A Divina

Antonio Lizárraga (Jornal de Resenhas)
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por NIRTON VENÂNCIO*

Comentário sobre a vida de Elizeth Cardoso, cujo centenário se comemora hoje

Ela tinha 16 anos quando Jacob do Bandolim, amigo de seu pai, a viu cantar em seu próprio aniversário. Muito nova começou a namorar o jogador Leônidas da Silva, o craque que imortalizou a “bicicleta” no futebol. O pai não aprovava. Um dia, obrigou a filha a pegar o telefone e acabar com aquele namoro sem futuro. Ali do lado, com o olhar fixo, uma vara de marmelo na mão balançando no vinco da calça de linho, o pai aguardava a moça “desnamorar” pelas linhas espirais telefônicas. Com medo de uma surra, obedeceu.

No dia seguinte vingou-se do pai-patrão: entrou em campo com a desobediência e reatou com o jogador. Foram vistos abraçados em plena rua da Lapa. Relação assumida, apostando num campeonato de felizes-para-sempre, foram morar juntos. Numa manhã ensolarada encontrou uma recém-nascida abandonada na rua e levou para criá-la. Leônidas colocou a mulher na área e mandou escolher: “ou eu ou a criança!”, não admitia jogar para escanteio na relação. “Fico com Teresa!”. O jogador foi expulso de campo, surpreso porque a bebê até nome ganhara. Ficou mais fumaçando quando soube que no dia seguinte a pequena Tetê foi registrada, na certidão como filha de mãe solteira. O Diamante Negro, como era o apelido do jogador, que fosse brilhar noutro time.

Do outro lado do bairro, o pai da moça mais indignado com mais uma transgressão aos bons costumes do lugar: a filha jovem, cantora e agora mãe solteira de uma criança encontrada na rua. Meses depois conheceu o músico Ari Valdez, rolou um clima, e foram morar juntos. O rapaz não teve outro jeito, aceitou as condições e à noite, mesmo cansado de alguma apresentação, trocava as fraldinhas de Teresa de seis meses. Valdez, galanteador, não poupava alguma garota que lhe estendesse uns olhares lânguidos em seus shows. Mas tinha crises incontroláveis de ciúmes da esposa, principalmente quando ela precisava viajar para cantar.

Grávida de Valdez, ela decidiu encerrar a relação. Saiu com barrigão e a pequena Tetê e foi morar com a mãe, também já separada. Definitivamente, não queria nada com um ciumento sem moral e motivos para tanto, e além do mais extensão do pai dominador. Teve o filho sozinha, e para conseguir mais dinheiro, pediu para mãe cuidar das crianças, aprendeu a dirigir e foi ser motorista de táxi em pleno Rio de Janeiro da década de 1940. Só as apresentações nas casas noturnas não cobriam as despesas do mês.

Assim foi o começo da carreira de Elizeth Cardoso, a Divina, apelido dado pelo jornalista Haroldo Costa, em um artigo publicado no A Última Hora.

Com uma voz belíssima que vibrava do erudito ao popular, Elizeth é uma das maiores cantoras da história da música brasileira, consagrada como intérprete impecável do choro ao samba-canção, chegando a Bossa Nova. Seu nome é até rima no endereço da rua Nascimento Silva, 107, onde Tom e Vinicius compunham para ela as canções de canção do amor demais, citada em “Carta ao Tom”, gravada em 1974 pelo poetinha, Toquinho e Quarteto em Cy.

Elizeth Cardoso foi uma das pioneiras dos jingles em campanha política, gravou uma machinha para a campanha de João Goulart como vice-presidente na chapa de oposição ao candidato Jânio Quadros.

Com mais de 40 discos e reconhecida internacionalmente, amiga de Sarah Vaughan, a voz enluarada de nosso cancioneiro passou três anos se tratando de um câncer no estômago, diagnosticado em uma turnê no Japão, quando se sentiu mal no hotel. Mesmo doente, comparecia aos shows, muitas vezes não conseguindo ir até o final, de tão debilitada. O público se emocionava e aplaudia a beleza daquela mulher e seu canto de amor demais.

Elizeth Cardoso é o modelo de resistência feminina em um país racista, machista, conservador, principalmente em uma época em que seus projetos de vida e seus ideais como artista e mulher eram completamente inconcebíveis.

