Uma conversa com Immanuel Kant

Paulo Pasta, Sem titulo, 2017, verso Óleo Sobre Tela, 120x1725cm
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Por NIKOLAI KARAMZIN*

Um breve relato da mais interessante das conversas de um aristocrata russo com o pensador alemão

[Königsberg, 19 de junho de 1789]

Ontem, depois do jantar, eu visitei o ilustre Kant, o metafísico sábio e profundo que disputa tanto com Malebranche e Leibniz, quanto com Hume e Bonnet; Kant, quem o Sócrates judeu, o falecido Mendelssohn, chamava “der alles zermalmende Kant,” isto é, “Kant, o grande demolidor”. Eu não tinha nenhuma carta de recomendação para apresentar. Mas se com ousadia é possível tomar uma cidade, eis que as portas do seu gabinete se abriram para mim. Um homem idoso, baixo, magro, particularmente pálido e delicado, me recebeu.

Minhas primeiras palavras foram: “Sou um aristocrata russo. Admiro grandes homens e desejo apresentar os meus cumprimentos a Kant.”

Ele imediatamente me convidou para sentar e disse: “Escrevi de um modo que não é passível de agradar a todos. Poucos gostam das sutilezas da metafísica”.

Por cerca de meia hora conversamos sobre coisas diversas: viagens, China, a descoberta de novas terras. Eu não podia senão maravilhar-me com o seu conhecimento de história e geografia, que seria suficiente para abarrotar o armazém de uma mente mediana. Mas isso era, para ele, apenas uma “coisa incidental”, como os alemães costumam dizer. Aos poucos, guiei a nossa conversa em direção à natureza humana e à moral, e o que segue abaixo é o relato do que fui capaz de recordar das suas observações.

“A atividade é a sina do homem. Ele nunca está completamente satisfeito com o que tem, está sempre lutando para obter mais. A morte nos surpreende a caminho de algo que ainda desejamos. Dê a um homem tudo o que ele deseja e ainda assim naquele momento exato ele sentirá que este tudo não é tudo. Por falharmos em ver o objetivo ou propósito da nossa luta nesta vida, pressupomos que há uma vida futura na qual o nó será desfeito. Esse pensamento é o mais atraente para o homem, porque aqui não há equilíbrio entre a alegria e a tristeza, entre o prazer e a dor. Conforta-me o fato de que já tenha sessenta anos e que em breve atingirei o fim da vida, pois espero começar outra, uma melhor”.

“Quando penso nas alegrias que experimentei, não sinto prazer, exceto quando lembro das ocasiões em que agi em conformidade com a lei moral inscrita no meu coração, aí eu me alegro. Falo lei moral. Podemos chamá-la de consciência, senso de bem e mal – mas ela existe. Eu menti. Ninguém sabe da minha mentira, e ainda assim me sinto envergonhado. Quando nós falamos da vida futura, probabilidade não é certeza; mas quando ponderamos acerca de tudo, a razão nos ordena a acreditar nela”.

“Suponha que pudéssemos vê-la com nossos próprios olhos, tal qual ela é. Caso fôssemos muito absorvidos por essa visão, já não nos interessaríamos pela vida presente, e entraríamos num estado de contínuo abatimento. E, no caso oposto, não poderíamos, em meio às provações e tribulações da vida presente, consolar-nos ao dizer: ‘talvez lá seja melhor!’ Mas quando falamos de destino, de uma vida futura e de coisas afins, assumimos a existência de uma Eterna Razão Criadora que criou tudo com algum propósito e que criou tudo bom. O quê? Como? Mas aqui mesmo o mais sábio dos homens admite a sua ignorância. Aqui a razão extingue sua luz e somos deixados no escuro. Apenas a imaginação pode perambular nessa escuridão e criar ficções”.

Homem estimável! Perdoe-me se, nestas linhas, distorci seus pensamentos!

Kant estava familiarizado com Lavater e se correspondeu com ele: “Lavater é extremamente gentil dada a grande bondade de seu coração,” ele disse, “mas por possuir uma imaginação excessivamente vívida, comumente é cegado pelos seus sonhos. Ele acredita em magnetismo e coisas assim”.

Tocamos no assunto dos inimigos de Kant: “Você irá conhecê-los,” ele disse, “e verá que são todos excelentes pessoas”.

Ele escreveu para mim os títulos de dois de seus trabalhos que eu ainda não li: Kritik der praktischen Vernunft e Metaphysik der Sitten. Guardarei essa nota como uma lembrança preciosa.

Quando escrevi meu nome em seu caderno, ele expressou seus votos de que um dia todas as minhas dúvidas sejam resolvidas. Então, segui meu caminho.

Aqui, meus amigos, vocês têm um breve relato do que foi para mim a mais interessante das conversas, que durou cerca de três horas. Kant fala rápido, de maneira muito macia, um tanto indistintamente, o que me fez ter de ouvi-lo com atenção redobrada. Sua casa é pequena e tem poucos móveis. Tudo é simples—exceto a sua metafísica. [i]

*Nikolai Karamzin (1766-1826) foi um historiador, escritor e poeta russo.

Tradução: Mariana Lins Costa.

Publicado originalmente em Karamzin, N. M. Letters of a Russian Traveler, 1789-1790. New York: Columbia University Press, 1957, pp. 39-41.

Nota da tradutora


[i] Esta pequena tradução foi feita, originalmente, com o objetivo de presentear o meu gentil amigo algo inusitado professor Antônio Paim (1927-2021). Conheci o professor Paim na sua residência numa casa de repouso para idosos em São Paulo, pouco antes do seu aniversário de 92 anos, em 2019, e nos afinamos imediatamente dado o nosso imenso amor à história e cultura russas que a despeito de todas as suas críticas fartamente presentes em livros e entrevistas, sou testemunha de que, no final da sua vida, ainda ardia – e ardia com força. Nossas conversas sempre giravam em torno das suas experiências na União Soviética e no Partido Comunista do Brasil, e das razões da sua virada ao liberalismo – para o que, segundo ele, haviam contribuído, de modo especial, os seus estudos ao longo de mais de vinte anos da Crítica da Razão Pura de Kant, além do “Relatório Kruschev”. Com essa tradução despretensiosa, sequer direta do original russo, julguei, na época, que poderia talvez confortá-lo ante a iminência da morte, dado os seus anos avançados, por se tratar de um relato reverente e entusiasmado, do que entendi como uma espécie de confissão de Kant a Karamzin de certo niilismo moderado (“Aqui [no tocante à existência de Deus] a razão extingue sua luz e somos deixados no escuro”), paradoxalmente, atrelado a um teísmo racional movido, antes de tudo, pela necessidade irracional de ter fé (“a razão nos ordena a acreditar [na vida futura]”). Saudades do meu amigo e conterrâneo, do qual não consegui me despedir. Entendíamo-nos tão bem quanto a parte considerável do que amávamos, que era quase como se não discordássemos absolutamente. Faço aqui dos votos de Kant para si, os meus votos para ele: de que esteja agora numa vida nova e melhor.


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