Por GILBERTO LOPES*
Os Estados Unidos sabem perfeitamente que violam a Carta das Nações Unidas e o direito internacional
O genocídio como política
“O genocídio como supressão colonial” é o título do relatório avassalador de Francesca Albanese, relatora especial da ONU sobre a situação dos direitos humanos nos territórios palestinos ocupados. Ele foi apresentado à Assembleia Geral em 28 de outubro.
No dia seguinte, a Assembleia Geral voltaria a falar de genocídio ao iniciar o debate sobre o impacto do bloqueio que os Estados Unidos mantêm há mais de seis décadas contra Cuba. Foi a 32ª vez que se votou sobre o tema.
Para o ministro das relações exteriores de Cuba, Bruno Rodríguez, o bloqueio econômico, financeiro e comercial dos Estados Unidos contra seu país qualifica-se como outro genocídio.
Os Estados Unidos sabem perfeitamente que violam a Carta das Nações Unidas e o direito internacional com essas medidas, que, de acordo com o governo cubano, representaram perdas de 5,0568 bilhões, somente entre março de 2023 e fevereiro de 2024.
A destruição do inimigo
George Kennan (1904-2005), um notável diplomata norte-americano, foi um escritor prolífico. Em “Around the Cragged Hill”, um livro sobre sua visão pessoal sobre filosofia e política, ele trata de vários aspectos do mundo em que viveu. Entre eles, a relação entre a política externa e os militares.
Ele discute ali a ideia da destruição total do inimigo, o objetivo da guerra para os militares. Kennan argumenta que a destruição por si só não está de acordo com essa ideia. Ele acha que o objetivo da guerra deve ser outro. Não se trata de provocar a destruição máxima do inimigo, mas de mudar suas políticas, sua forma de pensar.
Se esse for o objetivo, não se trata de provocar o dano máximo, mas o mínimo. “Todos vivemos no mesmo mundo; e se o objetivo da guerra não é o genocídio (e quem pode conceber que esse seja o objetivo, o Ocidente?, ele pergunta), então o propósito de qualquer conflito militar não é tanto destruir o inimigo militarmente, mas mudar sua atitude”.
O Ocidente depois de Kennan (ou a miséria humana como política)
Kennan foi o artífice da política de contenção da União Soviética, num famoso artigo – “The Sources of Soviet Conducts” – publicado em julho de 1947, sob o pseudônimo de “X”.
Esse foi certamente seu maior sucesso como diplomata. Ele teve muito menos sorte mais tarde, quando começou a rever suas opiniões sobre a URSS, OTAN, Ucrânia e a relação dos países bálticos com a Rússia. Em seu livro, ele lamenta ter sido pouco ouvido, apesar dos muitos reconhecimentos que recebeu.
O “Ocidente” não está disposto a ouvir as recomendações de Kennan. Sua visão do “Ocidente” e do genocídio parece ingênua hoje em dia.
“O genocídio deve ser considerado um componente essencial e decisivo do objetivo de Israel de colonizar completamente a terra palestina, expulsando o maior número possível de palestinos”… “num processo de expansão territorial e depuração étnica durante décadas e com o objetivo de aniquilar a presença palestina na Palestina’, afirma Albanese em seu relatório sobre a situação em Gaza.
Não se pode ler o relatório (pelo menos eu não posso) sem uma mistura de sentimentos que acabam se resumindo numa profunda indignação contra os níveis de miséria humana que o governo israelense atingiu e que o relatório de Albanese expõe com lucidez e coragem.
“… a conduta geral de Israel após o dia 7 de outubro causou graves danos psicológicos a todos os palestinos, tanto às vítimas diretas quanto àqueles que testemunharam isso do exílio.
“O objetivo geral é humilhar e degradar os palestinos em seu conjunto”.
“Os prisioneiros são despidos e cruelmente torturados em massa; os corpos de adultos e crianças são empilhados e se decompõem na rua; os sobreviventes são obrigados a comer ração animal e grama e a beber água do mar ou até mesmo esgoto; milhares de pessoas foram mutiladas, incluindo crianças pequenas que ficaram sem membros antes mesmo de aprenderem a engatinhar; as casas são destruídas e a vida íntima é violada; e não há absolutamente nada para onde voltar”.
Não se trata de uma política recente, mas sistemática. “A frequência perturbadora e a crueldade das matanças de pessoas, cuja condição de civis é conhecida, são representativas da natureza sistemática de uma intenção de destruir. Hind Rajab, de seis anos de idade, foi assassinado com 355 disparos depois de passar horas implorando por ajuda; Muhammed Bhar, que tinha síndrome de Down, morreu em decorrência de um ataque com cachorros; Atta Ibrahim Al-Muqaid, um idoso surdo, foi executado em sua casa, e seu assassino e outros soldados mais tarde se gabaram disso nas mídias sociais; vários bebês prematuros foram deliberadamente abandonados na unidade de terapia intensiva do hospital Al-Nasr, onde sofreram uma morte lenta e seus restos mortais se decompuseram…”
Histórias difíceis de imaginar. Estamos longe do sonho de Kennan, ou de uma guerra de legítima defesa, uma luta antiterrorista com a qual o governo israelense procura justificar o genocídio. “Está bem estabelecido que Israel não pode invocar a legítima defesa contra a população sob sua ocupação. A potência ocupante deve proteger, e não atacar, o povo ocupado”, diz o relatório.
