A desdolarização está em andamento

Isaac Witkin, Baalbec, 1968
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Por JUSTIN PODUR*

Um novo sistema monetário global, ou pelo menos um no qual não haja uma moeda de reserva quase universal, equivaleria a um reordenamento geopolítico não visto desde o fim da Segunda Guerra Mundial

A desdolarização, aparentemente, “goste-se ou não”, está acontecendo e vem para ficar. É o que mostra um vídeo de maio de 2023 do Quincy Institute for Responsible Statecraft, um “think tank” voltado para a paz com sede em Washington, DC. Mas ele não está sozinho na discussão da desdolarização: os economistas políticos Radhika Desai e Michael Hudson delinearam a sua mecânica em quatro programas realizados entre fevereiro e abril de 2023, no canal do YouTube, Geopolitical Economy Hour.

O economista Richard Wolff forneceu uma explicação de nove minutos sobre esse tópico no canal Democracy at Work. Por outro lado, meios de comunicação como o Business Insider garantiram aos seus leitores que o domínio do dólar não terá continuidade. O jornalista Ben Norton, numa audiência bipartidária de duas horas no Congresso, realizada em 7 de junho – “Dominância do dólar: preservando o status do dólar americano como moeda de reserva global” – falou sobre a defesa da moeda americana diante da desdolarização. Durante a audiência, os membros do Congresso expressaram otimismo, mas também grande ansiedade, sobre o futuro do papel supremo do dólar. Mas o que motivou esse debate?

Até recentemente, a economia global aceitava o dólar americano como moeda de reserva mundial e como moeda de transações internacionais. Os bancos centrais da Europa e da Ásia tinham um apetite insaciável por títulos do Tesouro dos Estados Unidos denominados em dólares, o que, por sua vez, conferia a Washington a capacidade de gastar dinheiro e financiar sua dívida à vontade. Se algum país sair da linha, Washington poderá sancioná-lo política ou militarmente, excluindo-o do resto do sistema de comércio global denominado em dólares do mundo.

Mas por quanto tempo? Após uma reunião de cúpula em março entre o presidente da Rússia, Vladimir Putin, e o presidente da China, Xi Jinping, Putin declarou: “Somos a favor do uso do yuan chinês nos acordos entre a Rússia e os países da Ásia, África e América Latina”. Colocando essa declaração em perspectiva, Fareed Zakaria, da CNN, disse: “A segunda maior economia do mundo e o maior exportador de energia estão juntos tentando ativamente reduzir o domínio do dólar como âncora do sistema financeiro internacional”.

Já agora, observou Fareed Zakaria, a Rússia e a China estão mantendo uma menor parte de suas reservas de seus bancos centrais em dólares; estão, ademais, liquidando a maior parte de seu comércio em yuan, enquanto outros países sancionados pelos Estados Unidos estão se voltando para o comércio baseado em transações bilaterais com o fim de evitar a dependência do dólar.

Um novo sistema monetário global, ou pelo menos um no qual não haja uma moeda de reserva quase universal, equivaleria a uma reorganização do poder político, econômico e militar: um reordenamento geopolítico não visto desde o fim da Guerra Fria ou mesmo desde a Segunda Guerra Mundial.

Ao observar as suas origens e evolução, fica claro que um padrão de troca global é algo relativamente recente; ademais, não há regras imediatas e rígidas que determinem como ele deveria ser organizado. Vamos fazer um breve passeio pela tumultuada história monetária do comércio global para, em seguida, considerar os fatores que podem desencadear outro estágio em sua evolução.

