteve por trás da inação militar, mas o ataque a Vargas pode ser visto como instrumento oportuno para um golpe do próprio exército, o qual já estava no poder, mas poderia se livrar ao mesmo tempo do ditador e dos integralistas; ou até mesmo firmar compromisso com Plínio Salgado, o qual possuía muitas simpatias entre os militares.

 

Golpe a la Capitólio

O golpe a ser desfechado no Brasil carece de estratégia, mas paradoxalmente tem um objetivo: aprofundar a destruição do estado brasileiro. Uma alternativa, portanto, seria um golpe caótico como o que foi tentado por Donald Trump nos Estados Unidos.

No dia 6 de janeiro de 2021, horas antes do congresso estadunidense se reunir para ratificar o resultado das eleições do ano anterior, o ainda presidente Donald Trump realizou a poucas quadras dali um ato político com seus apoiadores. Com o tema “Salvem os EUA”, o evento foi a coroação de uma longa campanha de descrédito do processo eleitoral estadunidense – diga-se de passagem, muito menos organizado que o processo brasileiro. No palco, figuras de proa do trumpismo, como o ex-prefeito de Nova York Rudolph Giuliani – até os anos 2000, modelo de “gestor” preferido entre liberais brasileiros –, exortavam a multidão a intervir na sessão que seria presidida pelo vice-presidente Mike Pence. “Lutem como o diabo”, disse então o presidente Donald Trump.

Antes mesmo de terminar o discurso, um grupo de manifestantes fantasiados começou a se dirigir ao prédio do Capitólio. Ao mesmo tempo, Mike Pence abria a sessão lendo uma carta pela qual deixava claro que não iria embarcar na aventura de Donald Trump. Na hora seguinte, sem encontrar resistência, os manifestantes foram se aglomerando e avançando em direção ao interior do prédio. É digno de nota que os oficiais de segurança mais resistentes à horda fascista eram negros, como se pode ver nas cenas do documentário Four hours at the capitol, do diretor Jamie Roberts. Impossível não pensar como para além do compromisso ideológico entre as forças de segurança e o fascismo não houve ali também uma aliança racial. Basta comparar a repressão das forças policiais ao movimento negro com os eventos no Capitólio.

Com deputados, senadores e assessores correndo em desespero, sendo empurrados para lá e para cá por seguranças engravatados e com pontos de comunicação nos ouvidos, como no filme Don’t look up quando o meteoro se aproxima, a sessão foi interrompida. Um dos prédios mais protegidos do mundo foi tomado por um verdadeiro exército de Brancaleone. No documentário acima citado, tão impressionante como a farra feita pelos manifestantes – um misto de delinquência adolescente com uma excursão de turistas de classe média – foi a covardia da classe política estadunidense.

As cenas que protagonizaram durante a invasão, mas principalmente os depoimentos dados por senadores, deputados e assessores posteriormente para o documentário são extremamente desmoralizadores e constrangedores. Nada diferente do desfecho da aventura. Após horas de ocupação, a presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, e o candidato eleito, Joe Biden, foram à rede nacional implorar para que Trump retrocedesse. O presidente foi à internet e, após celebrar a invasão, pediu para que os manifestantes voltassem para casa.

No entanto, nem sempre o mais espetacular é o mais importante. É claro que o fracasso do 6 de janeiro de Donald Trump tem outras razões, como a falta de apoio entre os próprios membros de seu partido e a resistência da cúpula das Forças Armadas estadunidenses.[v]

Já Jair Bolsonaro, ao contrário de Donald Trump, parece ter muito mais fiadores para o seu golpe. Se os bolsonaristas decidirem fazer algo semelhante, seja no Supremo Tribunal Federal, no Tribunal Superior Eleitoral ou na Câmara de Deputados, diferentemente dos fascistas de 1938, não serão confrontados por nenhuma força repressiva, mesmo que tardiamente. Quiçá a cumplicidade das forças de segurança seja até mais gritante aqui que nos EUA. Bolsonaro pode se restringir a ameaças, arruaças, protestos de ruas e os seguidores provocarem escaramuças ridículas. Mesmo assim, e tendo em vista o grau de comprometimento das forças de segurança brasileiras com o presidente e sua secular vocação genocida, essa encenação poderá provocar muito mais mortos e feridos que a aventura trumpista. Na periferia a violência tende sempre para os extremos.

 

Conclusão

Qualquer que seja a forma, uma marcha, arruaça, invasão ou até o mais efetivo desfile militar com tropas cercando os três poderes, uma tentativa de golpe, mesmo a mais ridícula, é grave. Ela corrói ainda mais a legitimidade institucional do poder e constrange o próximo presidente a conviver com uma força armada explicitamente opositora.

A marcha sobre Roma em 1922 também era uma passeata cômica de uma massa de ressentidos mal armados que poderia ter sido desbaratada facilmente pelo exército italiano, mas os fascistas já tinham comparsas no estado e as classes dominantes estavam paralisadas. E como no Brasil, não havia qualquer ameaça revolucionária, já que o biênio vermelho havia sido derrotado e o partido comunista era muito pequeno. Elas temiam mais o crescimento eleitoral do socialismo reformista, uma força desinteressada em qualquer revolução e incapaz de resistir ao fascismo.

Four hours at the Capitol termina com uma série de imagens de agentes do FBI cumprindo mandados de prisão contra as lideranças do 6 de janeiro. Se a ideia era, como em boa parte do cinema ficcional estadunidense, mostrar que as instituições liberais são capazes de corrigir qualquer desvio, ameaça e injustiça, a verdade é que estas cenas trazem uma forte lembrança da sequência final de O ovo da serpente, de Ingmar Bergman. A operação policial para desbaratar os experimentos do professor Hans Vergérus não passa de pirotecnia, incapaz de frear forças que já foram colocadas em marcha. No Brasil, há dúvidas se mesmo o simulacro de repressão e prisão aconteça.

*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê).

*Fernando Sarti Ferreira é doutor em história econômica pela USP.

Publicado originalmente em www.holofotenoticias.com.br/.

 

Notas


[i] Saiu pela coleção cadernos do povo brasileiro da editora Civilização Brasileira. A coleção era dirigida por Álvaro Vieira Pinto e Ênio Silveira e o desenho de capa da edição original é de Eugênio Hirsch.

[ii] A esse respeito ver o artigo de José Luís Fiori e William Nozaki, in https://aterraeredonda.com.br/o-fracasso-dos-militares/

[iii] https://www.diariodocentrodomundo.com.br/xepa-fase-superior-do-bolsonarismo-por-gilberto-maringoni/

[iv] Carone, E. O Estado novo. São Paulo: Difel, 1977, p. 270.

[v] Os jornalistas Carol Leonning e Philip Rucker, em um livro chamado I Alone Can Fix It, relatam as tratativas feitas por Mark Miley, chefe do Alto Comando das Forças Armadas dos EUA, durante as jornadas de janeiro de 2021. O livro teve ampla divulgação na imprensa brasileira, mas segue sem edição no nosso país.

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