Tinha 69 anos quando faleceu em 1990. Neste 16 de julho comemora-se o centenário de seu nascimento. Fazendo uma paráfrase com a citada carta musicada de Vinicius ao amigo Tom, ouvir Elizeth Cardoso lembra um tempo feliz, ai que saudade, a vida era só felicidade, era como se o amor doesse em paz.

*Nirton Venâncio é poeta, roteirista e cineasta.

Publicado originalmente no Jornal GGN.

 

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Marcelo Módolo Anselm Jappe Luciano Nascimento Henri Acselrad Milton Pinheiro Thomas Piketty Matheus Silveira de Souza Afrânio Catani Andrew Korybko Bruno Fabricio Alcebino da Silva Marjorie C. Marona José Machado Moita Neto Claudio Katz Celso Frederico Francisco de Oliveira Barros Júnior Slavoj Žižek Ricardo Abramovay Vanderlei Tenório Eleutério F. S. Prado Michel Goulart da Silva Alexandre Aragão de Albuquerque José Dirceu Bento Prado Jr. Flávio R. Kothe Antonino Infranca José Costa Júnior Berenice Bento Jean Pierre Chauvin Paulo Martins Leonardo Sacramento Marilena Chauí Vladimir Safatle Rafael R. Ioris Marcos Aurélio da Silva Tales Ab'Sáber Bruno Machado Boaventura de Sousa Santos Francisco Pereira de Farias Benicio Viero Schmidt Gabriel Cohn Paulo Nogueira Batista Jr Marcus Ianoni João Lanari Bo Liszt Vieira Leonardo Boff Alysson Leandro Mascaro Érico Andrade João Feres Júnior Salem Nasser Sandra Bitencourt Yuri Martins-Fontes João Carlos Salles Gilberto Maringoni Marcos Silva Daniel Brazil Armando Boito André Singer Ronald Rocha José Micaelson Lacerda Morais João Adolfo Hansen Jorge Branco Lucas Fiaschetti Estevez Alexandre de Freitas Barbosa João Sette Whitaker Ferreira Carla Teixeira José Luís Fiori Everaldo de Oliveira Andrade João Paulo Ayub Fonseca Priscila Figueiredo Leda Maria Paulani Plínio de Arruda Sampaio Jr. Maria Rita Kehl Ricardo Musse Lorenzo Vitral Luiz Renato Martins Caio Bugiato Chico Alencar Luiz Eduardo Soares Vinício Carrilho Martinez Kátia Gerab Baggio Heraldo Campos Igor Felippe Santos Tadeu Valadares Luiz Roberto Alves Luís Fernando Vitagliano Michael Roberts Ronaldo Tadeu de Souza Fernão Pessoa Ramos Luis Felipe Miguel Paulo Sérgio Pinheiro Otaviano Helene Annateresa Fabris Remy José Fontana Ari Marcelo Solon Chico Whitaker Denilson Cordeiro Bernardo Ricupero Renato Dagnino Tarso Genro Gilberto Lopes Walnice Nogueira Galvão Samuel Kilsztajn Ladislau Dowbor Marilia Pacheco Fiorillo Antonio Martins Francisco Fernandes Ladeira Dênis de Moraes Daniel Afonso da Silva Dennis Oliveira Manuel Domingos Neto Paulo Fernandes Silveira Luiz Werneck Vianna Ricardo Antunes Luiz Carlos Bresser-Pereira Atilio A. Boron Fernando Nogueira da Costa Antônio Sales Rios Neto Julian Rodrigues Eugênio Bucci Eleonora Albano Juarez Guimarães Osvaldo Coggiola Daniel Costa Michael Löwy Celso Favaretto Eduardo Borges Fábio Konder Comparato Valerio Arcary Jean Marc Von Der Weid Elias Jabbour Andrés del Río João Carlos Loebens Mariarosaria Fabris Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Jorge Luiz Souto Maior Mário Maestri Alexandre de Lima Castro Tranjan Manchetômetro Paulo Capel Narvai Carlos Tautz Luiz Bernardo Pericás Rodrigo de Faria Airton Paschoa Henry Burnett Ronald León Núñez Sergio Amadeu da Silveira José Raimundo Trindade Rubens Pinto Lyra Lincoln Secco Eliziário Andrade Flávio Aguiar Luiz Marques Valerio Arcary Leonardo Avritzer Marcelo Guimarães Lima Gerson Almeida Ricardo Fabbrini André Márcio Neves Soares José Geraldo Couto Eugênio Trivinho

NOVAS PUBLICAÇÕES