Dinheiro-mercadoria imperial

Antes da dolarização da economia mundial, o sistema monetário internacional baseava-se num padrão-ouro ancorado na supremacia naval do Império Britânico. Mas um sistema monetário lastreado em ouro, uma mercadoria extraída da terra, tinha uma falha inerente: podia causar deflação. Se a mineração de metais pudesse acompanhar o ritmo do crescimento econômico, o padrão-ouro funcionaria adequadamente. Mas, como Karl Polanyi observou em seu livro de 1944, A grande transformação, “a quantidade de ouro disponível podia [apenas] ser aumentada pouco ao longo de um ano… não subitamente, ou muito durante algumas semanas, tal como seria necessário para bem mediar uma expansão repentina das transações. Na ausência de dinheiro simbólico, os negócios teriam de ser reduzidos ou mantidos a preços muito mais baixos, induzindo assim uma queda e criando desemprego”.

Essa espiral deflacionária, suportada por muitos na economia, foi o que o ex-candidato presidencial dos Estados Unidos, William Jennings Bryan, descreveu em seu famoso discurso na convenção do Partido Democrata de 1896, no qual declarou: “Não se deve crucificar a humanidade em uma cruz de ouro”. Para os verdadeiramente ricos, é claro, o padrão-ouro era uma coisa boa, pois protegia a sua riqueza da inflação.

A alternativa à “cruz de ouro” era que os governos garantissem a circulação de moeda suficiente para manter os negócios em andamento. Para isso, eles poderiam produzir, em vez de moeda-mercadoria de ouro ou prata, moeda fiduciária ou impressa: ou seja, papel-moeda emitido à vontade pelo tesouro do Estado. O problema com o dinheiro simbólico, entretanto, era que ele não podia circular em solo estrangeiro. Como, então, em uma economia global, seria possível conduzir o comércio exterior em moeda-mercadoria e os negócios domésticos em moeda papel?

Os impérios espanhol e português tinham uma solução para manter o fluxo de metais: cometer genocídio contra as civilizações das Américas, roubar o seu ouro e prata, forçando os povos indígenas a trabalhar até a morte nas minas. Os impérios holandês e depois britânico conseguiram esse ouro usando uma série de mecanismos, incluindo a monopolização do comércio de escravos por meio do Assiento de 1713 e o roubo de terras indígenas nos Estados Unidos e no Canadá. A prata roubada foi usada para comprar mercadorias valiosas na China. A Grã-Bretanha roubou essa prata da China após as Guerras do Ópio. O império do meio teve que pagar imensas indenizações (em prata) após perder tais guerras.

Uma vez que se estabeleceu como gerente global, o Império Britânico insistiu no padrão-ouro na Europa enquanto colocava a Índia no padrão-prata. Em sua tese de doutorado de 2022, o economista político Jayanth J. Tharappel chamou esse esquema de “apartheid bimetálico”: a Grã-Bretanha usava o padrão prata para adquirir mercadorias indianas e o padrão ouro para negociar com países europeus.

A Índia foi assim usada como uma bomba monetária que permitia o controle britânico da economia global; ademais, era espremida conforme o necessário: a Índia tinha um superávit comercial com o resto do mundo, mas, ao mesmo tempo, estava em déficit comercial com a Grã-Bretanha. Esta cobrava de sua colônia “impostos domésticos” pelo privilégio de ser saqueada. A Grã-Bretanha também arrecadava impostos e receitas alfandegárias em suas colônias e semicolônias, simplesmente apreendendo mercadorias, as quais revendia com lucro. A opressão era tanta que, muitas vezes, espalhava a fome na Índia, levando assim dezenas de milhões de pessoas à morte.

O sistema chamado de Council Bills era outro esquema bem esperto: esse papel-moeda era vendido pela Coroa Britânica aos mercadores em troca de ouro e prata. Esses comerciantes usaram esse dinheiro para comprar produtos indianos para revenda. Os indianos que detivessem esse tipo de dinheiro poderiam descontá-lo, recebendo em troca rúpias de volta (ou seja, dinheiro que fora pago na forma de débitos fiscais). O resultado de toda essa operação foi que a Grã-Bretanha drenou US$ 45 trilhões da Índia entre 1765 e 1938, segundo pesquisa da economista Utsa Patnaik.