O exército israelense transformou Gaza num lugar inabitável para seres humanos. “Quando a poeira baixar em Gaza, o verdadeiro alcance do horror vivido pelos palestinos será conhecido”, diz Albanese. Assim, parece-me justo que algum outro general obrigue os cidadãos de Israel a ver a destruição causada por seu exército na Palestina. Tal como, há cerca de 60 anos, outro general obrigou a população alemã a ver o que seu exército havia feito com os judeus.
Cada vez mais à direita
Ninguém pode dizer que não sabia o que estava acontecendo. E que isso já foi anunciado após os resultados das eleições de 1º de novembro de 2022 e a formação do novo governo israelense, o mais extremista, liderado por Benjamin Natanyahu, acusado de genocídio pelo Tribunal Penal Internacional.
Um relatório da ONU publicado em 20 de setembro denunciou o que descreveu como um “êxodo sem paralelo nos últimos anos” na Cisjordânia, onde os colonos israelenses estavam expulsando violentamente os palestinos de suas terras. Num editorial de 5 de outubro, o jornal Haaretz denunciou que na Cisjordânia “o governo de Natanyahu estava violando a lei”.
O objetivo da ampliação dos assentamentos, considerados ilegais pela lei internacional e também pela lei israelense, é parte de uma prioridade política do atual governo, que visa à ocupação permanente da Cisjordânia ou à sua anexação.
Aliados aos ultraortodoxos e ao nacionalismo religioso, dois homens representam com especial crueldade a orientação extremista do novo governo.
Morando em Givat Haavot, uma colônia encravada no coração de Hebron, Itamar Ben Gvir, ministro da segurança nacional, “é um ativista impenitente que multiplica as provocações se exibindo pelos bairros árabes de Jerusalém Oriental e aparecendo ao lado das milícias de autodefesa judaicas”, diz Alain Dieckhoff, diretor de pesquisa do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), a principal instituição de pesquisa científica da França.
O outro é Bezalel Smotrich, líder do Partido Sionista Religioso. “Sua vida é totalmente identificada com a colonização judaica”, diz Dieckhoff. Nomeado ministro da fazenda, com competências específicas na administração civil da Cisjordânia, ele tem sido responsável por promover a expansão dos assentamentos judaicos em terras palestinas.
Estados párias
Após os resultados das últimas eleições, o presidente norte-americano, Joe Biden, telefonou para Netanyahu para lhe dizer que seu compromisso com Israel era “inquestionável”. “ –Parabéns, meu amigo”, disse-lhe.
Como já observamos, no dia seguinte à apresentação do relatório de Albanese sobre a Palestina, a Assembleia Geral discutiu as consequências do bloqueio norte-americano a Cuba.
Para a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), a política de sanções dos Estados Unidos impede o desenvolvimento cubano e prejudica o bem-estar de sua população. A CELAC rejeitou a aplicação de leis e medidas contrárias ao direito internacional adotadas por Washington, como a Lei Helms-Burton, incluindo seus efeitos extraterritoriais, bem como a crescente perseguição às transações financeiras internacionais de Cuba.
O representante permanente da delegação mexicana na ONU, Héctor Vasconcelos, e o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, manifestaram-se contra o embargo. Vieira conclamou os Estados Unidos a retirar Cuba da lista de países que patrocinam o terrorismo e a promover um diálogo construtivo baseado no respeito mútuo e na não interferência.
O ministro cubano das relações exteriores, Bruno Rodríguez, chamou o bloqueio econômico de genocídio. De 18 a 23 de outubro, Cuba sofreu um apagão que afetou todo o país. Os hospitais funcionaram em condições de emergência, as escolas e universidades suspenderam as aulas e a economia parou.
A principal causa da falha do sistema elétrico nacional foi a falta de combustível que afetou a geração, associada ao estado precário das usinas. “Ambas consequências diretas das medidas extremas de guerra econômica aplicadas pelo governo estadunidense desde 2019”, especificamente projetadas para impedir o fornecimento de combustíveis e de partes e peças para suas usinas”, acrescentou o ministro das relações exteriores de Cuba.
O Tribunal Penal Internacional reconheceu a política de terra arrasada de Israel em Gaza como genocídio. Um crime que, de acordo com o ministro das relações exteriores de Cuba, também é cometido pelos Estados Unidos com sua política de bloqueio contra seu país. Em 30 de outubro, a Assembleia Geral condenou essa violação da Carta da ONU pelos Estados Unidos, por 187 votos a favor e dois contra. Nada disso será acatado pelo atual governo norte-americano, nem pelo que o substituirá em janeiro próximo. Nem o genocídio em Gaza cessará, nem a ocupação da Cisjordânia, nem haverá respeito pelo direito internacional.
Não é de surpreender, portanto, que os dois países – EUA e Israel – tenham votado juntos – e sozinhos – contra a condenação do bloqueio norte-americano, desprezando a vontade unânime do mundo.
*Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR). Autor, entre outros livros, de Crisis política del mundo moderno (Uruk).
Tradução: Fernando Lima das Neves.
Para ler o primeiro artigo da série clique em https://aterraeredonda.com.br/a-desordem-do-mundo/
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