Do ouro à moeda lastreada em ouro ao dólar flutuante

À medida que o século XIX avançava, um resultado indireto da administração altamente lucrativa de suas colônias pela Grã-Bretanha – e particularmente o dumping de suas exportações nos mercados que controlava – foi que ela ficou para trás em manufatura e tecnologia avançadas em relação à Alemanha e os Estados Unidos – países estes nos quais derramou, por meio de investimentos, a riqueza drenada da Índia e da China.

A superioridade industrial da Alemanha e a saída da Rússia da aliança tácita com a Grã-Bretanha, após a Revolução Bolchevique, deixaram os britânicos enfraquecidos: eis que poderia ter pedido para a Alemanha na Primeira Guerra Mundial, apesar de ter atraído milhões de pessoas do subcontinente indiano para servir durante essa guerra. Depois, como bem se sabe, mais de 2 milhões de indianos serviriam na Segunda Guerra Mundial ao lado dos soldados da Grã-Bretanha.

Os financistas americanos emprestaram tanto dinheiro à Grã-Bretanha que, se ela tivesse perdido a Primeira Guerra Mundial, os bancos americanos teriam sofrido uma perda imensa. Quando a guerra acabou, para surpresa da Grã-Bretanha, os Estados Unidos insistiram em ser reembolsados. A Grã-Bretanha pressionou a Alemanha por reparações para pagar os empréstimos dos EUA; assim, o sistema financeiro mundial quebrou por meio de “desvalorizações competitivas, guerras tarifárias e autarquia internacional”, tal como Michael Hudson relatou em seu livro de 1972, Super imperialism. Como se sabe, essas reparações preparam as condições de fundo da Segunda Guerra Mundial.

Depois do término da guerra, Washington insistiu no fim da zona da libra esterlina; os Estados Unidos não permitiriam mais que a Grã-Bretanha usasse a Índia como uma bomba privada de dinheiro. Mas John Maynard Keynes, que havia escrito Indian Currency and Finance (1913), The Economic Consequences of the Peace (1919) e General Theory of Employment, Interest, and Money (1936), acreditava ter encontrado uma maneira nova e melhor fornecer um substituto do dinheiro-mercadoria necessário para o comércio exterior, assim como o dinheiro simbólico necessário para os negócios domésticos, sem crucificar ninguém em uma cruz de ouro.

Na conferência econômica internacional de 1944, em Bretton Woods, New Hampshire, Keynes propôs um banco internacional com uma nova moeda de reserva, o “bancor”, que seria usado para resolver os desequilíbrios comerciais entre os países. Se o México precisasse vender petróleo e comprar automóveis da Alemanha, por exemplo, os dois países poderiam fazer comércio em “bancor”. Como se daria, então, o processo de equilibração?

Se o México se encontrasse devendo ou a Alemanha tivesse um superávit crescente nesse dinheiro, uma União de Compensação Internacional aplicaria pressão em ambos os lados: exigiria uma depreciação monetária dos devedores, mas também uma valorização da moeda, assim como pagamentos de juros punitivos, para os credores. Enquanto isso, os bancos centrais dos países devedores e credores poderiam seguir o conselho doméstico de Keynes, usando os seus poderes de criação de dinheiro para estimular a economia doméstica conforme necessário, dentro dos limites dos recursos disponíveis internamente e da força de trabalho.

Keynes fez sua proposta, mas os Estados Unidos tinham um plano diferente. Em vez do “bancor”, desejavam que o dólar fosse o dinheiro mundial. Ele estaria respaldado pelo ouro mantido em Fort Knox. O dólar seria a nova moeda de reserva e o meio de troca no comércio mundial. Tendo emergido da guerra com sua economia intacta e a maior parte do ouro do mundo, os Estados Unidos liderariam a guerra ocidental contra o comunismo em todas as suas formas, usando armas que vão desde golpes e assassinatos até ajuda ao desenvolvimento e finanças.

No lado econômico, os instrumentos dos EUA incluíam empréstimos de reconstrução para a Europa, empréstimos de desenvolvimento para o Sul Global e empréstimos de balanço de pagamentos para países com problemas (os infames “pacotes de resgate” do Fundo Monetário Internacional (FMI). Ao contrário da União de Compensação Internacional proposta por Keynes, o FMI impôs todas as penalidades aos devedores e deu todas as recompensas aos credores.

A posição única do dólar deu aos Estados Unidos o que um ministro das finanças francês chamou de “privilégio exorbitante”. Enquanto todos os outros países precisavam exportar para obter dólares para comprar importações, os Estados Unidos poderiam simplesmente emitir moeda e começar a comprar mercadorias e ativos no resto do mundo.

O liame ao ouro permaneceu por uma década e meia, mas o custo da dominação mundial tornou-se considerável até mesmo para Washington durante a Guerra do Vietnã. A partir de 1965, a França, seguida por outros, começou a exigir que os Estados Unidos mantivessem a palavra e que trocassem de fato os dólares americanos pelo ouro guardado nas burras do Tesouro. Persistiu nessa demanda até que Washington cancelou o vínculo formal do dólar ao ouro e o dólar começou a flutuar livremente em 1971.

O dólar flutuante e o petrodólar

O cancelamento do lastreamento em ouro da moeda do comércio internacional foi possível devido à posição excepcional dos Estados Unidos no mundo como potência militar suprema: possuía domínio de amplo espectro e tinha centenas de bases militares em todo o mundo. Os EUA também eram um ímã para os imigrantes do mundo; eram também detentores de “soft power”, ou seja, um padrão de vida que seguia o estilo Hollywood; ademais, mantinham a liderança em tecnologia, ciência e manufatura.

O dólar também teve um outro apoio tangível, mesmo depois que o vínculo dourado foi quebrado. A mercadoria mais importante do planeta agora passou a ser o petróleo, e os Estados Unidos controlavam a torneira por meio de seu relacionamento especial com a superpotência do petróleo, a Arábia Saudita.

Como se sabe, em uma reunião realizada em 1945 entre o rei Abdulaziz Al Saud e o então presidente Franklin Delano Roosevelt em um cruzador americano, o USS Quincy, no Grande Lago Amargo (Great Bitter Lake), no Egito, foi selado um acordo duradouro. Contudo, quando os países produtores de petróleo formaram um cartel efetivo, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), e começaram a aumentar o preço do petróleo, os países com deficiência de petróleo do Sul Global passaram a sofrer, enquanto os exportadores de petróleo trocaram seus recursos por grandes quantidades de dólares (“petrodólares”).

Os Estados Unidos proibiram esses detentores de dólares de adquirir ativos ou indústrias estratégicas dos EUA, mas permitiram que eles investissem seus dólares nos Estados Unidos comprando armas ou adquirindo títulos do Tesouro dos EUA: assim, eles simplesmente manteriam dólares, mas sob uma outra forma. Os economistas Jonathan Nitzan e Shimshon Bichler chamaram esse nexo de arma-dólar-petrodólar (weapon-dollar-petrodollar) em seu livro de 2002, The Global Political Economy of Israel.

Conforme documentado no livro de Michael Hudson de 1977, Global Fracture (uma sequência do livro Super Imperialism), os países da OPEP esperavam usar seus dólares para se industrializar e alcançar o Ocidente. Comntudo, por meio de golpes e contrarrevoluções, os EUA mantiveram a fratura global e empurraram a economia global para a era do neoliberalismo.

O relacionamento entre dos EUA com a Arábia Saudita foi a chave para conter o poder da OPEP, já que a Arábia Saudita seguia os interesses dos EUA, aumentando a produção de petróleo em momentos-chave para manter os preços baixos. Pelo menos um autor – James R. Norman, em seu livro de 2008, The Oil Card: Global Economic Warfare in the 21st Century – argumentou que o relacionamento também era fundamental para outras prioridades geopolíticas dos EUA, incluindo o seu esforço para acelerar o colapso do União Soviética na década de 1980.

Um estudo do Tesouro dos EUA de 1983 calculou que, uma queda de US$ 1 no preço do barril do petróleo reduziria as receitas em moeda forte da Rússia em até US$ 1 bilhão; assim, uma queda de US$ 20 por barril a colocaria em crise. Um exame desse processo se encontra no livro de Peter Schweizer, Victory.

Em 1985, relatou Norman em seu livro, a Arábia Saudita “[abriu] as comportas, [cortou] os seus preços e [bombeou] mais petróleo no mercado”. Embora outros fatores também tenham contribuído para o colapso do preço do petróleo, “o acadêmico russo Yegor Gaidar, primeiro-ministro interino da Rússia de 1991 a 1994 e ex-ministro da economia, descreveu [a queda nos preços do petróleo] como claramente o golpe mortal que destruiu a vacilante União Soviética”.

Do petrodólar à desdolarização

Quando a URSS entrou em colapso, os Estados Unidos declararam uma nova ordem mundial e lançaram uma série de novas guerras, inclusive contra o Iraque. A moeda da nova ordem mundial era o petrodólar – ou seja, a arma-dólar (weapondollar). Um bombardeio inicial acompanhado de uma ocupação parcial do Iraque, em 1990, foi seguido por mais de uma década de aplicação de uma arma econômica sádica, a qual teve um efeito muito mais devastador do que aquele que jamais ocorreu em relação à URSS (ou mesmo outros alvos, como Cuba).

O Iraque não tinha permissão para vender seu petróleo, nem para comprar remédios ou tecnologia necessários. Centenas de milhares de crianças morreram como resultado. Vários autores, pesquisadores da Unit of Research in Political Economy da Índia, no livro de 2003 Behind the Invasion of Iraq, assim como o autor norte-americano William Clark em um livro de 2005, Petrodollar Warfare, argumentaram que a derrubada final de Saddam Hussein foi desencadeada por uma ameaça de que ele poderia começar a negociar petróleo em euros, em vez de dólares. O Iraque está sob ocupação dos EUA desde então.

Parece, no entanto, que a era da arma dólar está terminando e isto está acontecendo num “ritmo ‘impressionante'”. Após a cúpula Putin-Xi em março de 2023, Fareed Zakaria, da CNN, preocupou-se publicamente com a situação do dólar diante dos esforços da China e da Rússia para desdolarizar o comércio mundial. Os problemas do dólar só aumentaram desde então. Todos os pilares que sustentam a arma-dólar se mostram instáveis agora:

(i) Os Estados Unidos não são mais o produtor industrial dominante; a China, por sua vez, está alcançando a fronteira do conhecimento em ciência e tecnologia. (ii) Os Estados Unidos não parecem mais ser um modelo de desenvolvimento atraente para os países do Sul Global. Não são mais capazes de competir com a China, que opera agora por meio da Iniciativa do Cinturão e Rota na África e em outras partes do mundo em desenvolvimento. (iii) Os Estados Unidos sancionaram tantos países (Rússia, Irã, Venezuela, Cuba e China) que eles estão começando a negociar uns com os outros, atingindo assim uma massa crítica.

(iv) O poder militar dos EUA não é mais visto como supremo após sua falta de sucesso em provocar uma mudança de regime na Síria e sua retirada do Afeganistão. (v) Embora os Estados Unidos possam ter conseguido reduzir drasticamente as vendas de gás russo para a Europa – inclusive porque explodiram os dutos Nordstream –, não conseguiram convencer a Índia ou a China a seguir seus planos de isolamento da Rússia: ambos os países estão comprando energia russa e revendendo-a também.

(vi) Depois de ver os Estados Unidos roubarem as reservas da Rússia e o ouro da Venezuela e forçarem a venda da petrolífera venezuelana CITGO, até mesmo os aliados dos EUA relutam em manter ativos em dólares ou manter seus ativos nos Estados Unidos para não serem apreendidos. A Arábia Saudita negociará com a China em yuan em vez de dólares, cancelou sua guerra apoiada pelos EUA no Iêmen, fez as pazes com o Irã e recebeu o presidente da Síria, Bashar al-Assad, na cúpula da Liga Árabe em maio de 2023.

Mas o que vai substituir o dólar?

“Uma economia globalizada precisa de uma moeda única” – disse Fareed Zakaria à CNN após a cúpula de Xi-Putin. “O dólar está estável. Pode-se comprar e vender dólar a qualquer momento e o câmbio está regido em grande parte pelo mercado – e não pelos caprichos de um governo. É por isso que os esforços da China para expandir o papel do yuan internacionalmente não funcionaram”. Mas a atual governança do dólar americano está seguindo os “caprichos de um governo” – a saber, dos Estados Unidos; ora, este é exatamente o motivo pelo qual os países estão procurando alternativas.

Fareed Zakaria se consolou com o fato de que o substituto do dólar não será o yuan. “Ironicamente, se Xi Jinping quisesse causar o maior sofrimento aos Estados Unidos, ele liberalizaria seu setor financeiro e faria do yuan um verdadeiro concorrente do dólar. Mas isso o levaria a optar pelas lógicas do mercado e da abertura, as quais são o oposto de seus atuais objetivos domésticos”. Fareed Zakaria está errado. A China não precisa liberalizar o seu setor financeiro para internacionalizar o yuan. Quando o dólar era supremo, os Estados Unidos simplesmente excluíam os detentores de dólares estrangeiros de comprar empresas ou ativos americanos e os restringiam a manter títulos do Tesouro dos EUA.

Mas como o economista chinês Yuanzheng Cao, ex-economista-chefe do Banco da China, argumentou em seu livro de 2018, Strategies for Internationalizing the Renminbi (o nome oficial da moeda cuja unidade é o yuan), Pequim pode internacionalizar o yuan sem tentar substituir o dólar e incorrendo no ressentimento generalizado que se seguiria. Ele só precisa garantir o uso do yuan estrategicamente como uma das várias moedas e em uma ampla variedade de transações, como swaps de moeda.

A ideia de Keynes no pós-guerra da criação de uma moeda de reserva global está sendo revivida de forma mais limitada e escala regional. Uma versão regional do “bancor”, o “sur”, foi proposta pelo presidente do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva. Por sua vez, o economista equatoriano e ex-candidato presidencial Andrés Arauz descreveu o “sur” da seguinte forma em uma entrevista em fevereiro: “A ideia não é substituir a moeda soberana nacional de cada país, mas sim ter uma moeda adicional, uma moeda complementar, uma moeda supranacional para o comércio entre países da região, começando pelo Brasil e Argentina, que são uma espécie de duas potências do Cone Sul, e que depois poderiam se expandir para o resto da região”.

Lula deu sequência à ideia do “sur” mediante a ideia de uma moeda dos BRICS; O economista russo Sergey Glazyev propõe uma espécie de “bancor” apoiado por uma cesta de commodities.

Os sistemas monetários refletem as relações de poder no mundo: não as criam nem as modificam. O padrão ouro inglês e o padrão dólar norte-americano refletiram o poder de monopólio imperial durante séculos. Em um mundo multipolar, no entanto, devemos esperar arranjos monetário mais diversificados.

*Justin Podur é professor da Faculty of Environmental Studies, York University. Autor, entre outros livros, de America’s Wars on Democracy in Rwanda and the DR Congo (Palgrave Macmillan).

Tradução: Eleutério F. S. Prado.

Publicado originalmente no portal Counterpunch.


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